Márcia Denser: TAM, PAN & ACM

“O procedimento aqui é tecer – literalmente, costurar – esta coluna abordando o desastre do Airbus da TAM, o falecimento de ACM e aspectos do Pan a partir de idéias/citações/argumentos/inserções de textos assinados por Flávio Aguiar, editor da Carta Maior

Como a tecedeira/editora sou eu, logo vocês não precisam se preocupar que isso vire algo como um mix verbal de bumba-meu-boi com a fênix, até porque, no final, tudo vai fazer sentido, every thing is gonna be all right, como repetem catatonicamente todos os malditos filmes americanos no globalizado jargão “me engana que eu gosto”.



Então, lá vai: uma das conexões mais óbvias e singelas entre TAM/PAN/ACM está na repetição das letras A e M, que se sugere interpretar como “abaixo a mídia”; já o C solitário mediando ACM oscila mui apropriadamente entre “coronel” e “canalha” porque para o P é natural e fashion ser “perverso (a)” e no mais é só abrir o dicionário e procurar na letra T de “Trouxa”, que é onde se atocha todo o povo brasileiro devidamente. E o N pode ser de… né? (e dá-lhe sintaxe!).



De estalo, Caroni manda ver três perguntas que não querem calar: como explicar a grave derrapagem da imprensa brasileira? Desligamento do transponder ético? Ou problema no reverso da turbina que instrumentaliza politicamente a dor das 200 famílias que choram seus mortos?



Mesmo não dispondo das imagens da torre de controle e de dados retirados da caixa-preta, e devidamente periciados, a imprensa não hesitou em inserir o acidente numa suposta crise gerencial do setor aéreo. Tratava-se de encontrar a ranhura que atingisse o governo. O que estava em causa era a construção da “crônica da tragédia anunciada”. Ao incluir as vítimas fatais no seu cálculo político, mais uma vez a mídia transformou em novelão um drama real, banalizando a vida. O desrespeito aos mortos e a falta de solidariedade às famílias estiveram presentes em quase tudo que se leu, falou ou ouviu na imprensa nativa, horas depois do acidente. O refrão das quase 350 mortes em dez meses, repetido à exaustão por quase todos os veículos, busca dar por comprovada uma grave crise na aviação comercial brasileira sem, no entanto, estabelecer os nexos causais que o demonstrem.



Aí entra Bernardo Kucinski, cujo artigo me pareceu o melhor entre todos. Segundo ele, tragédias como a da TAM, da Gol, do Concorde em 2000, dos petroleiros nos anos 70, da plataforma P-36, das obras da linha 4 do Metrô paulistano tiveram causas específicas, mas uma é sistêmica: a ganância pelo dinheiro.



O grande desastre com o Concorde, ocorrido em Paris em julho de 2000 e que levou ao abandono do uso desse supersônico na aviação comercial três anos depois, tem um elemento comum com o do Airbus: o gigantismo dos aviões. O Concorde era um gigante, com capacidade para mais de cem passageiros e 185 toneladas na decolagem. Foi derrubado por um pedaço de arame, não por causa do tamanho do arame, mas por causa do tamanho do avião. O Airbus 320 também é um gigante. Pode decolar com até 77 toneladas.



Os engenheiros dizem que ele precisa de 2.200 metros de pista para pousos com margem razoável de segurança. A pista de Congonhas tem 1.939 metros. Dá para pousar. Pousou inúmeras vezes. Mas a permissão para o Airbus operar em Congonhas, sem muita margem de segurança, não é mero acaso, é uma imposição do mercado. Da voracidade da demanda por assentos em vôos regionais. Da ganância.



Em janeiro deste ano, um desabamento engoliu sete pessoas nas obras da linha 4 do metrô de São Paulo. Um grande desastre. Certamente provocado por causas específicas. Talvez, erros nos índices de estabilidade do solo ou na aplicação das camadas de cimento do túnel, agravadas pelo recurso a explosões como método de escavação. O consórcio tinha pressa. As mesmas empresas iriam depois operar a linha 4 em regime de concessão. Havia prêmios de desempenho para as subcontratadas que ganhassem tempo no cronograma de trabalhos. O Estado olhava para o outro lado, porque também tinha interesse político numa inauguração antes das eleições municipais de 2008. O menor tempo teve preferência sobre a maior segurança. Política, ganância e negligência do Estado.



O desastre com o avião da Gol foi uma tragédia em que o acaso falou mais alto. Mesmo assim, houve influência de pelo menos um fator sistêmico: o regime de trabalho dos controladores de vôo, em número insuficiente para o mercado que cresceu rapidamente. Duas décadas de neoliberalismo impediram que Estado contratasse mais servidores, que fizesse concursos públicos. Seu mote era terceirizar e privatizar. Esvaziar o aparelho de Estado. Enquanto isso, o transporte aéreo crescia e crescia.



O infalível tripé negligência, ganância e neoliberalismo: contra o pensamento sistemático do Kucinski não há subcapitalismo que resista.



Mino Carta encerra o capítulo TAM-Congonhas (de trouxas e de canalhas) com um deboche refinadíssimo: “E que tal a autorização da Prefeitura de São Paulo para a instalação de um posto de gasolina na cabeceira da pista do aeroporto de Congonhas? Bin Laden não conseguiria ter uma idéia mais brilhante.”



Também são do Mino estas reflexões sobre o PAN: “Instalações imponentes em meio à paisagem desoladora das favelas. Símbolo, emblema, estandarte do Brazil-zil-zil. Até os nomes das novas praças esportivas prestam-se ao contraste feroz. Enaltece a desfaçatez e a prepotência. Estádio João Havelange, o monumental aproveitador do esporte que transformou a Fifa em uma societas sceleris. Mas é assim mesmo… Em São Paulo, temos o conjunto viário jornalista Roberto Marinho. Na Bahia, o aeroporto deputado Luis Eduardo Magalhães.”



E, falando no diabo, eis algumas considerações extremamente precisas de Flávio Aguiar sobre ACM. Que, para ele, não era um coronel tradicional. Seu poder não vinha da posse da terra. Era ligado a impérios da comunicação e aos centros urbanos. Mas tinha o estilo dos velhos coronéis, talvez mais do que ninguém. Sua morte, aos 79 anos, é mais um sinal dos tempos, de que pelo menos na política institucional esse estilo vem definhando, substituído por outros tipos de conluio e dominação. O coronelismo possuía duas características fundamentais: o mandonismo (que podia ou não se aliar ao carisma) e a agregação tribal. Antonio Carlos Magalhães praticava as duas, e tinha carisma pessoal na Bahia. Foi partícipe de uma tragédia política e familiar: a morte, na casa dos 40, do filho Luís Eduardo Magalhães, que era para ser o grande sucessor “moderno” do patriarca. O deputado federal ACM Neto e o filho do velho senador, que o substituirá na tribuna, ainda não estão à altura de serem considerados de fato “sucessores” de ACM, embora sejam seus herdeiros políticos mais próximos.



A eleição surpreendente de Jaques Wagner, do PT baiano, ainda no primeiro turno, para o governo estadual, consolidou a impressão de que o carlismo encontrara seu Waterloo. Entretanto, ainda está pra se ver se de fato o coronelismo está morrendo no Brasil, ou está se transformando num novo estilo tribal, desenvolvendo aquilo que os especialistas vêem como uma forma limite do coronelismo, que era o “colegiado”. Hoje a política conservadora se faz em torno de colegiados que se agregam em torno de uma grife eleitoral. Por sua vez, a mídia oligárquica se organiza em torno de colegiados de grifes jornalísticas que desatam em quase uníssono campanhas antiesquerda e antipovo na política. Como quase tudo no Brasil, o coronelismo não morre, mas se transforma, conclui filosoficamente Aguiar.



E por derradeiro, a morte de Tonhão Malvadeza me faz recordar uma frase recorrente do Millôr nos anos 70, que aconselhava iniciar a leitura dos jornais pelos anúncios fúnebres porque, de repente, poderíamos ser agradavelmente surpreendidos…



A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas – uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária. Texto publicado originalmente no site Congresso em Foco