Arquiteta analisa a polêmica do patrimônio histórico de São Paulo
A polêmica que envolve a Câmara Municipal, a Prefeitura de São paulo é o Conpresp, órgão que determina os tombamentos históricos da cidade, são analisados pela arquiteta Rosana Miranda. Os motivos dessa polêmica envolve o poder econômico e os interes
Publicado 27/08/2007 12:37 | Editado 04/03/2020 17:19
São Paulo, patrimônio cultural ameaçado.
A preservação do patrimônio cultural de São Paulo está ameaçada com a recente decisão da Câmara Municipal de querer controlar as resoluções do CONPRESP. Foi uma decisão questionável do ponto de vista jurídico, pois o CONPRESP é um órgão do Executivo Municipal e portanto, é sua competência propor legislação para sua regulamentação, atribuições e resoluções, portanto a lei aprovada deverá ser anulada como inconstitucional pelo vício de iniciativa.
Mas, é preciso esclarecer que além disso, o próprio instituto jurídico do tombamento regulamentado pelo decreto-lei federal 25 de 1937, que completará 70 anos no próximo dia 30 de novembro, mantém-se em vigor pela importância que a questão cultural teve e continua tendo para a consolidação do Estado brasileiro nos últimos setenta anos, independentemente do partido político que estivesse à frente do Governo.
Os órgãos de tombamento são responsáveis também pela preservação do patrimônio ambiental e paisagístico e seria muito grave que isso tivesse que passar pelo crivo dos interesses políticos do legislativo municipal ou estadual pois a destruição dos bens poderia ocorrer antes mesmo de um solução definitiva a cerca do tombamento.
Os Conselhos de preservação do patrimônio fundamentam suas decisões após uma ampla pesquisa técnica e histórica, e, garantem a permanência dos bens, enquanto não concluem esta análise, e seria altamente tendencioso se o legislativo pudesse alterar essas decisões, não restaria bem nenhum para contar nossa história.
A polêmica maior tem sido com relação às áreas envoltórias de bens tombados, os especuladores imobiliários, e, agora, a Câmara Municipal de São Paulo questionam a proteção dessas áreas com regulamentação específica alegando que isso é competência das leis de uso e parcelamento do solo. Trata-se de uma visão bastante obtusa e tendenciosa que vê o bem tombado em si e não o que ele representa para seu entorno. O bem tombado como disse uma vez o geógrafo Aziz Ab´Saber, a respeito do tombamento do Instituto Biológico e de seu entorno, deve irradiar o seu conteúdo simbólico para a sociedade para que ela possa compreender o seu significado, respeitá-lo e cuidar para que sua história enriqueça a cultura dos cidadãos.
Lamentavelmente nem todos os vereadores do PT votaram contra o projeto de lei na Câmara Municipal e isso reflete uma incerteza de sua concepção com relação aos papéis entre os poderes do Estado e uma omissão em relação a uma questão de enorme importância para a vida urbana, que é a memória de uma cidade, dos momentos que marcaram seu desenvolvimento e sua construção.
Há um desejo latente hoje na sociedade paulistana de preservar sua memória como forma de resistir à globalização que massifica imagens, padrões de consumo, impõe modelos de cidades que nada tem a ver com o espaço geográfico brasileiro e paulistano, nem tão pouco com a sua história. Preservar a história de São Paulo através do seus bairros e edifícios é um desafio para aqueles que produzem e planejam a cidade.
Um pouco de história não faz mal a ninguém.
Segundo o arquiteto Luís Saia em seu livro a Morada Paulista, São Paulo é uma das poucas cidades paulistas que não surgiram a partir da economia do café. Foi uma cidade fundada para ser sede da capitania de São Vicente, após tentativa mal sucedida de sua instalação no litoral.
Colonos portugueses e jesuítas decidiram subir a Serra do Mar, no ponto mais fácil de transposição numa altitude de 760 metros, uma situação bem melhor que a altitude de quase 2000 metros na altura do Vale do Paraíba, uma barreira quase intransponível em lombo de burro.
As dificuldades que o sítio geográfico de São Vicente apresentava com suas terras alagadiças, numa faixa estreita do litoral com a presença da grande barreira que representava a Serra do Mar foram a principal razão para esta decisão e os colonos aproveitaram a experiência dos índios e seu deslocamento freqüente entre o litoral e o planalto.
Perceberam que havia uma vasta planície no topo da Serra Mar, no planalto, que abrigava um grande povoamento indígena, o qual atraiu os colonos portugueses pela possibilidade de servirem como mão de obra nas plantações da cana de açúcar e aos jesuítas para sua catequese e domínio do gentio.
Então São Paulo nasce com duas funções básicas, a de sede política, e a do domínio do território pelo trabalho e pela catequese. A primeira parada foi em Santo André da Borda do Campo, cujo próprio nome já diz borda do campo, dos campos de Piratininga. Daquele imenso campo, cortado por rios de fácil acesso para o interior e com uma larga extensão territorial de Guararema, a Bom Jesus de Pirapora, de Embu- Guaçu a São Bernardo.
Posteriormente, se deslocam para o local onde hoje fica o Pátio do Colégio, no centro de São Paulo, para instalar o colégio dos jesuítas num sítio geográfico estratégico, a Colina Histórica, com grande visibilidade para a várzea dos rios Tamanduateí, Anhangabaú e Tietê que protegeria a sede da capitania das investidas dos habitantes originais desta terra, as diversas tribos indígenas de São Paulo.
Os aldeamentos indígenas organizados pelos jesuítas para seu domínio se localizaram nos quatro extremos da região metropolitana. Esta é mais uma característica da história da cidade, São Paulo já nasceu metrópole, e se desenvolveu cosmopolita durante todo o período do século XVII e XVIII, apesar do eixo econômico do país se deslocar para as “Minas Gerais” em função da descoberta do ouro, pois, por aqui passavam os viajantes e a cidade passa a ser segundo Caio Prado Jr., um “feixe de caminhos”, com várias direções, para todas as regiões do interior do país, e mais tarde para a sede do império, no Rio de Janeiro.
O período cafeeiro também reforçou este papel de entroncamento, de passagem entre o porto de Santos e o interior das fazendas de café, veio a ferrovia e a indústria, que mais tarde ganhará força e tornará esta cidade a maior cidade industrial fora dos continentes das grandes potências.
São Paulo apresenta uma conformação diferenciada no território brasileiro, em que a metrópole está geograficamente separada do porto pela barreira da Serra do Mar, mas nem por isso esta ligação deixa de ter importância estratégica para o desenvolvimento regional e do país.
Entre as décadas de 30 e 40 a força da urbanização de São Paulo se consolida pelo excedente da riqueza do capital oriundo do café e da expansão da classe operária urbana. E a industrialização de São Paulo vai estruturar definitivamente o papel da metrópole no cenário nacional atraindo mão de obra de todos os cantos do país e do mundo. Primeiro a partir da imigração, principalmente italiana, depois pela migração interna que vai ser atraída pelo trabalho e pela fome no campo do Nordeste.
Essa população, que vai demandar espaço para viver, num primeiro momento vai viver em vilas operárias e mais tarde vai encontrar uma grande oferta de loteamentos abertos pela nova classe de empresários cujo negócio é a terra urbana, que da década de 50 até a década de 70, no século XX, no Brasil, não encontrava nenhuma lei mais restritiva que colocasse limites para a obtenção de um grande lucro nessa atividade e que gerou grande parte do caos urbanístico paulistano.
Estes processos geraram uma cidade ao mesmo tempo democrática, pela oferta de trabalho, mas, também segregada pela separação geográfica dos bairros dos trabalhadores em confronto com a cidade dos ricos e dos setores médios.
A marca dessa história de São Paulo encontra-se preservada através dos edifícios e do desenho dos bairros industriais e operários da cidade ao longo da várzea dos rios Tamanduateí e Tietê, e da ferrovia Santos Jundiaí, antiga São Paulo Railway (SPR).
Estes bairros entraram em decadência, mas, sobreviveram mesmo após o deslocamento da indústria para a região do ABC com a chegada da indústria automobilística na década de 50, e um dos fatores que explicam esta sobrevivência foi a forte presença de descendentes de imigrantes e o encortiçamento que abrigou milhares de trabalhadores sem moradia que se inseriram no novo tipo de trabalho ofertado nas áreas mais centrais, o setor de serviços.
A oferta de lotes populares que constituiu a periferia de São Paulo se reduz na década de 70 e esta produção se torna inacessível aos trabalhadores como alternativa de moradia e se intensifica o crescimento das favelas na cidade, permeando quase todos os bairros.
Na década de 80 a cidade expande sua urbanização com as ocupações de terra nos vazios urbanos, organizadas pelos partidos e grupos políticos de esquerda e assim se abre uma nova interlocução com os movimentos populares com a redemocratização do país.
No entanto, a visão neoliberal do Estado brasileiro durante toda a década de 90 acabou por gerar descontentamentos de setores que achavam que haviam conquistado a tranqüilidade da vida urbana com qualidade.
A grande palavra de ordem era privatizar, e isso, se refletiu em todas as áreas das políticas públicas. Do abastecimento de água, à telefonia, do uso intensivo do solo urbano mediante pagamento, da entrega de equipamentos públicos de saúde a empresários disfarçados de cooperados e por aí vai.
Assim, São Paulo vem perdendo o pouco que alcançou no avanço dos mecanismos de planejamento urbano e de conquistas sociais logo após o fim da ditadura, e vem sofrendo reveses de estagnação que fazem com que este grande polo gerador de empregos do território nacional vá perdendo população, mas, não consegue com a redução de seu crescimento populacional, reduzir seus problemas, por causa do empobrecimento de grande parcela dos setores médios e populares.
Estes setores são empurrados para uma nova fronteira urbana, ocupando áreas ambientalmente frágeis, agravando problemas de transporte, de abastecimento de água, de depósitos de lixo e acesso à habitação com dignidade.
E as áreas mais antigas e urbanizadas da cidade vão se elitizando com um projeto de cidade onde se constróem verdadeiras cidadelas auto-suficientes, os condomínios de alto padrão, que evitam ao máximo o contato com o restante da população, criando um urbanismo fechado em si mesmo, e seus moradores pouco se importam com o destino dos espaços públicos.
Mas, as favelas, ao contrário da cidade, crescem no mesmo espaço físico, internamente, num processo de desdobramento de pequenos cômodos que constituem a moradia das famílias agregadas e num espaço urbano cujo desenho é terra de ninguém criando o ambiente propício, sem a presença do Estado, para o crescimento da violência urbana que cria um grande ressentimento nos jovens desprovidos de tudo.
A visão neoliberal de Estado em que tudo pode se resolver com a chamada parceria público privado pressiona a organização espacial da cidade para que os interesses dos negócios imobiliários se desenvolvam sem restrições e isso inclui redesenhar áreas históricas que identificam os períodos que marcaram nossa identidade como metrópole, desde a fundação da cidade até o início da industrialização, em nome de viabilizar recursos para o financiamento de políticas e obras públicas.
Reconstruir e recuperar a cidade a partir de seu patrimônio cultural
E assim, os bairros da Mooca, Ipiranga, Brás, Barra Funda, Lapa, Cambuci, Vila Mariana, estão ameaçados pela investida do setor imobiliário que não se interessa pela construção coletiva da sociedade, apenas por seus negócios e não desiste enquanto não contamina as instituições públicas que cuidam da cidade.
Vivemos um momento da economia em que a concentração das riquezas nas mãos de poucos dificulta uma visão mais ampla de sociedade, de civilização. A ganância em nome dos negócios e do crescimento econômico coloca em risco todo um patrimônio cultural que necessita ser valorizado e recuperado para que se possa recuperar o orgulho de nossa cidade.
Além disso, o patrimônio cultural não se resume aos edifícios e sim a todas manifestações produzidas pela sociedade e que sejam por ela reconhecidos como expressão da sua cultura, de sua identidade.
A sociedade paulistana, que lançou sua identidade modernista em 1922, reage quando vê sua memória sendo dilapidada e os governantes que sabem valorizar esta preocupação e dar resposta precisa a este anseio conquistam a simpatia dos mais amplos setores de opinião.
Os registros que restam da grande cidade industrial que São Paulo já foi e ainda é, apesar da tendência de se tornar uma metrópole de serviços, e a memória da vida cotidiana da classe operária paulistana, bem como das marcas do período colonial e do império, dependem da derrota dessa visão mercantilista do espaço urbano e da mobilização da sociedade para cuidar de seu patrimônio cultural e exigir a autonomia dos órgãos de preservação do patrimônio cultural.
É possível se aproveitar o enorme parque construído dessa memória urbana para outros usos, sem a ganância do setor imobiliário, com planejamento, investindo em projetos, gerando empregos e formando jovens para a atividade de restauro, agregando educação e cultura na recuperação da cidade. Ouvindo e respeitando a memória dos idosos, dos imigrantes, italianos, portugueses, lituanos, árabes, japoneses, dos afro-descendentes, dos indígenas que ainda vivem nas poucas aldeias que ainda restam em São Paulo.
Sem história, um povo não tem referências para construir seu futuro, perde seus valores culturais, não valoriza sua cidade, não participa da construção de um novo patamar de cidadania, não há desenvolvimento.
São Paulo pode crescer sem perder a grandiosidade de sua história marcada pela miscigenação e pela condensação de várias culturas, idéia tão bem expressa nas palavras de Darci Ribeiro: “do índio herdamos o companheirismo, do negro a espiritualidade e dos europeus tecnologia e a ciência, o que fez do Brasil uma grande nação mestiça tropical”.
São Paulo deve ter o orgulho de melhor expressar a síntese dessa mistura.
A história também serve para criar cidadãos.
Rosana Miranda, é arquiteta e Urbanista, doutora pela Universidade de São Paulo com tese sobre o bairro da Mooca, e especialista em Renovação de Centros Históricos pelo IHS – Institute For Housing and Urban Development Studies de Rotterdam, Holanda. Diretora Cultural da Associação de Moradores e Amigos da Vila Mariana.