Patrimônio Cultural em Quixeramobim será restaurado

Um povo sem passado é um povo sem identidade. O retrato desse documento histórico está estampado na preservação de cartas, livros, fotografias e monumentos que outrora representavam os modos, as características peculiares de um lugar.

O velho Casarão de José Felício é um deles. Repousa na esquina das ruas Cônego Pinto com Monsenhor Salviano Pinto, no Centro de Quixeramobim. Castigado pelo descaso e até pouco tempo atrás ameaçado pela ambição, suspira aliviado. Está sendo adaptado à modernidade, mas o seu jeitão imponente dos tempos áureos será preservado.


 


 


A garantia é feita pelo atual proprietário do prédio secular, o empresário Francisco Alves Fernandes. Acusado de estar colocando em risco a velha residência do dentista de família tradicional, cuja esposa herdara a terra e ali erguera morada nobre em meados do século XIX, ele resolveu esclarecer mistérios e especulações que ainda vagam naquelas redondezas acerca do destino do casarão, considerado importante patrimônio público, e expôs o projeto de restauração do imóvel histórico que, graças a uma mobilização popular e ao embargo da Justiça, ainda se mantém de pé.


 


 


Cansado de tanto disse-me-disse, “Chico Elói”, como é mais conhecido o comerciante, resolveu passar a história a limpo. Confirmou que, de fato, logo após comprar a velha casa — encravada em um terreno de 1.350m², situado ao lado de seu supermercado — pela importância de R$ 300 mil, há dois anos, pretendia demolir tudo para ampliar a área interna de seu estabelecimento comercial. Desconhecia, porém, a existência de um decreto municipal que impede a demolição de estruturas consideradas históricas. O antigo proprietário não havia lhe falado da obrigação. Quando foi alertado parou imediatamente a reforma.


 


 


Ele confessa que ficou surpreso com o movimento realizado em defesa do casarão. Viu gente abraçando o velho imóvel como quem “abraça uma criança”, com carinho e afeto. E quando teve sua reforma paralisada por força de lei avaliou a situação e então se dispôs a negociar uma solução. Reuniu-se com representantes da Prefeitura, da Secretaria de Cultura do Estado, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e também contou com a colaboração do arquiteto Fausto Nilo, filho da terra, que expôs alguns aspectos da importância de conservação do patrimônio secular.


 


 


Disposto a reparar os danos, o atacadista e varejista contratou o arquiteto José Capelo Filho, apontado como um dos maiores especialistas em projetos de restauração de prédios históricos, para elaborar o projeto de adaptação arquitetônica. Os estudos foram feitos e os dedos mágicos do arquiteto transformaram o casarão numa espécie de “Padaria Cultural”. Além dos pães terá cafeteria e cyber café. Mas toda a estrutura existente, incluindo baluartes, portas e janelas, será preservada. Ao invés de demolido, o Casarão está sendo recuperado. Terá decoração de época.


 


 


Chico Elói diz que ainda nem avaliou o custo do projeto. Também não menciona os gastos com a assistência do especialista arquitetônico. Seus planos eram outros. Mas justifica que, ao perceber a importância da conservação do monumento, o zelo se tornou tamanho que pretende até contratar profissionais especializados em restauração de revestimentos históricos. “Tudo será como antes. Não importa o custo”.


 


 


Do ponto de vista da secretária de Cultura e Turismo de Quixeramobim, Terezinha Oliveira, que participou ativamente das negociações que resultaram no projeto de restauração, Chico Elói está dando um importante exemplo de conscientização histórica. Ao perceber que havia adquirido um imóvel com inestimável valor arquitetônico, o comerciante bem sucedido se rendeu aos apelos dos que lutam pela preservação de toda e qualquer expressão que simbolize o passado do município e também abraçou a causa.


 


 


A defensora dos traços históricos de sua terra natal, berço do beato Antônio Conselheiro, mártir da revolução de Canudos, está feliz com a conquista, todavia não esconde a aflição que sentiu numa madrugada de outubro de 2005. Ao saber que operários estavam retirando as telhas e demolindo algumas alvenarias do casarão secular, na calada da noite, se desesperou e seguiu até lá. Era sábado e temia que no dia seguinte o velho prédio desaparecesse e não restasse mais um único tijolo para registrar a história. Mas encontrou amparo na “Lei do Silêncio”, sugerida pelo delegado da cidade, como primeira ação legal em defesa do acervo imobiliário. A medida judicial deu certo. Os danos cessaram. Depois, vieram as negociações e o projeto de restauração.


 


 


Terezinha defende Chico Elói diante do que considera exagerados os comentários que passaram a prevalecer após a polêmica situação, de que o comerciante já havia destruído tudo. Ela aponta que o velho prédio, ao ser negociado por herdeiros do dentista José Felício Cavalcante, não contava mais com qualquer vestígio da senzala que existia nos fundos daquele imóvel. No lugar funcionava um lava-jato. A secretária entende que tendo o comerciante percebido seu erro e se prontificado a restaurar o importante patrimônio, está prestando significante ato social, cultural e histórico. Um exemplo a ser seguido por outros empresários.


 


 


Guardiões do passado


 


 


Nas últimas décadas, as leis que tratam da preservação patrimonial histórica e cultural no País passaram a contar com importantes amparos jurídicos. As medidas, capituladas em uma diversidade de artigos e parágrafos, asseguram inclusive o embargo e a desapropriação de imóveis particulares considerados de relevância pública. Foi assim com o Casarão de José Felício. “Ou o proprietário cedia, assegurando a manutenção dos traços da arquitetura original, ou poderia perder o investimento”, explicou o engenheiro Renato Cavalcante, que é membro da Coordenação do Patrimônio Histórico e Cultural do Ceará (Copahc).


 


 


Apesar do compromisso firmado pelo proprietário, da restauração e preservação, o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), arquiteto Romeu Duarte, alerta que a obra ainda está passiva de embargo. É que o projeto final ainda não foi apresentado ao órgão federal para apreciação. Houve necessidade de alterações por conta da ampliação do prédio comercial situado ao lado. Com a reforma, a altura da platibanda do supermercado seria superior a da cumieira do casarão. Por isso, a alteração estética não foi aceita.


 


 


O superintendente esclarece ainda que as medidas jurídicas a serem acionadas decorrem em razão do imóvel, que se encontra em processo de tombamento pelo Estado, se situar no entorno de outro prédio histórico tombado pelo Iphan, a Casa da Câmara e Cadeia, onde funciona o parlamento municipal. Uma lei federal proíbe qualquer alteração nas fachadas dos imóveis construídos naquela área. O Casarão de José Felício é um deles.


 


 


Os “guardiões do passado”, como são conhecidos os representantes dos institutos públicos que procedem os inventários e fiscalização de nossas riquezas históricas materiais, avaliam que os prejuízos causados ao Casarão de José Felício são irremediáveis. Apesar do esforço e empenho na restauração arquitetônica, parte da história já foi demolida. “O Copahc não terá mais como testificar os detalhes internos do prédio como originais, vez que esquadrias foram removidas e alvenarias derrubadas. O levantamento final apontará a recente interferência”, ressaltou o engenheiro Cavalcante.


 


 


Na opinião de Duarte, os levantamentos feitos a partir dos rastros da história encontrados no Casarão possibilitam a reconstrução do abrigo de escravos que existia ali. A fidelidade aos detalhes poderá trazer de volta a memória do período de colonização, transformando o investimento em mais um atrativo turístico do sítio histórico existente ali.



 



Maior sítio histórico do Interior do CE


 



As peculiaridades de Quixeramobim, cidade do Sertão Central, distante 206km da Capital, vão muito além de suas coordenadas geográficas, que lhe asseguram o título de “Coração do Ceará”, e a vida de quem é considerado o primeiro revolucionário do Brasil, o beato Antônio Conselheiro. Mais de uma dezena de edificações históricas, erguidas num raio de pouco mais de 1km formam o maior sítio histórico imobiliário do interior cearense. Estão ali, no Centro do município de Quixeramobim.


 


 


Para qualquer lado que se olhe, as retinas dos observadores vão se deparar com algum monumento a registrar o rico passado de seu povo. Basta desembarcar diante das escadarias da Casa de Câmara e Cadeia. Sua construção foi iniciada em 1818. Os trabalhos foram concluídos em 1856, quando passou a sediar os poderes Executivos e Legislativos do município.


 


 


No andar térreo funcionou a antiga cadeia pública local e, sob um alpendre, no alto da escadaria de dois lances que dá acesso ao pavimento superior, está o sino de bronze que até o final dos anos 50, chamava o povo para às sessões da Câmara e do tribunal do júri.


 


 


Hoje a Câmara Municipal de Quixeramobim continua em atividade no prédio, sendo suas sessões realizadas todas as quartas-feiras. Em 1972, o prédio foi tombado como patrimônio histórico nacional.


 


 


Matriz de Santo Antônio: À esquerda da Câmara, os sinos da Igreja Matriz de Santo Antônio de Pádua ainda badalam, no início das manhãs e das noites. O imponente edifício religioso tem suas origens em 1732, onde ali fiéis ergueram uma capelinha de taipa. Logo depois o fazendeiro Antônio Dias Ferreira deu início à construção do templo que estaria concluído anos mais tarde, em 1755.


 


 


Antônio Conselheiro: Do pátio da Igreja Matriz pode-se observar a antiga Casa Comercial e Residencial de Antônio Vicente Mendes Maciel, o beato Antônio Conselheiro. Localizada na Rua Cônego Aureliano Mota, 210, próximo da Praça Dias Ferreira, também foi palco de acirrado confronto entre os membros das famílias Araújo e Maciel, no segundo quadrante do século XIX. A casa foi leiloada pela família para o pagamento de débitos remanescentes, sendo adquirida pelo coronel Antônio Rodrigues da Silva Sousa em 1857.


 


 


O imóvel, que foi moradia do arquiteto e compositor Fausto Nilo Costa, foi comprado pelo governo do Estado e tombado como patrimônio histórico do Ceará em janeiro de 2006. Um dos participantes da solenidade de tombamento foi o ministro Gilberto Gil.


 


 


Ponte Metálica:  Quem preferir seguir os trilhos da história, poderá dar alguns passos e apreciar a arquitetura da Ponte Metálica da Rffsa, inaugurada aos 5 de fevereiro de 1899. Foi ela que viabilizou o transporte do progresso e o vai-e-vem dos trens sobre o leito do Rio Quixeramobim até o início da década de 90, quando o ramal da ferrovia teve seu curso alterado e o tráfego sobre a ponte desativado. Mas o caminho até a velha Estação, onde hoje funciona a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, ainda é percorrido por muitos visitantes.


 


 


Outros patrimônios: O Paço Municipal, a Casa Paroquial, as igrejas de Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora do Carmo, de Nosso Senhor do Bonfim e de Sant´ana completam o acervo histórico central dessa terra acostumada a preservar seus valores culturais e materiais. O Casarão de José Felício será mais um deles.


 


 


Fonte: Diário do Nordeste