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Hobsbawm  prevê fim do império americano

Eric Hobsbawm, o pensador marxista britânico, 90 anos, proclama que ''a única certeza que podemos ter sobre a atual superioridade norte-americana é que ela será, para a história, apenas um fenômeno temporário, como foram todos os impérios''. Embora

Folha – Em A Era das Revoluções,

o sr. fez uma descrição do mundo no século 18. Se fosse fazer a mesma

análise do mundo hoje, que aspectos seriam mais relevantes?

Eric Hobsbawm – Eu tentaria

começar a descrevê-lo pelo que se pode ver do espaço. No começo da era

das revoluções, o único resultado da ação do homem na Terra que podia

ser visto do alto era a Grande Muralha da China. Agora podemos ver

muito mais. A partir dos foguetes, se percebe o declínio das florestas,

o tamanho e a luz das metrópoles, o reflexo de guerras e catástrofes.

Se no século 18 sequer tínhamos uma visão global, agora podemos estar

no espaço para conferi-la. Em segundo lugar, uma das grandes

dificuldades do século 18, a de como ir de um lugar para o outro,

passou por uma revolução sem precedentes. Também chamaria a atenção

para o que justamente não se pode ver do espaço, a revolução sem

precedentes que é a internet. E outros temas como o fim do campesinato

e o novo lugar das mulheres. Mas estou muito velho pra um esforço

desses…

Folha – Em

seu novo livro, ao criticar a ação dos EUA no Iraque, o sr. diz que os

valores ocidentais não podem ser simplesmente apresentados como

''importações tecnológicas cujos benefícios são imediatamente óbvios''.

Em que momento o que era sonho virou pesadelo?

Hobsbawm – Sempre foi um

pesadelo quando se fez uso de poder militar para exportar valores. As

idéias podem viajar, mas não a bordo de tanques. Os ideais da Revolução

Francesa se espalharam pela Espanha, pela América Latina e causaram

grandes transformações políticas. Mas, quando a França quis exportar

suas instituições à força, não teve sucesso. Quando uma intervenção não

conta com certo consenso local, tende a fracassar. A idéia por trás de

certo imperialismo dos direitos humanos era de que regimes tirânicos

seriam tão imunes a influências externas que precisariam ser removidos

pela força. Mas trata-se de uma concepção antiga, de um mundo pré-1989,

pré-redemocratização de regiões como a América Latina.

Folha – O sr. diz que o objetivo de seu novo livro foi ajudar os jovens a enfrentar o século 21 com o pessimismo necessário. Por quê?

Hobsbawm – O fato é que as

perspectivas não são boas. Não me refiro apenas à política

internacional, mas também aos assuntos relacionados ao ambiente. Hoje

já não se pode dizer tão seguramente, como nos séculos 19 e 20, que

estamos num caminho de progresso. Questões como crise de energia e

falta de água são reais. Outro processo que não vai parar é o da

globalização, e talvez o preparo que se exija dos jovens é para que

saibam como lidar com essa aceleração dramática.

Folha – O

sr. disse que não é mais um comunista porque o comunismo já não está

mais na agenda do mundo. Por que o anticomunismo está tomando formas

tão agressivas?

Hobsbawm – O comunismo como

movimento que conglomera muita gente já não existe. Não se trata mais

de uma alternativa no Ocidente. A partir de 1989, passou a ser

diferente. Com relação à China, por exemplo, o que quer que esteja

acontecendo de errado lá não tem nada que ver com o comunismo. Também

não acho que os trabalhadores que assinaram manifestos pelo comunismo

no passado pensem que acreditaram num Deus que falhou. Apenas quiseram

fazer uma opção, que não deu certo. Hoje, achar que o comunismo é um

mal concreto é algo que está limitado ao meio intelectual. Mais

especificamente, a intelectuais de países em que o comunismo foi muito

influente no debate político. Então chegou um momento em que essas

pessoas quiseram reagir contra, como se estivessem pedindo desculpas.

Por exemplo, François Furet [historiador francês, autor de ''Pensando a

Revolução Francesa''], quando o conheci, ele não era apenas um

comunista, mas um enfático militante stalinista. E depois virou-se

completamente.

Folha – No prefácio de seu novo livro o sr. diz que suas convicções políticas são indestrutíveis.

Hobsbawm – Sim, minha convicção

de ser de esquerda continua. Me posiciono fortemente contra o

imperialismo e contra as forças que acham que fazem um bem a outros

países ao invadi-los, e contra a tendência de pessoas que, por serem

brancas, são superiores. Essas certezas eu não abandono. Mas algumas

das minhas convicções mudaram. Não creio mais que o comunismo como foi

aplicado poderia dar certo. E não sou mais revolucionário.
Porém, não acho que tenha sido mau para mim e para minha geração termos

sido revolucionários. Cresci na Alemanha de Hitler, sempre odiarei

totalitarismos.

Folha – O

sr. diz no livro que uma chave para entender o que há de diferente no

império norte-americano é que os outros grandes impérios do passado

sabiam que não eram os únicos, no tempo em que exerceram o poder, e

nenhum ambicionou uma dominação global. O que essa diferença revela?

Hobsbawm – Não acho que exista

hoje, como nunca existiu, espaço para um único império no planeta.

Mesmo o Império Romano, à sua época, não era o único e sabia disso.

Havia o persa, o chinês. Brevemente, no século 19, pode ter parecido

possível, por razões tecnológicas, que parte do mundo respondesse a um

país, como foi o caso do Reino Unido. Mas a Inglaterra nunca quis

tentar exercer todo esse poder. A política do Império Britânico era

apenas a de seguir a lógica e os interesses de sua economia. Por um

breve momento, realmente controlou boa parte do planeta. Mas tampouco

houve um grande inimigo. Acho que o mundo continuará a ser plural, com

algumas unidades políticas que serão mais poderosas que as outras. Mas

não haverá um único império.

Folha – Mas o sr. acredita que a supremacia norte-americana esteja em vias de se dissolver?

Hobsbawm – A Guerra do Iraque

está demonstrando que exercer influência no mundo todo não será

possível. Ela está demonstrando que mesmo uma grande concentração de

poder militar não pode controlar um Estado relativamente fraco sem

certa aprovação ou consenso deste. Defendo no livro que o projeto

norte-americano está falindo. O que não significa que os EUA se

tornarão um país mais fraco, ou que estejam em declínio ou colapso.

Mesmo que percam os seus soldados, continuarão sendo uma nação

importante, econômica e politicamente.

Folha – Mas onde estão os indícios dessa falência, além do fracasso da intervenção militar no Iraque?

Hobsbawm – O império

norte-americano não permanecerá, entre outras razões, por questões

internas. A maior parte dos norte-americanos não quer saber de

imperialismo e sim de sua economia interna, que tem mostrado

fragilidades. Logo os projetos de dominação mundial terão de dar lugar

a preocupações econômicas. E os outros países, se não podem conter os

EUA, têm de acreditar que é possível tentar reeducá-los.

Folha – O sr. tem defendido que a reação à Al Qaeda é mais perigosa do que os atentados promovidos pelo grupo. Por quê?

Hobsbawm – O projeto político

da Al Qaeda é o de recriar a área do califado muçulmano, da Pérsia até

a Espanha. Isso é algo completamente fora de questão, uma utopia. O

modo como a Al Qaeda se desenvolveu, em pequenos grupos ativos, é muito

mais eficiente do que o terrorismo de outros tempos, muito por conta do

elemento do homem-bomba. O homem-bomba não é apenas eficaz do ponto de

vista objetivo, ele é também mais assustador, porque emocionalmente as

pessoas acham difícil entendê-lo, justificá-lo.

Por outro lado, se olharmos para o número de pessoas mortas não só pela

Al Qaeda mas por todos os terroristas e homens-bomba até hoje, em

termos absolutos, é algo muito pequeno. É um erro achar que a Al Qaeda

é uma ameaça ao mundo. A reação à Al Qaeda, essa sim, tem sido

perigosa. Não só porque está produzindo uma intervenção militar massiva

em locais em que não deveria haver nenhuma intervenção militar. Mas

também porque está sendo responsável pela diminuição do respeito aos

direitos humanos no Ocidente. É claro que seria ridículo não levar a Al

Qaeda a sério. Mas bombardear países não é o modo de lidar com esse

tipo de problema. Nunca foi. A questão deve ser resolvida pelos meios

tradicionais aplicados no passado, contra o IRA (Exército Republicano

Irlandês) e outros grupos terroristas. Por meio de estratégias de

investigação policial, da infiltração, de ações localizadas. Trata-se

de um problema policial, não militar.

Folha – Quando conversamos, em 2002, por ocasião do lançamento de sua biografia, Tempos Interessantes, o sr. disse que considerava a América Latina um ''fantástico laboratório de transformações históricas''. Ainda pensa assim?

Hobsbawm – Sim, ainda acho que

se trata de um continente em que é possível acompanhar desde o momento

em que a natureza foi dominada e as pessoas se estabeleceram até a

rápida modernização, industrial e da sociedade, ao mesmo tempo. Algo

que em outros lugares levaria gerações na América Latina acontece de

modo muito acelerado. Visitei o Brasil pela primeira vez há 40 anos. E

hoje observo que o país mudou dramaticamente.

Folha – Para o bem?

Hobsbawm – Deixando de lado

juízos de valor… O que me impressiona hoje é perceber que antes eu

considerava 40 anos um tempo muito longo na história, e agora sei que

cabe numa vida humana. Para um historiador, a América Latina, o Brasil,

são lugares onde você pode acompanhar um processo inteiro. Como foi

importante para Darwin em relação à biologia, acontece da mesma forma

para a história. Mas o que continua sendo um mistério para mim é por

que, apesar de seu grande potencial, a América Latina tenha permanecido

à margem da história ocidental e aí continua. E é desse modo, também,

que está entrando no século 21.

Folha – O sr. não vê perspectivas?

Hobsbawm – Não para a América Latina como um todo, possivelmente para o Brasil.

Folha – O sr. segue otimista com o governo Lula?

Hobsbawm – Não tenho

acompanhado de forma pontual, mas no geral o Brasil está melhor. A

economia, o padrão de vida das pessoas. Em outros aspectos, segue uma

bagunça. É interessante notar que, no que diz respeito às diferenças

sociais, o país não está mais sozinho. O resto do mundo também ficou

socialmente mais polarizado. O Brasil tem uma chance hoje de, como a

Argentina em certo momento do século 19, desenvolver-se economicamente

muito rápido a partir da exportação de produtos primários. Há uma crise

de produtos naturais no mundo e o Brasil tem um potencial ilimitado em

relação à produção de alimentos.

Folha – O que o sr. acha de Hugo Chávez?

Hobsbawm – É uma figura

simpática, tem senso humor, não é um intelectual, economista, teórico,

mas se transformou em mais do que mais um militar latino-americano que

tomou o poder. Ele teve sucesso ao se transformar num símbolo genuíno

de liderança para a América Latina. Ele continua, mas supera o que

simbolizou Fidel Castro. E tem muita sorte de ter tanto petróleo por

trás.

Folha – E Fidel Castro? O que ficará da Revolução Cubana?

Hobsbawm – Cuba já vive a fase

de transição pós-Castro. Castro será lembrado como uma lenda, uma tocha

da emancipação da América Latina em relação aos EUA, uma expressão

dramatizada de sua aspiração por independência, um símbolo

antiimperialista. Vai ser lembrado por conquistas sociais que nenhum

outro país latino-americano alcançou. Acho que não foi suficientemente

dito ainda o quanto melhorou a qualidade e a expectativa de vida dos

cubanos. Porém, fundamentalmente, o projeto cubano não pode ser

considerado um sucesso. Economicamente, foi um desastre até, assim como

a tentativa de revolucionar o resto da América Latina não teve sucesso.

Fidel vai sobreviver como Che Guevara. Uma imagem, um símbolo.

Folha – No ensaio Nations and Nationalism in the New Century (Nações e nacionalismo no novo século),

o sr. lamenta o fato de que as seleções de futebol nacionais estejam

perdendo força para os chamados superclubes internacionais. O sr. não

acha que o nível do esporte, por conta disso, tenha melhorado?

Hobsbawm – O futebol sintetiza

muito bem a dialética entre identidade nacional, globalização e

xenofobia dos dias de hoje. Os clubes viraram entidades transnacionais,

empreendimentos globais. Mas, paradoxalmente, o que faz o futebol

popular continua sendo, antes de tudo, a fidelidade local de um grupo

de torcedores para com uma equipe. E, ainda, o que faz dos campeonatos

mundiais algo interessante é o fato de que podemos ver países em

competição. Por isso acho que o futebol carrega o conflito essencial da

globalização.

Os clubes querem ter os jogadores em tempo integral, mas também

precisam que eles joguem por suas seleções para legitimá-los como

heróis nacionais. Enquanto isso, clubes de países da África ou da

América Latina vão virando centros de recrutamento e perdendo o encanto

local de seus encontros, como acontece com os times do Brasil e da

Argentina. É um paradoxo interessante para pensar sobre a globalização.

Fonte: Folha de S.Paulo, 30/9/07