Sem categoria

Le Monde: As origens de uma fratura que divide a Bélgica

A hipótese de uma separação da região de Flandres de língua holandesa e da Valônia francófona, à qual deve ser acrescentada uma incerteza em relação ao destino a ser reservado para Bruxelas, a capital bilíngüe, deixa de ser um tabu no reino belga. Até mes

No decorrer da sua história, o reino viveu em função de diversas linhas de fraturas: filosófica, social, política. Entretanto, é a fratura lingüística que sempre pareceu ser a mais determinante. A reivindicação em defesa do respeito da língua flamenga serviu de combustível para o movimento nacionalista que, até hoje ainda, concentra com freqüência as suas críticas contra a ''arrogância francófona'' para justificar a sua conclamação à autonomia.



A origem desta oposição remonta a 1815, quinze anos antes do nascimento do Estado belga. No Congresso de Viena, os vencedores de Napoleão decidiram remodelar a Europa. Os antigos Países-Baixos austríacos, o principado de Liège e as Províncias-Unidas foram então reunidos para integrar os Países-Baixos, sob a autoridade de Guilherme 1º de Orange. O novo conjunto, coerente no plano econômico, estava longe de apresentar esta qualidade nos planos político, religioso e lingüístico. Guilherme 1º resolveu restringir as liberdades; ele atuou em detrimento dos católicos – majoritários nas regiões belgas – e impôs o holandês como língua oficial, prejudicando uma população que falava ora o francês, ora um dialeto flamengo distante da língua praticada na Holanda.



Na França, a revolução de Julho incentivou as duas principais correntes políticas da época, a católica e a liberal, a se unirem para expulsar os holandeses. A revolução belga de 1830 é promovida por cidadãos de todas as regiões; o mundo político, que dotou o país de uma Constituição muito liberal, foi integrado por 40.000 notáveis que falavam exclusivamente o francês, a língua quase-oficial em novembro de 1830. A tradução flamenga do ''Boletim das Leis'' não teve nenhum caráter oficial. É verdade, os cidadãos que responderiam perante a justiça poderiam falar o flamengo – ou o alemão – diante do seu juiz, caso este entendesse esta língua (o que é raro). Charles Rogier, um herói da independência, sublinhou que, em todas as funções civis e militares, seria preciso falar o francês, para ''destruir paulatinamente o elemento germânico''.



A continuação desta história por muito tempo foi marcada pelo desdém dos francófonos e pelo lento crescimento das reivindicações dos flamengos. Apesar de serem majoritários, conforme revelou um primeiro censo (em 1846, havia 2,4 milhões deles para 1,8 milhão de francófonos), eles tiveram ainda assim de esperar até o ano de 1873 para que o flamengo se tornasse a língua normal dos processos judiciários nas suas províncias, e até 1898 para que as leis do país fossem publicadas nas duas línguas!



Diversas histórias de condenados à morte que não entendiam o enunciado do seu julgamento, ou de soldados incapazes, em 1914-1918, de compreender as ordens alimentaram um discurso que, já nesta época, contestava a existência de uma nação belga homogênea. Repercutindo essa situação, o valão Jules Destrée escreveu, em 1912, uma vibrante carta ao rei em que proclama: ''Sire, deixe-me lhe dizer a verdade, a grande e aterradora verdade: não existem belgas''. No mesmo ano, uma Assembléia valônia, suspeitando os flamengos de quererem constituir ''um país distinto'', reclama ''uma união baseada numa independência recíproca''.



''Com a Bélgica se for preciso, sem ela se for possível''



Durante a Primeira Guerra Mundial, o ocupante alemão conduziu uma política de reformas internas, atendendo à solicitação de ''ativistas'', adeptos de uma colaboração suscetível de concretizar os objetivos do movimento flamengo. Um episódio idêntico ocorreu em 1940-1945 e, com isso, a reivindicação flamenga de autonomia perdeu temporariamente a sua credibilidade. Tanto entre as duas guerras como depois delas, várias reformas, no entanto, visaram a reconhecer a língua holandesa na sua dignidade e a aplainar os conflitos, com a ajuda de um processo de reformas institucionais.



O esquema atual, com as suas três regiões e suas três comunidades, é baseado num sistema de ''duplo federalismo'' e se revela de uma infinita complexidade. Isso porque ele criou ou transformou progressivamente determinadas instituições sem nunca fazer desaparecerem as precedentes. E também porque ele misturou a reivindicação inicial dos flamengos – a autonomia cultural – com aquela dos valões – o federalismo econômico -, ainda que ele sempre tivesse dado a impressão de contestar, até 1993, o próprio princípio do federalismo…



A questão que de agora em diante está no cerne do debate belga – e europeu – é aquela da pertinência de um ''modelo'' desse tipo. Ele era provavelmente o único remédio possível, mas enfrenta cada vez mais dificuldades em federar populações que conhecem, já faz algumas décadas, evoluções econômicas, políticas e culturais muito divergentes. A região de Flandres, majoritária, de direita, empreendedora e que vive um período de grande prosperidade, ainda que ela esteja afligida por uma forte interrogação identitária, acomoda-se mal com uma Valônia de centro-esquerda que tarda a se modernizar, e que confia em primeiro lugar nos poderes públicos e num partido, o PS, manchado por escândalos.



O historiador Marc Reynebeau, em seu livro, ''Histoire Belge'' (editora Racines), cita os outros fatores que favoreceram este distanciamento: ''Uma comunicação mútua quase inexistente, o tradicional desconhecimento da língua holandesa por parte dos francófonos, a famosa capacidade dos flamengos de falarem várias línguas, que está em franca regressão, além da ausência de meios de comunicação comuns. Daí essa tendência a prestar mais atenção nas diferenças mútuas do que nas afinidades''.



Marc Platel, um outro autor flamengo, prefere citar um antigo homem político francófono, Lucien Outers, para resumir a situação belga: ''Os compromissos deixam de constituir o denominador comum das satisfações, tornando-se a soma dos descontentamentos''. Após ter sido por muito tempo um adepto da fórmula flamenga ''Com a Bélgica se for preciso, sem ela se for possível'', ele mudou de rumo, assim como muitos outros, tornando-se um separatista.



Um jurista francófono, Michel Leroy, arriscava uma outra aposta, já em 1996: uma evolução que poderia conduzir a uma desagregação do Estado. Além de ''um futuro caracterizado por uma corrida de lentidão entre esta desagregação e a construção européia''.



Fonte: Le Monde