Eleições Buenos Aires: Macri está por cima no segundo turno
Por Mario Wainfeld, no Pagina 12*
Mauricio Macri obteve muita vantagem no primeiro turno, melhorando seus bons desempenhos de anos anteriores. Mais de 45% dos portenhos votou nele. É um enorme acervo eleitoral, mas não o dispensa do segundo tu
Publicado 04/06/2007 18:04
O cenário para o segundo turno mostra como favorito o presidente do Boca Juniors, que deveria saber que partidos são partidos. O governismo diz ter fé, numa briga que será pesada, em superar a distância imensa. Não é impossível. Mas seria uma façanha política.
O vencedor
Macri tinha sobado 37,5% no primeiro turno da eleição de Buenos Aires em 2003, contra Aníbal Ibarra. Em 2005, em eleições parlamentares, naturalmente menos polarizadas, manteve a adesão de 33,9% dos votantes. Entretanto, seu índice de rejeição sempre foi alto, determinante para a perda da prefeitura há quatro anos.
Com estes dados na cabeça (uma soma algébrica de cifras elevadas com resultado negativo), ele pensou muito antes de tentar de novo. Quando se decidiu, escolheu um rumo aconselhado por seu assessor número um, Jaime Durán Barba: suavizar o perfil, falar sempre positivamente, dissimular seus tiques de classe alta, não brigar com quase ninguém, e menos que todos com o presidente. A estratégia de Macri deu como assente a fidelidade de seu eleitorado, e esmerou-se especialmente em persuadir os indecisos ou críticos.
Prolixa, profissional, sempre voltada para “fixar” o perfil de um paladino da direita, a ação de Mari não teve vacilações nem ziguezagues. As alusões à inclusão social (inimagináveis em seu discurso de antes), a presença suavizante da vice Gabriela Michetti, os slogans coloquiais (“Vai ser bom”), um elegante afastamento da linhagem familiar (abandonou o sobrenome depois do simples “Mauricio”) foram elos de uma cadeia sempre coerente, que teve êxito.
O engenheiro-herdeiro melhorou seu desempenho de quatro anos atrás. O treino sempre ajuda. Ele ganhou uma certa desenvoltura com o tempo. Se não consegue falar sem um script, escrevem para ele, e bons. Se custa-lhe mostrar um rosto humano, um galardão dos multimilionários, sua colega de equipe Gabriela Michetti deu-lhe uma mão.
Pista livre
O resultado do engenheiro teve a substancial cooperação das duas forças que competiam pelo pódio, Filmus e Telerman. Ambos, como se tivessem feito um acordo tácito, se obstinaram em deixá-lo solto. Tiveram a obcessão de contender entre si.
A soma dos votos (Macri ganhou dos dois juntos) sugere que a tática foi complacente demais para com o favorito, e era a que a equipe deste desejava. Será preciso ver se as feridas não cicatrizadas pesam na definição final contra Macri. Para vencê-lo, Filmus precisa convencer quase todos que votaram ontem em Telerman.
Mais catarse que cálculo
A primeira reação do governismo nacional foi quase eufórica, tal a centralidade política e emocional dada à pugna com Telerman. Certamente, a catarse por ter vencido o campeonato de bairro e evitado uma exclusão fatídica predominou sobre um cálculo racional.
Um olhar mais afiado deveria destacar que Filmus teve apenas 3,5 mais votos que Rafael Bielsa dois anos antes. A Frente Para a Vitória (FPV) pouco cresceu nesse lapso, apesar de contar com um candidato mais centrado, mais preparado e melhor relacionado com sua equipe.
A estreita margem que separa os dois desempenhos relativiza o efeito atribuido a Aníbal Ibarra, que supostamente trairia por baixo o candidato principal. Os votos logrados pelo frepasista não chegam para demonstrar essa hipótese heterodoxa.
Cabe agora à FPV o desafio de construir uma proeza em três semanas. Seus recursos mais sólidos são o candidato, que cresceu ao longo da campanha, e a rejeição que Macri continua a ter, embora diminuida segundo as pesquisas. Os estrategistas próximos a Filmus pensam que o esquema de campanha também será distinto, mais concentrado em Macri. Tudo fica diferente quando se joga um contra o outro (como no xadrez e no futebol) e não todos contra todos.
A nação deverá esperar
Macri se afanará em confirmar sua vitória no primeiro turno. Tem enormes chances de consegui-lo mas, já se sabe, as partidas vão até os 45 minutos do segundo tempo.
Não será neste momento de se gastar o capital que ainda não ganho. Nem de especular sobre algo que as urnas não selaram. Com estas precauções, pode-se dizer, sim, que o resultado de domingo foi o melhor já obtido pelo candidato de um partido de direita (alguns o chamam de centro-direita) em um grande colégio eleitoral.
Pela segunda vez o presidente do Boca foi bem nos 28 distritos da capital. É patente que tem apoio de um leque policlassista, muito mais parecido com o de Carlos Menem com o de Alvaro Alsogaray ou Domingo Cavallo.
A preformance atual, e nem se comenta caso seja revalidado em 24 de junho, posiciona Macri como o político mais votado e com maiores virtualidades no universo, demasiado vasto, dos presidenciáveis oposicionistas. Ele está perto de governar um território importante e vistoso, tem dinheiro… Vai querer mais.
A pergunta evidente é como Macri armará o seu quadro de alianças em outubro. Na política do século 21 não só proliferam tribos demais. Para complicar, há um gap sideral entre o prestígio dos seus caciques e o de seus agregados. O melhor perfil de candidato presidencial do macrismo é Macri, qualquer outro está anos-luz atrás. É uma charada que vai dar o que falar, não necessariamente amanhã.
Ele voltou
O aparecimento de Juan Carlos Blumberg no bunker do PRO [coalizão de Macri], às oito horas da noite é, neste sentido, sugestiva [Juan Carlos Blumberg é o pai de Alex Blumberg, sequestrado e assassinado em 2004, o que deu lugar a um movimento, encabeçado pelo pai da vítima, pelo endurecimento das penas e a redução da maioridade penal]. Tão sugestiva como sua ausência em toda a campanha em que Macri se maquiou de politicamente correto, se não de progressista.
Para esse objetivo, o pai de Axel era um estorvo. Mas quando se pensa na província de Buenos Aires, o sofredor porta-bandeira da linha dura recupera pertinência e virtudes.
A tese do “Desiste Filmus”
Começou o clamor propondo que Filmus desista do segundo turno. O argumento, invocado por Santiago de Estrada (um quadro de várias ditaduras militares, transformado em guru republicano), é que reverter o resultado de domingo não seria justo nem legítimo.
Chama a atenção que a direita, que recita o texto constitucional a cada passo, pretenda alterar as regras na metade do processo. A gula é uma má conselheira, sobretudo quando se mescla com a ignorância em matéria política e constitucional.
O sistema de dois turnos com maioria absoluta estimula a existência de muitos partidos. E permite, ou melhor, promove, o voto expressivo ou identitário no primeiro turno. A pressão pelo voto útil, polarizado, é relegada à votação final. Só aí é necessário buscar coalizões ou somar consensos.
Face ao cenário de ontem, todos os eleitores que resistem a Macri sabiam que podiam enfrentá-lo votando em qualquer outro. Privá-los desse direito não é algo banal. Talvez nem seja algo que Filmus possa decidir. Se ele resolvesse desistir, não estaria tomando uma decisão em nome de quem votou nele, e sim dos que não o fizeram. Os numerosos 30% dos cidadãos que não acompanharam nem a Filmus e nem a Macri ficariam privados de um direito substantivo que a lei lhes concede.
A direita nativa deveria por uma vez mostrar espírito democrático, esperar com fé e sem chicanas a sua hora, que tem boas chances de coroar. Sua aspiração deveria ser uma confirmação faustosa, e não saltar uma etapa. Mas tudo indica que este será a partir de agora o norte de boa parte do PRO (Macri possivelmente delegará essa missão, fiel a seu estilo de paz e bom astral) e de vários analistas e editorialistas da direita.
Um cálculo empírico revela que é muito difícil reverter uma vantagem de tantos pontos, mas não impossível. Um caso interessante, relevante, na história recente européia aconteceu em Portugal, em 1988. O dirigente social-democrata Mário Soares ficou em segundo lugar no primeiro turno, com 45,4%. Seu rival, Freitas do Amaral, superou os 46,6%. No segundo turno a situação se inverteu: Soares subiu à presidência com 51,2%, sendo uma figura emblemática da transição portuguesa para a democracia. Outro exemplo ocorreu na Lituânia, numa presidencial em 1998. Quem queira estudar mais casos, inclusive em países mais próximos, pode navegar pelo blog Fruits and votes.
Anticlímax
Telerman esteve perto do segundo turno, o que teria arrematado uma carreira meteórica, de lanterninha a campeão em pouco mais de um ano. Quase desconhecido da opinião pública, sem partido, tornou-se competitivo.
Ele apostou no tudo ou nada, não havia outra saída. Fiel ao seu jeito, seu estilo, seus critérios e sua estética. Talvez tenha confiado demais neles, embora não se possa confirmar tais detalhes sistematicamente.
Se ganhasse, acumularia um enorme patrimônio, para quem partiu quase de zero. Tendo perdido, a carruagem vira abóbora, como a de Ciderela. Ele volta a ficar sem partido, com poucos vereadores (muitos deles ainda por cima com tradição itinerante), sem o charme dos vencedores. Restam-lhe seis meses de governo [Telerman é desde 2006 o prefeito de Buenos Aires] e é possível que lhes sejam penosos. Será preciso ver como caminha seu casamento com a ARI. Não se deram bem com a união; tiveram menos votos que [a deputada da ARI Elisa] Carrió em 2005.
Elisa Carrió: em terceiro
Elisa Carrió, diferentemente de seu sócio de derrota, mudou elementos essenciais de seu discurso e sua praxis. Renunciou a sua intransigência, ao seu afã de sair sozinha, coligando-se com um peronista e uma boa parte do Partido Radical de Buenos Aires.
Esqueceu sua pregação para que os governantes candidatos se licenciassem durante a campanha.
Por anos ela foi, consistentemente, a candidata que fazia campanha sem dinheiro. Em 2003 recusou contribuições, até bônus de 10 mil pesos. Em 2005 rejeitou financiadores arrumados por Enrique Olivera, Em 2007 deixou de lado esta que era uma das suas marcas de fábrica. Uniu seu destino a um governante, que não poupou gastos para se promover.
Ela ficou em terceiro lugar no “seu” distrito. Quiz evitar uma crise da ARI portenha concorrendo por cima, penetrando na selva da realpolitik, deixando para trás farrapos de identidade. Não deu resultado; ontem Elisa perdeu muito mais que um segundo lugar.
Uma jornada de outuno
Houve grande participação, poucos incidentes dignos de menção, a apuração veio bastante cedo. Foi mais uma eleição exemplar, que honra a todos que participaram.
Os que permanecem no páreo celebraram, embora com resultados desiguais. Macri ficou a um passo do seu desejo. O kirchnerismo evitou um desenlace de pesadelo e ganha gás.
Os que ficaram no caminho puseram seus melhores sorrisos; seu calvário e fraturas internas começam hoje.
Dizer que Macri ficou na pole position é dizer pouco. Afirmar que já ganhou é simplesmente inexato.
* Diário de esquerda independente argentino: http://www.pagina12.com.ar