A nova Argentina, vista de Havana
A posse presidencial de Cristina Fernández de Kirchner marca a consolidação de um grupo governante que decidiu integrar na América Latina uma coalizão independente da hegemonia do abusivo bushismo imperial. Chávez, Lula, Tabaré, Evo, Correa, Michelle e
Publicado 11/12/2007 19:34
Não por acaso, no dia anterior à posse foi assinado o acordo para criar o Banco do Sul, integrando a Venezuela, Brasil, Bolívia, Equador, Argentina, Uruguai e Paraguai, com um capital de US$ 7 bilhões e francamente distanciado do Fundo Monetário Internacional (FMI). É possível a integração futura do Chile, Peru, Guiana e Suriname.
Ovelhas se emancipam; o que farão os lobos?
A receita do FMI para nossos países consiste em apertar o cinto, reduzir o gasto público, manter os salários no nível mínimo, fechar indústrias não competitivas, submeter-se absolutamente ao mercado, privatizar tudo que puder, reduzir o orçamento de benefícios sociais, substituir a produção nacional por importações. Tudo isso conduz à perda do poder aquisitivo dos salários, à redução acelerada do nível de vida e ao aumento vertiginoso do desemprego. Em síntese: fazer-nos engolir a pílula amarga da austeridade.
O que farão os lobos de Washington diante da emancipação daquelas que antes eram mansas ovelhas? Como poderão se apresentar perante a União Européia como supostos líderes do Novo Mundo?
O ódio mundial generalizado contra os Estados Unidos, mais as novas autonomias, debilitam cada vez mais o hegemonismo das corporações transnacionais. As petroleiras já não conseguem proclamar seu domínio no Oriente Médio. Canalhas corruptos como Dick Cheney, Rove, Rumsfeld, Wolfowitz, Otto Reich e Richard Perle, entre outros, que se apoderaram ilegalmente do poder em Washington, assistem sua autoridade minguar.
“Banqueirização”, “corralito” e “panelaços”
Com Kirchner, a Argentina emergiu do abismo em que tinha afundado no período do ladrão foragido Carlos Menem, em cujo governo o país acumulou uma dívida externa de US$ 132 bilhões. O então ministro da Economia, Domingo Cavallo, pediu emprestado ao FMI US$ 1,3 bilhão para rolar o compromisso, mas o Fundo negou. A Argentina chegou a ter um déficit orçamentário de US$ 6,5 bilhões, e os banqueiros de Washington exigira que se reduzisse o rombo para abrir de novo o crédito.
A tudo isso se somou a instabilidade monetária, a “banqueirização” (que consistiu em limitar os saques mensais a US$ 1.000 por mês) para evitar a fuga de capitais. A taxa de desemprego era de 20%. Foram os tempos do “corralito”, dos saques a supermercados, das greves e “panelaços”. Com Kirchner as reservas aumentaram para US$ 30 bilhões, equacionou-se a dívida externa e o desemprego baixou para 10%.
Quando a Argentina era rica
Nas três primeiras décadas do século 20, a moeda argentina era considerada a terceira mais forte, depois da libra britânica e do dólar. A Argentina passara a ser o segundo maior exportador de trigo: a área semeada cresceu de 200 mil hectares, em 1872, para 12 milhões no início da 1ª Guerra Mundial. A reder ferroviária quadruplicou. Entre 1880 e 1914 o número de indústrias passou de 20 mil para 950 mil e o de operários foi de 174 mil para 420 mil. Entre 1874 e 1914 a população argentina cresceu 400%. Os salários e rendas eram superiores aos da Suíça, Alemanha, França, Espanha e Itália.
Toda essa imensa riqueza foi engolida pela inépcia, a corrupção e o autoritarismo dos governantes.
Juan Domingo Perón e sua mulher, Eva Duarte, souberam interpretar os anseios de uma vasta massa proletária, desprotegida e vulnerável. Eram os descamisados, privados dos privilégios de quem habitava as luxuosas mansões de Palermo (bairro rico de Buenos Aires) e das casas grandes das extensas estâncias de gado. A Argentina que já foi potência mundial, a grande exportadora de carne e grãos, deixou atrás de si a carapaça de uma cidade com apetites de Primeiro Mundo e um exército de miseráveis. A eles Perón conduziu numa cruzada que deixou vasto prestígio político e escasso ganho econômico.
A herança de Cristina
A ditadura de Juan Carlos Onganía instaurou um modelo autoritário, clerical, corporativo, e consagrou no país o Sagrado Coração. Somente durante a tirania de Rafael Videla, as organizações de direitos humanos registraram 25 mil desaparecidos – eufemismo com que se designa os assassinados pelos militares. O general Galtieri deixou um legado de centenas de mortos em combate.
É este o legado que recebe Cristina Fernández. O futuro da nova Argentina dependerá em muito de sua destreza política.
* Romancista e jornalista cubano, prêmios Casa de las Américas (1963) e Nacional de Literatura (2002); artigo tomado de http://www.rebelion.org; intertítulos do Vermelho