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Flávio Aguiar: Eu também cansei

Compreendo que no jornalismo em que, de acordo com as regras, a informação é mercadoria, seja indispensável alongar o noticiário. Mas, diante do anúncio do movimento “Cansei!”, resolvi declarar que eu também “cansei”.
Por Flávio Aguiar, na Carta M

Diante do anúncio do movimento “Cansei!”, a partir da situação desorganizada do sistema aéreo brasileiro, resolvi declarar que eu também “cansei”. Estou cansado da novela interminável – com todo o respeito pelos familiares e amigos das vítimas – que se prefigura em torno da tragédia. Compreendo que no jornalismo onde, de acordo com as regras, a informação é mercadoria, e possui, como toda a espécie, o seu fetiche, seja indispensável alongar o noticiário. Ainda mais no tônus atual onde a cada dia é necessário produzir um espetáculo aparentemente revolucionário que tudo mude e tresmude.



Entretanto o que se vê é prática próxima da lei de Lynch, aquela em que se lincham suspeitos sem direito à defesa. Assim como existem (e isso é natural) uns 185 milhões de técnicos de futebol no país, agora passaram a existir algumas dezenas de técnicos em aviação nas redações. E os dedos em riste apontam, como metralhadoras giratórias, em busca da bola da vez.



A primeira bola foi da pista de Congonhas e do governo. Falou-se da falta de ranhuras, de aquaplanagem, montou-se a história do “governo assassino”, assim como no caso do brasileiro Jean Charles, morto pela incompetência e pela violência da polícia britânica em Londres, se disse que na arma do crime estavam as digitais do presidente brasileiro pelo elevado desemprego no país.



Depois, diante das imagens que registraram a velocidade do avião na pista de Congonhas, sem descartar a possibilidade da aquaplanagem e da falta de ranhuras, aventou-se a possibilidade da tentativa de arremetida por parte dos pilotos. No emaranhado de declarações entraram em cena a possibilidade de haver problemas de manutenção por parte da TAM e também problemas técnicos no avião, o airbus.



Com o passar dos dias a vilania do “crime” passou para o mecanismo de freagem do avião, que não teria funcionado, para o sistema de computadores do avião, que teria “dado” uma ordem reversa àquela que se esperava do piloto. Agora é a vez do piloto, e o acidente se deveria à falha humana, o que livraria empresas, o aeroporto, e tudo o mais. Até o momento o que se pode ter ao certo é que nenhuma das hipóteses pode ser descartada de todo, pelo menos até o final das investigações. E que elas são nada mais nada menos do que hipóteses até sua comprovação.



É muito provável que se chegue, como no caso do acidente do avião da Gol, a um conjunto de fatores que, alguns simultaneamente, outros em sucessão, provocaram a tragédia. A tragédia vem, em todo caso, sendo armada há muitos anos, com as decisões que foram tomadas em torno do aeroporto de Congonhas, e também decisões que “não” foram tomadas. Transformar Congonhas na pista principal da aviação brasileira foi um erro, até porque se teve a oportunidade de “não fazê-lo”.


 


Quando da inauguração do aeroporto de Guarulhos, falava-se em Congonhas como um aeroporto de porte regional e de ponte aérea para três outras capitais, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Ganância, comodismo, consumismo criaram um círculo vicioso que culminou na tragédia de dez dias atrás. Se responsabilidade cabe ao atual governo foi a de “não ter pensado de modo diferente dos demais”. Pensado e agido. Também, possivelmente (não tenho dados precisos a respeito), a de não ter avaliado corretamente o alcance da crise da Varig, pensando que ela seria do mesmo porte daquelas da Transbrasil e da Vasp. Não foi, foi bem maior, assim na terra como no céu.



A crise deflagrada ou intensificada a partir da tragédia do vôo 3054 mostra assim vários gumes:


1. Como em outras ocasiões, mostra a fragilidade do funcionamento social previsto a partir do conjunto de desregulamentações da vida brasileira com base no novo laissez-faire da ideologia liberal. Digo novo laissez-faire porque esse depende em gênero, número e grau das ações do Estado, não no sentido de regular algo, mas ao contrário, de desregular, e de impedir que se regule novamente o desregulado.


2. Como no caso do aquecimento global, a crise mostra que não basta mudar os conceitos produtivos e comerciais; é necessário também mudar os padrões de consumo, é necessário fazer declinar no imaginário coletivo o consumidor (sem perder de vista seus direitos) e fazer subir o cidadão, seus direitos e deveres.



3. Tirando algumas excrescências golpistas (comentadas aqui na Carta Maior por artigo recente de Marco Aurélio Weissheimer) a crise evidenciou o despreparo do jornalismo conservador brasileiro: não há acúmulo de informação, não há construção de uma pauta, o que há é o afã de desancar o governo e de procurar a manchete de ocasião. Linha informada é dos artigos de Bernardo Kucinski (por exemplo) aqui na Carta Maior e dos comentários de Paulo Henrique Amorim em seu blogue (por exemplo, deve haver outros). Todos apontam para a necessidade de se aguardarem as investigações abalizadas.



* Editor-chefe da Carta Maior; fonte: http://www.agenciacartamaior.com.br