Mangabeira Unger, entre o sotaque e o pensamento

Por Antonio Risério, no Terra Magazine*
 A ida de Roberto Mangabeira Unger para a equipe de governo do presidente Lula fez com que “celebridades” (não é isto o que todos são, agora?) da política e do jornalismo brasileiros dessem um espet

Mas o que vimos na mídia? Políticos e jornalistas – para além da fofoca, dos joguinhos sujos das disputas de poder e do cinismo pseudo-ético de praxe – se voltarem não para o pensamento, mas para o sotaque de Mangabeira. Sotaque à parte, aliás, Mangabeira fala e escreve muito melhor do que todos os que criticaram o seu português. Mas o que interessa, claro, é o pensamento. É pelo pensamento que Mangabeira fascina um filósofo como, por exemplo, Richard Rorty. É pelo pensamento que seu livro mais recente, What the Left Should Propose?, que ainda não existe em português, foi já traduzido e publicado em alemão e italiano, sob altos elogios de quem realmente entende do riscado.



Como o espaço, aqui, é curto, vou passar a palavra ao próprio Mangabeira. Ele começa o livro dizendo que vivemos hoje sob “a ditadura da falta de alternativas”. Mostra a desorientação da esquerda, a rendição da social democracia, a necessidade da configuração de uma “heresia universal” que se contraponha à “ortodoxia universal” sobre mercados e governos que foi imposta ao mundo pelos países ricos do Atlântico Norte. E diz que a questão para a esquerda, hoje, não é suavizar a “primeira via” dos neoliberais com o adoçante das políticas compensatórias. Em vez de adoçar as crueldades da exclusão social, trata-se de transformar o mundo. O que isto significa? Mangabeira:



“Transformá-lo significa, mais uma vez, engajamento no esforço para redesenhar a produção e a política; engajamento do qual a social democracia se afastou quando se estabeleceu o compromisso de meados do século passado, que definiu seu horizonte presente. Significa tomar as formas institucionais familiares da economia de mercado, da democracia representativa e da sociedade civil livre como subconjunto de um conjunto muito mais amplo de possibilidades institucionais. Significa rejeitar o contraste entre orientação de mercado e direção governamental como eixo organizador de nossas disputas ideológicas – e substituí-lo pelo contraste entre modos de organizar o pluralismo econômico, político e social.



Avança Mangabeira



“Significa enraizar uma tendência para maior igualdade e inclusão na lógica organizada do crescimento econômico e da inovação tecnológica – não na redistribuição retrospectiva via taxação e transferência. Significa democratizar a economia de mercado inovando o arranjo que a define, mais do que meramente regulamentá-la em sua forma presente ou compensar suas desigualdades por meio de transferências posteriores. Significa radicalizar a lógica experimental do mercado pela radicalização da lógica econômica de livre recombinação dos fatores de produção, dentro de uma indisputável moldura de transações mercadológicas.



A meta é uma liberdade mais profunda para renovar e recombinar os arranjos que compõem o conjunto institucional de produção e troca, permitindo que regimes alternativos de propriedade e contrato coexistam experimentalmente dentro de uma mesma economia. Significa tomar, como objetivo dominante da política social, o incremento da competência. Tal incremento progrediria graças a uma forma de educação endereçada mais ao desenvolvimento de capacidades conceituais e práticas genéricas do que ao domínio de técnicas de trabalho específicas. E avançaria através da generalização de um princípio de herança social, assegurando a cada indivíduo um suporte básico de recursos, que ele pudesse ir retirando em momentos decisivos de sua vida.



Significa avançar esta democratização da economia de mercado no contexto de uma organização prática da solidariedade social e de um aprofundamento da democracia política. Significa nunca reduzir solidariedade social a meras transferências financeiras. Ao contrário, a solidariedade social deve estar assentada na única base segura que pode ter: responsabilidade direta das pessoas umas pelas outras. Tal responsabilidade pode se realizar tanto através do princípio de que cada adulto são ocupe uma posição dentro da economia do cuidar – a parte da economia em que as pessoas cuidam umas das outras – quanto dentro do sistema produtivo.



Significa estabelecer as instituições de uma política democrática de alta energia que: eleve permanentemente o nível de participação popular organizada na política; engaje eleitorado e partidos na rápida e decisiva resolução de impasses entre os ramos políticos de governo; equipe o governo para resgatar pessoas de situações defensivas e localizadas de desvantagem, das quais não podem sair pelas vias normais da iniciativa política e econômica; permita a setores ou localidades fazer opções fora do regime legal geral e desenvolver imagens divergentes do futuro social; combine traços de democracia direta e representativa”.



Bem, é apenas uma “amostra grátis” do que pensa Mangabeira. Mas, mesmo diante disso, onde ficam os medíocres da política e da mídia? O Brasil, mais do que nunca, precisa de políticos que realmente se interessem mais pela política do que por seus próprios “gatilhos salariais”. E, em sua imprensa, precisa, com urgência, de verdadeiros analistas políticos – e não de fonoaudiólogos amadores.



* Poeta e antropólogo; fonte: http://terramagazine.terra.com.br