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FHC defende privatizações, mas admite que país melhorou com Lula

O ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi protagonista de um dos maiores desmonstes nacionais que o país já viveu ao longo das últimas décadas. Na entrevista concedida à Germano Lüders, para a revista Exame (4/10), em sua luxu

Ao escolher o verbo ''gostar'', no lugar de ''precisar'', é possível que FHC tenha deixado uma pista sobre sua declaração em defesa da era de privatizações que levou à cabo quanto foi presidente do país. Talvez para ele, o Estado seja apenas uma opção, enquanto que para a grande maioria dos brasileiros ele é uma necessidade.


 


''Tradicionalmente, o brasileiro gosta de Estado. O empresário tradicional quer juro baixo e proteção. O brasileiro comum quer um bom emprego público. O Congresso está cheio de gente contrária ao capitalismo. Não que sejam socialistas, são contra o espírito do capitalismo. Os intelectuais participam da visão tradicional. Os que se pensam progressistas têm um retrovisor na frente. São utopias regressivas. O exemplo máximo é o MST, que é uma utopia regressiva plena. Há, claro, forças produtivas modernas que pensam diferente. Mas a visão da boa sociedade ainda é a corporativa, da época de Getúlio Vargas. A esperança hoje é que o setor privado está cada vez mais forte. Mas ele pode até ditar a agenda econômica, não a agenda nacional. Assim fica difícil criar uma nação. Isso gera certa insegurança, ruim para o país'', disse na entrevista.


 


Duas resposta ficaram faltando: que privatizações ainda faltam fazer no Brasil, uma vez que empresas extremamente lucrativas para o Estado, como o sistema de telecomunicações e a Companhia Vale do Rio Doce – entre outras – já estão na mão da iniciativa privada? Se são as  privatizações que garantem mais eficiência no serviço público, porque no período do presidente FHC o serviço público não se tornou o mais eficiente de nossa história, já que nunca foram feitas tantas privatizações como em seu governo?  


 


Na comodidade do silêncio


 


Em meio a tanto destaque na mídia para as denúncias de corrupção que envolvem membros do atual governo, é estranho notar que o jornalista não tenha feito uma só pergunta ao presidente – do tucanoduto mineiro e maior enterrador de CPIs e denúncias de corrupção de nossa história  – sobre o assunto.


 


O comentário mais próximo do tema foi para a conta dos governos ditatorias, incluindo a Era Vargas, e da ''imaturidade'' política no Brasil.


 


''[Na a época dos militares] o sistema de telecomunicações, depois privatizado, foi bem-feito. Aos poucos, o Estado inchou e ficou muito mais propenso à corrupção'', e acrescenta em outra pergunta: ''nesse ponto tenho uma dúvida: acho que temos o arcabouço da democracia, mas não a alma. Ainda não nos consideramos iguais perante a lei. Uma coisa que chama a atenção é a comemoração geral quando o Supremo Tribunal Federal aceitou uma denúncia do procurador-geral da República. Seria um fato banal em países maduros, mas aqui foi assunto de capa em todas as revistas. Por quê? Porque a regra não é a da igualdade perante a lei, algo basilar nas democracias. Nesse campo, estamos atrasados.''


 


O Brasil está melhor


 


Embora, ''o príncipe dos sociólogos'', como era pomposamente chamado pela mídia, credite parte dos bons indicadores sociais, econômicos, políticos e culturais às suas privatizações, elogios aos atuais programas do presidente Lula não faltaram.


 


''Falta gente, falta treinamento, falta gerência. Mas algumas coisas estamos aprendendo. Olhe os programas de combate à pobreza. Temos, desde 1993, uma política de aumento real no salário mínimo, cerca de 4% anuais. Criamos as aposentadorias rurais. Mais recentemente, vieram as bolsas — bolsa-gás, bolsa-escola, bolsa-alimentação, bolsa para tirar as crianças do trabalho infantil, agora unificadas no Bolsa Família. Tudo somado, tem-se um efeito concreto na vida da população'', explicou.


 


Pelo visto, o PSDB já está planejando capitalizar os êxitos do governo Lula como se fossem seus. É esperar para ver.     
   


Leia abaixo íntegra da entrevista.


 


Qual é o balanço que o senhor faz dos últimos 40 anos?


 


FHC – Foi um período muito positivo para o Brasil, apesar dos percalços. Tivemos de enfrentar desafios extremamente complexos, a começar da demografia. Como dizia a música da Copa de 1970, éramos 90 milhões de brasileiros. Hoje somos quase 200 milhões. Para complicar, houve migração em massa para as cidades. Em 1967, 55% da população vivia no campo. Agora 16% dos brasileiros estão nas áreas rurais. Esse pano de fundo explica alguns processos do período. Houve uma forte desarticulação da administração pública nas cidades, que não conseguia atender tanta gente. São Paulo chegou a crescer 5% ao ano. Isso explica um pouco as insatisfações, que vinham já do tempo do presidente João Goulart. Todos pediam reforma urbana, embora ninguém soubesse o que era isso. Os militares tentaram organizar o aparato estatal, mas o desafio era enorme. Futuramente, a pressão migratória tenderá a diminuir. Mas ainda temos uma população rural grande, além de outros desafios.


 


Que desafios?


 


FHC – Por exemplo, o envelhecimento. Foi uma marca dos últimos 40 anos — o brasileiro ficou mais velho e a taxa de fecundidade diminuiu. Antes a média era seis filhos por mulher, hoje caiu para dois. A queda da fecundidade abre uma perspectiva muito positiva daqui em diante, mas por enquanto ainda temos de viabilizar o emprego de quem nasceu há 20 anos. Nos anos 70 ainda havia uma dinâmica industrial que atendia parte dessa força de trabalho. A partir de certo momento, o desemprego passou a subir. Isso ficou mais forte depois da crise do petróleo, que desorganizou a capacidade do Estado de investir. Foi quando começou a mais importante transformação do período, a democratização. Ela muda tudo.


 


De que forma?


 


FHC – Basta olhar as estatísticas dos últimos 20 anos para captar a mudança. Com exceção do emprego, todos os dados sociais melhoraram. A escolaridade aumentou, o acesso à escola também, a taxa de mortalidade infantil diminuiu, cresceu o acesso a bens como geladeiras, fogões. As pessoas não dão o devido valor a isso, um processo que se deu a despeito de imensas dificuldades econômicas. Até a redemocratização, o Estado investia muito na produção, mas não no social. Depois, com a crise externa, o investimento público caiu, a inflação disparou, mas ao mesmo tempo cresceu a pressão social. Ou seja, na passagem dos anos 80 para os 90, o Brasil teve de responder ao triplo desafio de se democratizar, atender à demanda social e modernizar a economia para se integrar ao resto do mundo — vamos lembrar que o Muro de Berlim caiu em 1989. Era uma equação difícil de fechar.


 


Dá para dizer que a resposta do país foi satisfatória?


 


FHC – Não tenho nenhuma dúvida. Enfrentamos muitos dos problemas de então. Foi naquela época que o país começou a pensar em privatização. Ao mesmo tempo, o ex-presidente Collor percebeu que o Muro havia caído e que não daria para o Brasil ignorar isso. Ele promoveu a abertura, o que foi positivo, mas, ao mesmo tempo, desmontou o Estado, pensando que assim iria reorganizá-lo. O Plano Real e a continuidade da abertura entram nesse contexto de modernização. O gasto social expandiu, o que limitou o investimento em infra-estrutura. De certa forma, o quadro atual é semelhante, com duas diferenças significativas: o contexto econômico mundial melhorou e os fundamentos estão hoje muito mais saudáveis. A situação evoluiu em muitos aspectos.


 


O senhor pode dar exemplos?


 


FHC – Basta olhar de novo a demografia, que começa a se estabilizar. A população já não é tão jovem, mas ainda não é velha. Temos uma força de trabalho adulta poderosa — é um bom momento. Nos próximos 20 ou 30 anos vai ser assim, depois haverá muito idoso para pouca gente em atividade. Já estamos vendo uma pressão proporcionalmente menor sobre a força de trabalho. Se mantivermos por dez anos uma taxa de crescimento razoável — entre 4% e 5% –, o país dará um salto grande. Outro lado positivo é que as instituições democráticas foram se fortalecendo. Nesse ponto tenho uma dúvida: acho que temos o arcabouço da democracia, mas não a alma. Ainda não nos consideramos iguais perante a lei. Uma coisa que chama a atenção é a comemoração geral quando o Supremo Tribunal Federal aceitou uma denúncia do procurador-geral da República. Seria um fato banal em países maduros, mas aqui foi assunto de capa em todas as revistas. Por quê? Porque a regra não é a da igualdade perante a lei, algo basilar nas democracias. Nesse campo, estamos atrasados.


 


Há outros terrenos nos quais o país está atrasado?


 


FHC – Sim. Por exemplo, na reorganização do aparelho do Estado. Na época dos militares, tentou-se alguma coisa nesse sentido. O sistema de telecomunicações, depois privatizado, foi bem-feito. Aos poucos, o Estado inchou e ficou muito mais propenso à corrupção. Houve uma modernização na época da criação das agências reguladoras, mas agora vemos um passo atrás. Elas perderam força e estão cada vez mais partidarizadas. Também precisamos avançar na qualidade das políticas universais — educação e saúde. O sistema educacional antigo, considerado de qualidade, quebrou com o crescimento da população e o êxodo rural. Hoje temos o acesso universal, mas não recuperamos a qualidade. Na saúde a história é semelhante. Não é só questão de dinheiro, mas de gerência. O Brasil gasta no social até mais do que outros países semelhantes. Mas o resultado é pior.


 


Por quê?


 


FHC – Falta gente, falta treinamento, falta gerência. Mas algumas coisas estamos aprendendo. Olhe os programas de combate à pobreza. Temos, desde 1993, uma política de aumento real no salário mínimo, cerca de 4% anuais. Criamos as aposentadorias rurais. Mais recentemente, vieram as bolsas — bolsa-gás, bolsa-escola, bolsa-alimentação, bolsa para tirar as crianças do trabalho infantil, agora unificadas no Bolsa Família. Tudo somado, tem-se um efeito concreto na vida da população. Mas as bolsas têm de ter porta de saída. A longo prazo, é preciso substituí-las por emprego. O lado positivo é que o crescimento da economia pode ajudar. Nesses 40 anos, a transformação econômica é brutal. A abertura forçou a modernização. Todos reclamaram quando Collor disse que produzíamos carroças. Ele tinha razão. Mesmo nos momentos de baixo crescimento, houve um salto de qualidade dos produtos. No setor agrícola, houve uma revolução. Com a privatização da telefonia, os celulares passaram de alguns milhares a 110 milhões. O acesso a computador aumentou muito. Nossa sociedade é dinâmica.


 


Ou seja, o Brasil de hoje é melhor que o de 1967?


 


FHC – Muito melhor. A sociedade em 1967 ainda era acanhada. Nossa classe média ainda era tradicional, formada por funcionários públicos e por gente que havia passado pela universidade. Em geral, eram egressos de famílias que tinham sido ricas no passado e que se agarraram no Estado, no saber ou na Igreja. Hoje, a classe média é formada por quem veio de baixo e ascendeu pela via do mercado. Novas profissões surgem a todo o instante. São Paulo é uma cidade do mercado. Falta mudar nossa mentalidade.


 


Por quê?


 


FHC – Tradicionalmente, o brasileiro gosta de Estado. O empresário tradicional quer juro baixo e proteção. O brasileiro comum quer um bom emprego público. O Congresso está cheio de gente contrária ao capitalismo. Não que sejam socialistas, são contra o espírito do capitalismo. Os intelectuais participam da visão tradicional. Os que se pensam progressistas têm um retrovisor na frente. São utopias regressivas. O exemplo máximo é o MST, que é uma utopia regressiva plena. Há, claro, forças produtivas modernas que pensam diferente. Mas a visão da boa sociedade ainda é a corporativa, da época de Getúlio Vargas. A esperança hoje é que o setor privado está cada vez mais forte. Mas ele pode até ditar a agenda econômica, não a agenda nacional. Assim fica difícil criar uma nação. Isso gera certa insegurança, ruim para o país.


 


Por que um país que vai bem passa a sensação contrária?


 


FHC – Porque estamos numa transição que incomoda muita gente. O desemprego entre os jovens é alto. Nossa universidade prepara para o emprego estável, mas essa formação não basta. Isso gera insatisfação. A vida urbana também é problemática — trânsito, violência. E tem a descrença ante tantos escândalos. Daí a sensação de fracasso. Além disso, as sociedades modernas agora funcionam por redes, que se interligam independentemente do território. Isso é algo novo. Há segmentos de São Paulo mais próximos a Nova York do que a áreas mais pobres do Brasil. E há segmentos dos Estados Unidos mais próximos às áreas pobres do Terceiro Mundo do que ao próprio país. Isso repercute também em certo mal-estar não apenas brasileiro, mas global.


 


Fonte: revista Exame