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Capitalismo em xeque: PCdoB debate nova luta pelo socialismo

Preocupados em subsidiar seus quadros e dirigentes com as atualidades acerca da conjuntura econômica nos marcos do neoliberalismo, o Instituto Maurício  Grabois e o Partido Comunista do Brasil deram início, ontem, 19, ao primeiro dia do seminário

Os debates, que acontecem em comemoração aos 90 anos da Revolução Russa pretendem, desde já, contribuir para o desenvolvimento teórico do 12º congresso do partido. Por isso, os organizadores resolveram pautar as grandes questões em voga na conjuntura internacional para aqueles que querem compreender o novo  formato do capitalismo e, com base nestas características, ajudar no desenvolvimento de uma estratégia de superação do sistema com vistas à implantação do  socialismo.



Abrindo o seminário, Renato Rabelo, presidente do PCdoB disse que “as contradições do capitalismo contemporâneo estão em marcha, como também, impreterivelmente, avança, de certa forma, a consciência social na busca dos ideais libertários, na luta pela edificação de uma nova sociedade, superior ao  capitalismo. O socialismo aperfeiçoado pelas lições da história”.


 


Depois de tratar sobre o “fim da história”, tese elaborada por Francis Fukuyama e repetida como um mantra pelos neoliberais logo após a queda da União Soviética,  Rabelo lembrou que, passados mais de dez anos, “a verdade é que a política externa da maior potência capitalista mundial se escancarou numa política de guerra extremamente agressiva. O regime de livre comércio entre as nações não passa de uma retórica batida das grandes potências capitalistas a fim de, na prática, imporem seu diktat de domínio econômico e social”. Enquanto isso, salientou, “em nada se reverteu a tendência das desigualdades sociais e regionais no  atual sistema econômico”. 


 


Dentro do atual momento que o PCdoB caracteriza como “a nova luta pelo socialismo”, Rabelo lembrou que já em 1995, poucos anos depois da queda da União Soviética, os comunistas buscavam definir um programa de transição para o socialismo adaptado à realidade brasileira. “Foi um marco de resistência, pois naquele momento as convicções estavam bastante abaladas”, comentou. Desde então, completou, “procuramos nos desvincular de modelos e passamos a compreender a  passagem do capitalismo ao socialismo como toda uma transição histórica, relativamente longa”. Ele alertou, no entanto, que ainda falta formular um projeto que 
explicite uma transição de sentido socialista com as características de nosso país.


 


Interação Estado-mercado


 


O professor José Carlos de Souza Braga, diretor do Centro de Relações Internacionais do Instituto de Economia da Unicamp, foi o primeiro palestrante a tratar do tema “Características centrais do capitalismo contemporâneo – modificações nos últimos 30 anos”.  Braga chamou atenção para a ascensão do sistema financeiro na  cena econômica mundial, lembrando que as mudanças que resultaram nesta atual feição do capitalismo têm bases em escolhas e mudanças de cunho político, na  interação entre o Estado e o mercado. “A livre movimentação de capital por meio da desregulamentação neoliberal levou a isso. Agora, vivemos um momento de  dominância financeira”.


 


Segundo o professor, embora o fenômeno da especulação seja antigo na história humana, nunca a financeirização alcançou tamanha abrangência. Keynes, tendo em  vista essa tendência, já pregava a chamada eutanásia do rentista e propunha que o Estado coordenasse essa movimentação a fim de preservar a própria sociedade  burguesa. “Hoje, no entanto, o rentismo está tomando conta, ou seja, aconteceu o contrário daquilo que Keynes defendia”.


 


Tal padrão sistêmico calcado na especulação financeira em detrimento da maior valorização dos setores produtivos teve início nos Estados Unidos das décadas de  60 e 70. E seu desenvolvimento foi tão vertiginoso que atualmente, conforme salientou Braga, todos os agentes da estrutura estão envolvidos, tanto os dos setores  industriais quanto organismos como os bancos centrais. “Os BCs e os tesouros têm seus poderes limitados diante das finanças modernas. E as forças do sistema  financeiro são tão poderosas que acabam inviabilizando projetos desenvolvimentistas”, disse. Para ele, essa lógica não se trata de uma bolha, mas de algo estruturalmente estabelecido. “É um padrão perverso porque corrói as finanças públicas e impede políticas para o desenvolvimento e o avanço civilizatório”.


 


Exuberância irracional


“O espetáculo impressionante e avassalador dos mercados financeiros internacionais, com direito às emoções trombeteadas pela mídia, gera o risco de se tomar a  realidade tal como ela se apresenta apenas em aparência. Essa superficialidade circunscrita, por exemplo, aos fenômenos estrepitosos das oscilações das bolsas  prejudica a compreensão teórica, o esclarecimento científico, a elaboração de conceitos a partir da essência dos processos em curso. A difícil tarefa é ultrapassar a  festejada exuberância irracional”. Com esta colocação contundente, Renildo Souza, economista e professor do Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia, 
deu início à sua aula.


 


Souza lembrou Lênin ao dizer que da livre concorrência nasciam os monopólios. “A concorrência levava à acumulação, concentração e centralização de capitais e  de produção gerando os monopólios. Então, hoje a liberalização e a globalização da concorrência favorecem decisivamente a concentração e centralização de  capitais em mãos de poucos, confirmando a lei de movimento já formulada por Marx''.


 


Ao falar da gênese da atual financeirização, o economista recordou que a instauração da flutuação cambial em 1973 levou à especulação e à hipertrofia dos  mercados de câmbio, à revelia das necessidades produtivas e comerciais. O capital portador de juros, salientou, ''está cada vez mais dominando e redefinindo o  circuito do capital industrial''.


 


O assunto não é novidade. Marx já explicava a automatização do capital-dinheiro. O que mudou, disse, foi que, com o surgimento dos grandes  bancos e dos monopólios, pelas sociedades de ações, veio aquilo que Rudolf Hilfedering classificou de ''capital financeiro'', ou seja, a associação entre o capital bancário e o capital industrial, com a dominação do primeiro sobre o segundo. 


 


Dentro dessa lógica, Souza tratou ainda da situação dos Estados Unidos, país símbolo do mais feroz dos sistemas financeiros. Mesmo reconhecendo que ainda é a maior economia do mundo, o economista lembrou que desde meados dos anos 80, os EUA tornaram-se também o principal devedor. Para Michel Husson, conforme citação do professor, ''além da clássica tendência à super-acumulação de capitais, a economia norte-americana apresenta três anomalias: descolamento entre valorização na bolsa e lucro real – daí a bolha de 2001 e imobiliária em 2005, com crise em 2007 -, insustentável consumismo baseado em grande endividamento privado e gigantescos déficits externo e fiscal''.


 


Por fim, destacou Souza, ''o capitalismo parece que só consegue afastar algumas barreiras criando, ao mesmo tempo, novas dificuldades para si próprio,  sobretudo hoje, na preparação de futuras crises inter-imperialistas, que podem ser brechas para a retomada das lutas mais avançadas dos trabalhadores''.



Em seguida, Luiz Gonzaga Belluzzo, professor de Economia da Unicamp, ressaltou que o atual estágio do capitalismo reforçou o enfraquecimento  da atividade coletiva do ser humano, fundamental para sua existência. E hoje, a ''concentração de riqueza é maior do que a distribuição de renda'', tendência verificada por Marx já no século 19. Outro aspecto característico desses tempos é a forte integração mundial dos mercados que, segundo o professor, nunca foi tão intensa. Ele argumentou ainda que ''a evolução do sistema monetário caminha para uma desmaterialização da moeda. O lastro é algo primitivo. O capitalismo criou o fetichismo em torno da moeda e as pessoas acreditam nisso''.


 


Neste contexto, ele chamou atenção para o cenário nacional. Segundo Belluzzo, a China soube se inserir nessa nova realidade e se abriu de maneira virtuosa,  diferentemente do Brasil. E o fato de o país se colocar como grande exportador de comodities contribui ainda mais para a destruição da indústria, a atrofia do  desenvolvimento e a baixa geração de empregos. ''Nesse ritmo, o Bolsa Família terá de ser tamanho família'', brincou. Por fim, disse que a questão de fundo  atualmente é o papel hegemônico do dólar, moeda que tem fragilidades impostas pela própria realidade estadunidense.


 


Concluindo a primeira parte do seminário, o coordenador da mesa, Sérgio Barroso, resumiu os principais itens que marcaram os debates e que devem nortear a  análise do atual cenário. Entre eles estão a financeirização mundializada; a China que, com suas altas reservas, impede um crash na economia mundial; a  transformação dos tesouros e dos bancos centrais das grandes potências em reféns desse sistema financeiro e a necessidade de uma reforma no sistema financeiro  mundial.


 


A geopolítica do capitalismo


A parte da tarde foi reservada para o debate em torno da dinâmica, contradições e tendências do sistema, suas repercussões na esfera geopolítica, conjuntura e  perspectivas da economia internacional. A abertura ficou a cargo do secretário de Relações Internacionais do PCdoB, José Reinaldo Carvalho. O dirigente fez um  balanço das ações militaristas dos Estados Unidos nos últimos anos, em especial no Afeganistão e no Iraque, dentro daquilo que ficou conhecido como Doutrina  Bush, um conjunto de ações unilaterais e extremamente ferozes que, em nome de sua supremacia, acabou com a soberania das nações atacadas.


 


Seguindo a linha dos ''ataques preventivos'', os Estados Unidos invadiram o Iraque. No entanto, ressaltou José Reinaldo, ''a motivação para a guerra era outra. Tinha,  como tem, a ver com a afirmação do caráter unilateral e securitário da política externa estadunidense, com petróleo e com a conquista de posições geopolíticas na luta  que os EUA levam a efeito para exercer hegemonia no mundo. Ao invadir o Iraque, os Estado Unidos atropelaram a ONU e romperam com as normas das instituições multilaterais''.


 


O cenário atual, conforme analisou, ''revela os intentos dos EUA para impor sua hegemonia. Os EUA, diante das próprias dificuldades econômicas estruturais, entre  estas a debilidade do dólar, com maior passivo externo do mundo frente à emergência de novas áreas econômicas, geopolítcas e financeiras que ameaçam seu  primado, optam pela força como sinal de debilidade''. O resultado dessa ofensiva, segundo Reinaldo, é um retrocesso que ''cobra elevado preço aos povos e países  que circunstancialmente se tornam alvo dessa ofensiva''.


 


O dirigente apontou, ainda, dois grandes paradoxos que marcam nossa época. ''O primeiro deles é o que se expressa através de um sistema capitalista que se  expandiu adquirindo dimensões mundiais'', mas que ''se mostrou incapaz de gerar prosperidade coletiva''. O segundo paradoxo seria a existência de uma  superpotência – os EUA – com poderio militar e nuclear superdimensionado, ''mas que é precisamente o epicentro dos desequilíbrios econômicos estruturais e  sistêmicos do capitalismo atual e revela sinais de parasitismo e declínio''. Finalizando sua participação, o dirigente comunista declarou ainda que ''no processo de  acumulação de forças, o essencial é infligir, no dia a dia, derrotas às políticas econômicas anti-sociais e anti-nacionais do imperialismo e às suas políticas de guerra''.


 


Em seguida, Francisco Carlos Teixeira da Silva, historiador e professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército relativizou a crise americana.  ''Tenho dúvidas se estamos vendo um processo de decadência dos EUA. É verdade que o país já foi responsável por 50% da riqueza mundial e hoje responde por  1/4. Mas, dentro do contexto histórico, aqueles 50% eram altos demais. Esse índice só foi alcançado por conta do cenário do pós-guerra. Acho que [a crise] é mais conjuntural do que estrutural''.


 


Dentro do cenário atual, Teixeira destacou o papel do Brasil, que tem sua importância potencializada na medida em que se amplia o quadro de integração latino-americana. Esses processos de integração, disse, não se colocam como um novo projeto hegemonista, mas como uma forma de fortalecimento regional. ''É um projeto político com interesse em remodelar a ordem mundial de maneira mais justa''. Neste sentido, o professor destacou os movimentos políticos autônomos verificados na Bolívia e na Venezuela. Concluindo, disse que ''a tentativa de se impor apenas um modelo implicaria em aceitarmos a tese do fim da história e o que vemos hoje é a negação dessa tese com a emergência de novas possibilidades''.


 


Complementando o discurso anterior, Luis Fernandes, cientista político e professor da Universidade Federal Fluminense, salientou que a imagem do fim da história  foi um ''reflexo da euforia do liberalismo dos anos 90''. No âmbito do poder político, os EUA, na avaliação de Fernandes, demonstram suas debilidades nos  episódios dos ataques ao Afeganistão e ao Iraque. ''Sua hegemonia ficou em xeque. E isso ficou claro quando França e Alemanha disseram 'não' à entrada no Iraque''.


 


Do ponto de vista econômico, Fernandes explicou que os EUA são uma ''economia em desarticulação'', o que pode se verificar no fato de que, na última  década, o país não conseguiu recuperar a posição de potência  e tem seu peso relativo em processo de declínio. ''Hoje, vão se construindo pólos importantes com  um dinamismo maior do que o dos EUA, levando à multipolarização da economia''.


 


Além dos palestrantes, dirigentes e parlamentares do PCdoB, participaram do primeiro dia do seminário o ministro do Esporte, Orlando Silva e os convidados  internacionais Pan Ming Tao, conselheiro político da embaixada da China; Neguyen Viet Thao, diretor da revista teórica do PC do Vietnã; Angelo Alves, da  comissão política do Comitê Central do PC de Portugal e Laura Graffe, vice-cônsul da Venezuela. O seminário segue nesta terça-feira, 20, com os temas ''Lições da experiência soviética'' e ''Perspectivas da nova luta pelo socialismo''.


 



De São Paulo,
Priscila Lobregatte