Música na madrugada para as mães

Nada de presente comprado em shopping nem de almoço em família. No Henrique Jorge, a tradição no Dia das Mães é diferente. Na madrugada de sábado para domingo, um grupo de seresteiros vara a madrugada passando de casa em casa para cantar em homenagem às m

Era véspera do Dias das Mães, 1978. A conversa estava boa, a cerveja gelada, sabe como é, a noite foi esticando, esticando e o dia chegou. Os meninos sabiam que era bronca na certa. Virar a noite na rua, e logo no domingo das mães! Ia ter confusão. Para livrar a cara, alguém sugeriu uma serenata. Foram buscar o violão, roubaram flores no caminho e acabaram inventando uma tradição. Há 29 anos, na madrugada que antecede o Dia das Mães, os filhos do Henrique Jorge batem de porta em porta cantando para elas. Daquela primeira noite, restam Mário Léo de Queiroz, 51 e Anselmo Moura Costa, 46. Os dois puxam a Serenata das Mães religiosamente todos os anos. Nunca faltaram.


 


No último sábado, perto de meia-noite, deram início ao périplo novamente. Junto com eles iam umas 50 pessoas. A velha guarda, que participa há 20, 15 anos, gente nova e crianças, todas vestindo camisetas iguais. No lugar do violão, a serenata tem sanfona, zabumba e pandeiro. “É uma esculhambação organizada”, ri Mário. A história foi ganhando adeptos com o tempo. “A gente se empolgava e resolvia tocar para a mãe de algum conhecido. Veio um, veio outro. Teve ano que tocamos em 70 casas”, conta. Nos anos 80, atraídos pelo sucesso da serenata, vieram os curiosos e os bêbados chatos com seus carros de som. Nada a ver com o clima da festa. “Quase perdemos o controle, esse pessoal não tinha vínculo nenhum com o espírito da coisa”.


 


Os estranhos receberam um gelo e se afastaram naturalmente. Tudo para não descaracterizar a tradição. As mães aguardam ansiosas. Sabem que a serenata vem, mas não sabem a que horas. A maratona de cantoria costuma terminar de manhã. Para não fazer feio, vão para a cama em suas melhores camisolas. Muitas deixam pronto o bolo, o refrigerante e, vez ou outra, a cervejinha. “Elas tentam esperar acordadas, alugam filme, rezam, mas a maioria adormece”, conta Milton Menezes, 37, achando graça. Ele é um dos mais animados, canta alto e inventa coreografias. Há 17 anos sua mãe veste o camisolão de seda para receber a comitiva. Na sua vez, o sanfoneiro improvisa um forró. “Ela tem 77 anos e adora dançar”, diz Milton.


 


Ali, os filhos é que são corujas. “Minha mãe é a mais linda. Convidaram ela para participar do concurso Miss Ceará, mas meu avô não deixou”, diz Kátia Rodrigues. Ela e as irmãs, Sueli e Kelma, dão de presente a serenata para dona Lecy, 66, há 20 anos. A mãe já abre a porta dançando. Vaidosa, de batom e coque, está ainda mais arrumada que de costume. As filhas ligaram avisando que naquela noite estavam fazendo uma reportagem. “No primeiro ano foi totalmente surpresa e chorei muito. Depois, elas nunca deixaram de vir”, diz num sorriso. O pessoal se desdobra para comparecer. Raul dos Santos, 55, participa há duas décadas. Nem a mudança para João Pessoa atrapalhou.


 


“Meu pai tem 96 e minha mãe 80, tenho que aproveitá-los”. Ele conta que, ao contrário da maioria, sua mãe não se arruma. “Ela vem descabelada, sem dentadura e chora pra caramba”, ri. Se o filho não pode vir, o pessoal da serenata improvisa. No ano em que Auricélio Ramos, 39, estava no Macapá, Mário Léo colocou Luci, 66, mãe dele, para falar com o filho no celular. “Ah, como chorei naquela noite!”, lembra Luci. Com 29 anos de serenata, são mil “causos” para contar. Cada um revela um pedaço das histórias de vida de mães e filhos. Pedaços felizes e difíceis. A tradição fez dos seresteiros uma grande família e a origem de tudo, mais uma vez, está nela, a mãe.


 


 


Fonte: Jornal O Povo