Hobsbawm prevê fim do império americano
Eric Hobsbawm, o pensador marxista britânico, 90 anos, proclama que ''a única certeza que podemos ter sobre a atual superioridade norte-americana é que ela será, para a história, apenas um fenômeno temporário, como foram todos os impérios''. Embora
Publicado 30/09/2007 08:20
Folha – Em A Era das Revoluções,
o sr. fez uma descrição do mundo no século 18. Se fosse fazer a mesma
análise do mundo hoje, que aspectos seriam mais relevantes?
Eric Hobsbawm – Eu tentaria
começar a descrevê-lo pelo que se pode ver do espaço. No começo da era
das revoluções, o único resultado da ação do homem na Terra que podia
ser visto do alto era a Grande Muralha da China. Agora podemos ver
muito mais. A partir dos foguetes, se percebe o declínio das florestas,
o tamanho e a luz das metrópoles, o reflexo de guerras e catástrofes.
Se no século 18 sequer tínhamos uma visão global, agora podemos estar
no espaço para conferi-la. Em segundo lugar, uma das grandes
dificuldades do século 18, a de como ir de um lugar para o outro,
passou por uma revolução sem precedentes. Também chamaria a atenção
para o que justamente não se pode ver do espaço, a revolução sem
precedentes que é a internet. E outros temas como o fim do campesinato
e o novo lugar das mulheres. Mas estou muito velho pra um esforço
desses…
Folha – Em
seu novo livro, ao criticar a ação dos EUA no Iraque, o sr. diz que os
valores ocidentais não podem ser simplesmente apresentados como
''importações tecnológicas cujos benefícios são imediatamente óbvios''.
Em que momento o que era sonho virou pesadelo?
Hobsbawm – Sempre foi um
pesadelo quando se fez uso de poder militar para exportar valores. As
idéias podem viajar, mas não a bordo de tanques. Os ideais da Revolução
Francesa se espalharam pela Espanha, pela América Latina e causaram
grandes transformações políticas. Mas, quando a França quis exportar
suas instituições à força, não teve sucesso. Quando uma intervenção não
conta com certo consenso local, tende a fracassar. A idéia por trás de
certo imperialismo dos direitos humanos era de que regimes tirânicos
seriam tão imunes a influências externas que precisariam ser removidos
pela força. Mas trata-se de uma concepção antiga, de um mundo pré-1989,
pré-redemocratização de regiões como a América Latina.
Folha – O sr. diz que o objetivo de seu novo livro foi ajudar os jovens a enfrentar o século 21 com o pessimismo necessário. Por quê?
Hobsbawm – O fato é que as
perspectivas não são boas. Não me refiro apenas à política
internacional, mas também aos assuntos relacionados ao ambiente. Hoje
já não se pode dizer tão seguramente, como nos séculos 19 e 20, que
estamos num caminho de progresso. Questões como crise de energia e
falta de água são reais. Outro processo que não vai parar é o da
globalização, e talvez o preparo que se exija dos jovens é para que
saibam como lidar com essa aceleração dramática.
Folha – O
sr. disse que não é mais um comunista porque o comunismo já não está
mais na agenda do mundo. Por que o anticomunismo está tomando formas
tão agressivas?
Hobsbawm – O comunismo como
movimento que conglomera muita gente já não existe. Não se trata mais
de uma alternativa no Ocidente. A partir de 1989, passou a ser
diferente. Com relação à China, por exemplo, o que quer que esteja
acontecendo de errado lá não tem nada que ver com o comunismo. Também
não acho que os trabalhadores que assinaram manifestos pelo comunismo
no passado pensem que acreditaram num Deus que falhou. Apenas quiseram
fazer uma opção, que não deu certo. Hoje, achar que o comunismo é um
mal concreto é algo que está limitado ao meio intelectual. Mais
especificamente, a intelectuais de países em que o comunismo foi muito
influente no debate político. Então chegou um momento em que essas
pessoas quiseram reagir contra, como se estivessem pedindo desculpas.
Por exemplo, François Furet [historiador francês, autor de ''Pensando a
Revolução Francesa''], quando o conheci, ele não era apenas um
comunista, mas um enfático militante stalinista. E depois virou-se
completamente.
Folha – No prefácio de seu novo livro o sr. diz que suas convicções políticas são indestrutíveis.
Hobsbawm – Sim, minha convicção
de ser de esquerda continua. Me posiciono fortemente contra o
imperialismo e contra as forças que acham que fazem um bem a outros
países ao invadi-los, e contra a tendência de pessoas que, por serem
brancas, são superiores. Essas certezas eu não abandono. Mas algumas
das minhas convicções mudaram. Não creio mais que o comunismo como foi
aplicado poderia dar certo. E não sou mais revolucionário.
Porém, não acho que tenha sido mau para mim e para minha geração termos
sido revolucionários. Cresci na Alemanha de Hitler, sempre odiarei
totalitarismos.
Folha – O
sr. diz no livro que uma chave para entender o que há de diferente no
império norte-americano é que os outros grandes impérios do passado
sabiam que não eram os únicos, no tempo em que exerceram o poder, e
nenhum ambicionou uma dominação global. O que essa diferença revela?
Hobsbawm – Não acho que exista
hoje, como nunca existiu, espaço para um único império no planeta.
Mesmo o Império Romano, à sua época, não era o único e sabia disso.
Havia o persa, o chinês. Brevemente, no século 19, pode ter parecido
possível, por razões tecnológicas, que parte do mundo respondesse a um
país, como foi o caso do Reino Unido. Mas a Inglaterra nunca quis
tentar exercer todo esse poder. A política do Império Britânico era
apenas a de seguir a lógica e os interesses de sua economia. Por um
breve momento, realmente controlou boa parte do planeta. Mas tampouco
houve um grande inimigo. Acho que o mundo continuará a ser plural, com
algumas unidades políticas que serão mais poderosas que as outras. Mas
não haverá um único império.
Folha – Mas o sr. acredita que a supremacia norte-americana esteja em vias de se dissolver?
Hobsbawm – A Guerra do Iraque
está demonstrando que exercer influência no mundo todo não será
possível. Ela está demonstrando que mesmo uma grande concentração de
poder militar não pode controlar um Estado relativamente fraco sem
certa aprovação ou consenso deste. Defendo no livro que o projeto
norte-americano está falindo. O que não significa que os EUA se
tornarão um país mais fraco, ou que estejam em declínio ou colapso.
Mesmo que percam os seus soldados, continuarão sendo uma nação
importante, econômica e politicamente.
Folha – Mas onde estão os indícios dessa falência, além do fracasso da intervenção militar no Iraque?
Hobsbawm – O império
norte-americano não permanecerá, entre outras razões, por questões
internas. A maior parte dos norte-americanos não quer saber de
imperialismo e sim de sua economia interna, que tem mostrado
fragilidades. Logo os projetos de dominação mundial terão de dar lugar
a preocupações econômicas. E os outros países, se não podem conter os
EUA, têm de acreditar que é possível tentar reeducá-los.
Folha – O sr. tem defendido que a reação à Al Qaeda é mais perigosa do que os atentados promovidos pelo grupo. Por quê?
Hobsbawm – O projeto político
da Al Qaeda é o de recriar a área do califado muçulmano, da Pérsia até
a Espanha. Isso é algo completamente fora de questão, uma utopia. O
modo como a Al Qaeda se desenvolveu, em pequenos grupos ativos, é muito
mais eficiente do que o terrorismo de outros tempos, muito por conta do
elemento do homem-bomba. O homem-bomba não é apenas eficaz do ponto de
vista objetivo, ele é também mais assustador, porque emocionalmente as
pessoas acham difícil entendê-lo, justificá-lo.
Por outro lado, se olharmos para o número de pessoas mortas não só pela
Al Qaeda mas por todos os terroristas e homens-bomba até hoje, em
termos absolutos, é algo muito pequeno. É um erro achar que a Al Qaeda
é uma ameaça ao mundo. A reação à Al Qaeda, essa sim, tem sido
perigosa. Não só porque está produzindo uma intervenção militar massiva
em locais em que não deveria haver nenhuma intervenção militar. Mas
também porque está sendo responsável pela diminuição do respeito aos
direitos humanos no Ocidente. É claro que seria ridículo não levar a Al
Qaeda a sério. Mas bombardear países não é o modo de lidar com esse
tipo de problema. Nunca foi. A questão deve ser resolvida pelos meios
tradicionais aplicados no passado, contra o IRA (Exército Republicano
Irlandês) e outros grupos terroristas. Por meio de estratégias de
investigação policial, da infiltração, de ações localizadas. Trata-se
de um problema policial, não militar.
Folha – Quando conversamos, em 2002, por ocasião do lançamento de sua biografia, Tempos Interessantes, o sr. disse que considerava a América Latina um ''fantástico laboratório de transformações históricas''. Ainda pensa assim?
Hobsbawm – Sim, ainda acho que
se trata de um continente em que é possível acompanhar desde o momento
em que a natureza foi dominada e as pessoas se estabeleceram até a
rápida modernização, industrial e da sociedade, ao mesmo tempo. Algo
que em outros lugares levaria gerações na América Latina acontece de
modo muito acelerado. Visitei o Brasil pela primeira vez há 40 anos. E
hoje observo que o país mudou dramaticamente.
Folha – Para o bem?
Hobsbawm – Deixando de lado
juízos de valor… O que me impressiona hoje é perceber que antes eu
considerava 40 anos um tempo muito longo na história, e agora sei que
cabe numa vida humana. Para um historiador, a América Latina, o Brasil,
são lugares onde você pode acompanhar um processo inteiro. Como foi
importante para Darwin em relação à biologia, acontece da mesma forma
para a história. Mas o que continua sendo um mistério para mim é por
que, apesar de seu grande potencial, a América Latina tenha permanecido
à margem da história ocidental e aí continua. E é desse modo, também,
que está entrando no século 21.
Folha – O sr. não vê perspectivas?
Hobsbawm – Não para a América Latina como um todo, possivelmente para o Brasil.
Folha – O sr. segue otimista com o governo Lula?
Hobsbawm – Não tenho
acompanhado de forma pontual, mas no geral o Brasil está melhor. A
economia, o padrão de vida das pessoas. Em outros aspectos, segue uma
bagunça. É interessante notar que, no que diz respeito às diferenças
sociais, o país não está mais sozinho. O resto do mundo também ficou
socialmente mais polarizado. O Brasil tem uma chance hoje de, como a
Argentina em certo momento do século 19, desenvolver-se economicamente
muito rápido a partir da exportação de produtos primários. Há uma crise
de produtos naturais no mundo e o Brasil tem um potencial ilimitado em
relação à produção de alimentos.
Folha – O que o sr. acha de Hugo Chávez?
Hobsbawm – É uma figura
simpática, tem senso humor, não é um intelectual, economista, teórico,
mas se transformou em mais do que mais um militar latino-americano que
tomou o poder. Ele teve sucesso ao se transformar num símbolo genuíno
de liderança para a América Latina. Ele continua, mas supera o que
simbolizou Fidel Castro. E tem muita sorte de ter tanto petróleo por
trás.
Folha – E Fidel Castro? O que ficará da Revolução Cubana?
Hobsbawm – Cuba já vive a fase
de transição pós-Castro. Castro será lembrado como uma lenda, uma tocha
da emancipação da América Latina em relação aos EUA, uma expressão
dramatizada de sua aspiração por independência, um símbolo
antiimperialista. Vai ser lembrado por conquistas sociais que nenhum
outro país latino-americano alcançou. Acho que não foi suficientemente
dito ainda o quanto melhorou a qualidade e a expectativa de vida dos
cubanos. Porém, fundamentalmente, o projeto cubano não pode ser
considerado um sucesso. Economicamente, foi um desastre até, assim como
a tentativa de revolucionar o resto da América Latina não teve sucesso.
Fidel vai sobreviver como Che Guevara. Uma imagem, um símbolo.
Folha – No ensaio Nations and Nationalism in the New Century (Nações e nacionalismo no novo século),
o sr. lamenta o fato de que as seleções de futebol nacionais estejam
perdendo força para os chamados superclubes internacionais. O sr. não
acha que o nível do esporte, por conta disso, tenha melhorado?
Hobsbawm – O futebol sintetiza
muito bem a dialética entre identidade nacional, globalização e
xenofobia dos dias de hoje. Os clubes viraram entidades transnacionais,
empreendimentos globais. Mas, paradoxalmente, o que faz o futebol
popular continua sendo, antes de tudo, a fidelidade local de um grupo
de torcedores para com uma equipe. E, ainda, o que faz dos campeonatos
mundiais algo interessante é o fato de que podemos ver países em
competição. Por isso acho que o futebol carrega o conflito essencial da
globalização.
Os clubes querem ter os jogadores em tempo integral, mas também
precisam que eles joguem por suas seleções para legitimá-los como
heróis nacionais. Enquanto isso, clubes de países da África ou da
América Latina vão virando centros de recrutamento e perdendo o encanto
local de seus encontros, como acontece com os times do Brasil e da
Argentina. É um paradoxo interessante para pensar sobre a globalização.
Fonte: Folha de S.Paulo, 30/9/07