Sem categoria

Como e por que a mídia passou a falar melhor dos quadrinhos

Por Paulo Ramos (Blog dos Quadrinhos)
Havia sinais de fumaça desde o ano passado de que a mídia, principalmente a impressa, começava a enxergar os quadrinhos de uma forma diferente. A quantidade de alertas aumentou sensivelmente neste mês. Dei

A revista Época da semana passada trouxe uma matéria sobre a chamada literatura em quadrinhos. Segundo a reportagem, os novos “reis do mundo” não são Super-Homem ou Hulk, e sim Machado de Assis e Eça de Queirós (alusão às adaptações de O Alienista e A Relíquia, lançadas neste ano).


 


A IstoÉ – também da semana passada – trouxe uma matéria de duas páginas a respeito do mesmo assunto: a ida dos quadrinhos às livrarias. Havia um tom de surpresa no texto. Fica nítido logo na abertura da reportagem: “Muita gente ainda acha que histórias em quadrinhos são coisa de criança. Ou de nerd. É só ir na livraria mais próxima e ver que esse mercado não é mais o mesmo.”


 


A revista Língua Portuguesa deste mês traz uma reportagem de seis páginas sobre o jornalismo em quadrinhos, gênero que ainda se firma e que tem no jornalista maltês Joe Sacco o principal representante. A matéria, feita por Luiz Costa Pereira Junior, é representativa por dois motivos: 1) é uma das mais completas sobre o assunto; 2) leva o tema “quadrinhos” a um universo de leitores que tradicionalmente não acompanha quadrinhos.


 


Reportagem


 


O maior exemplo, no entanto, foi visto no último domingo. E também sobre jornalismo em quadrinhos. A Folha de S.Paulo publicou 16 páginas em quadrinhos feitas por Joe Sacco. A reportagem em quadrinhos foi veiculada no “Mais!”, caderno voltado a literatura e artes.


 


O caderno é lido principalmente pelo grupo rotulado como “formador de opinião”, que, embora pequeno, influencia o modo como outros enxergam temas artísticos. A presença da história de Sacco no caderno repercutiu, dentro e fora do jornal.


 


O ombudsman da Folha, Mário Magalhães, incluiu a história na crítica interna que envia diariamente à redação (e que pode ser lida na versão virtual do jornal). Diz Magalhães: “o melhor da Folha no domingo, na minha opinião, foram os quadrinhos sobre a guerra no Iraque, de autoria de Joe Sacco, no Mais!”


 


Há seguramente outros exemplos. Mas os elencados aqui já bastam para mostrar que o discurso sobre quadrinhos lido na mídia impressa é outro, se comparado ao visto até então. Pessoas que historicamente ignoravam quadrinhos passaram a noticiar o tema. O que levou a essa mudança?


 


Nova pauta


 


Os quadrinhos historicamente foram o “patinho feio” das artes nos cadernos de cultura dos jornais, tidos como formadores de opinião. “Formadores” porque fazem um recorte de tudo o que é produzido em termos artísticos dentro e fora do país e o leva até o leitor, na forma de notícia.


 


Havia – e há ainda – nesses cadernos uma espécie de bloqueio invisível à área. É como se o assunto não interessasse ao público consumidor de cultura. E, se não era noticiado, o fato simplesmente não existia aos olhos do grande público.


 


Cinema, teatro, música, dança, pintura e outras formas de arte sempre existiram com força e prestígio no discurso coletivo da sociedade. Não é coincidência o fato de serem sempre noticiados.


 


Havia – e há – poucas e louváveis exceções. Um caso são os poucos colunistas de quadrinhos que marcam presença nos jornais desde a década de 1960. Alguns nem recebiam para escrever sobre lançamentos da área (algo que ainda acontece). Faziam (ainda fazem) por puro amor à arte.


 


Outra exceção é a mídia especializada virtual, na qual este blog se inclui. Esse tipo de página tende a ser lida com mais freqüência por consumidores de quadrinhos, e não pelo grande público (embora alguns, como este blog, freqüentem a página principal de determinados portais na forma de chamadas). São sites importantes, mantidos por pessoas sérias, que normalmente lêem e acompanham quadrinhos.


 


A novidade é que agora quem também noticia o assunto, até com profundidade, é o jornalista que atua na mídia impressa e que historicamente ignora o tema. Repito a pergunta feita na postagem anterior: o que levou a essa mudança de discurso na chamada “grande mídia”, em especial na impressa? Do que se pode ver no calor dos acontecimentos, não se trata de um reconhecimento tardio ou algo do tipo.


 


Outro olhar


 


O ponto é que os quadrinhos tomaram posse de dois aspectos valorizados pelos “formadores de opinião”. O primeiro foram as livrarias. A notícia de que o número de obras em quadrinhos em parte das grandes livrarias aumentou 30% de 2006 para cá, noticiada ontem por este blog, é uma das informações mais relevantes deste ano para a área.


 


O formador de opinião – o profissional que noticia cultura e a pessoa que a consome e divulga – agora esbarra com quadrinhos na hora em que vai comprar livros. E o que ele vê se parece com livros, com a mesma qualidade editorial. Não é algo “descartável”. É um bem durável. É um outro olhar.


 


O outro ponto é que os quadrinhos se vincularam a três rótulos pra lá de prestigiados em todos os âmbitos sociais: educação e, principalmente, jornalismo e literatura. Aos olhos do formador de opinião e do novo consumidor, não se trata de quadrinhos feitos com viés jornalístico. É exatamente o contrário. É jornalismo produzido em quadrinhos.


 


Destaca-se em primeiro lugar o teor jornalístico, valorizado socialmente, tido como “sério”. Os quadrinhos vêm em segundo plano, acompanhando o rótulo “principal”. Há uma sensível diferença.


 


Pelo mesmo raciocínio, não se trata de literatura em quadrinhos. É, do ponto de vista do público que não acompanha o tema, literatura feita em quadrinhos. Não é por acaso que as notícias deste mês abordaram basicamente esses dois temas, jornalismo e literatura.


 


Inserção maior


 


Mais um dado comprova essa leitura. As editoras de quadrinhos aumentaram o número de inserções na mídia impressa. A Devir registra esse crescimento. A Conrad, também. O caso da Conrad é ainda mais revelador. Segundo a assessoria da editora, a média mensal de notícias sobre lançamentos em quadrinhos da Conrad de janeiro até o começo de agosto foi 15. Em todo o ano de 2006, a média mensal de notícias foi 14.


 


O recorde foi deste ano foi com a adaptação literária de A Relíquia, feita por Marcatti. A Conrad contou 41 matérias sobre o assunto nas mídias impressa e virtual. O Mundo Mágico, último álbum de Calvin e Haroldo, teve 28 matérias noticiando o lançamento neste ano. Em 2006, o álbum que teve mais inserções na mídia foi a primeira coletânea das histórias de Valentina. Foram 27 notícias.


 


Uma das discussões que sempre nortearam a área era se quadrinhos eram literatura ou uma linguagem autônoma (embora com um claro diálogo entre as duas formas de arte). Sempre defendi que associar quadrinhos à literatura era uma forma de buscar um rótulo socialmente aceito e prestigiado – a literatura – para justificar a aceitação dos quadrinhos.


 


Ironicamente, foi o que ocorreu. Corrigindo: que está ocorrendo. A apropriação dos termos “literatura” e “jornalismo” ajudou a furar o bloqueio invisível da mídia impressa, que dá sinais de que começa a ver os quadrinhos como “algo sério”. Não pelos quadrinhos em si, mas pelas livrarias, pela educação, pelo jornalismo, pela literatura.


 


Não deixa de ser relevante. E é uma porta de entrada para que outros gêneros dos quadrinhos sejam, enfim, descobertos. Tardiamente descobertos.