Márcio Thomaz Bastos – O advogado de Lula
Ministro da Justiça ao longo de quatro anos e três meses, o criminalista Márcio Thomaz Bastos foi um dos principais conselheiros do presidente Lula. Ele, inclusive, foi determinante na administração da chamada crise do mensalão pelo Palácio do Planalto
Publicado 17/12/2007 19:44 | Editado 04/03/2020 16:36
Márcio Thomaz Bastos trocou o escritório pelo Ministério, se diz feliz com o que conseguiu realizar enquanto esteve no cargo e elogia Lula por nunca ter tentado interferir no trabalho da Polícia Federal
Márcio Thomaz Bastos era, até janeiro de 2003, “apenas” um famoso advogado de nome nacional, à frente de uma clínica criminal inserida entre as mais procuradas e mais caras do País. Sua carteira de clientes sempre teve como marca o ecletismo político, nela cabendo tanto o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva (o da fase pré-presidencial) como o poderoso coronel da política nordestina Antonio Carlos Magalhães. Dois ícones, durante um bom tempo, do que se poderia definir como sendo esquerda e direita.
Quando ele disse “sim” ao convite de Lula para assumir o ministério da Justiça surpreendeu o País, os amigos e, em especial, os clientes, que lhe garantiam ganhos mensais calculados à época em R$ 300 mil. Questionado um dia sobre a decisão, foi sucinto ao apontar a razão principal de sua pronta aceitação; “vaidade, talvez”. Feliz com o resultado de seus quatro anos de trabalho no ministério, ele agora tenta retomar o ritmo como profissional, mas já admite que a experiência lhe deverá trazer problemas novos. Um deles será, conforme ressalta, advogar contra a Polícia Federal, instituição que ganhou grande visibilidade nos quatro anos do primeiro governo Lula. Aliás, foi uma homenagem do Sindicato dos Delegados da Polícia Federal e da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, na noite do último dia 10, que o trouxe a Fortaleza.
O senhor assistiu ao filme Tropa de Elite? Como avaliou a caracterização da Polícia carioca, que usa da tortura como fonte de informações?
Eu gostei do filme. Não acho que tenha sido apologia da tortura. Acredito que, ao contrário, foi uma advertência em relação à tortura. A tortura é uma coisa que no Brasil, durante muito tempo, foi tolerada e, depois na ditadura de 64, quando atingiu a classe média, houve uma gritaria muito grande e criou-se uma sensibilidade em relação à ela. Mas o fato é que ela existe até hoje não só no Brasil. Funciona num nível de pretexto. O sujeito diz que é preciso torturar para ter informações ou para ter informações rápidas. Como diz o Élio Gaspari, o torturador está tentando se tornar inimputável. Está procurando justificar aquela relação mórbida, degradante da relação humana. Mas acredito que no Brasil já tenhamos tido avanços em relação a isso, mas é uma luta contínua, permanente, pois a tentação daquela pessoa que tem outro ser humano sob seu domínio de violentá-la é muito grande. A minha vida inteira fui contra a tortura. É um dever humanista de todo mundo e é uma luta que não deve parar. Nunca se vai expungir a tortura da vida universal, mas é preciso combater e a certeza daqueles que praticam, como qualquer crime, que existe punição.
O que faz o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, do qual o senhor é membro fundador?
Ele foi criado por um grupo pequeno de advogados criminais que queriam fazer prevalecer o Direito de Defesa. Hoje, uma nova geração está fazendo crescer. Quer fazer uma advocacia de ponta para pessoas desvalidas e sem acesso à Justiça e protestar contra quando o direito de defesa for atingido, seja por quem seja. Então exerce um papel importante. Enquanto ministro da Justiça tive uma posição difícil pois eu era o encarregado de comandar algumas instituições em relação às quais sempre houve reclamações porque exprimem a tensão dialética entre o direito de defesa e o direito da sociedade de punir os crimes.
Essa era uma função do senhor no Ministério?
Eu tinha uma função mais específica que era reconstruir as instituições republicanas no Brasil. Que a maneira de combater a criminalidade sempre foi, não acreditar na virtude dos homens, como dizia Montesquieu, mas, sim, acreditar nas instituições independentes, livres e eficientes. Procuramos fazer isso com a Polícia Federal e com o Ministério Público Federal. Basta ver que ao longo do primeiro mandato do presidente Lula foram nomeados sistematicamente os procuradores-gerais mais votados pela classe, na lista tríplice. O Presidente pode nomear quem quer. Ele nomeou Cláudio Fonteles, Antonio Fernando e mesmo depois daquela denúncia do chamado mensalão, onde foram denunciadas 40 pessoas próximas do governo, o procurador-geral foi reconduzido pelo presidente.
Por que antes a Polícia Federal não agia como o fez no governo Lula? O que senhor encontrou lá quando chegou?
A PF que encontrei era uma instituição que já merecia o respeito do povo brasileiro. Mas estava desequipada, com déficit enorme de pessoal, de equipamento e não usava as técnicas modernas de investigação que vieram a se configurar nessas operações da Polícia Federal. Foram feitas em quatro anos quase 400 operações, onde o crime organizado foi combatido em todos os Estados. E como se fez isso? Equipando a polícia, mantendo reuniões sistemáticas entre o diretor geral, um exemplo de servidor público, que é o Paulo Lacerda, e o ministro da Justiça. Eram reuniões diárias nestes quatro anos. Meu primeiro despacho, às 8h30min, era com o doutor Paulo Lacerda. E o uso de técnicas modernas, como monitoramento telefônico, uso intensivo de inteligência, planejamento estratégico, prisão temporária. Enfim, métodos de investigação que são usados no mundo inteiro, mas, aqui, eram usadas com muito cuidado, ao ponto de todas estas operações terem sido consumadas sem ter sido disparado um único tiro. Nunca a Polícia Federal deu um tiro, por que havia um trabalho prévio de inteligência e um planejamento estratégico rigoroso. Lembro que numa das operações as quadrilhas tinham armamento forte, pesado. Quando fui comunicado, fiquei preocupado, pois achava que ia ser uma guerra, ia haver tiroteio, porque eles tinham granada, bazuca, metralhadora, fuzis. Mas a coisa foi feita de tal maneira e planejamento que quando foi desencadeada, as pessoas estavam dormindo, as armas lesivas estavam de lado. Então, foi um trabalho que tenho muita alegria de ter participado. Eu acho que conseguimos, a partir de um ponto de partida forte, com uma Polícia Federal existente, fazer concursos, valorizar a academia e fazer uma Polícia Federal nova em cima daquela que já existia. Fiz uma imagem no discurso de posse do Paulo Lacerda, dizendo que a tarefa dele era construir o FBI brasileiro e eu acho que está sendo conseguido.
Foram necessárias operações internas na Polícia Federal contra corrupção?
Não houve nenhuma hesitação da corregedoria em cortar na própria carne. Foram dezenas de servidores exonerados. Tanto é que hoje tem um quadro de jovens na Polícia Federal que tem orgulho do trabalho e exercem um papel fundamental em qualquer país civilizado. Teve dezenas de operações internas. Uma das características dessa nova diretoria foi a incompatibilidade com qualquer corrupção ou desvio ético.
Existem duas Polícias Federais? Uma que realiza essas operações, que seria de elite, e uma que está mais na burocracia e que é pouco informada sobre estas operações?
Eu não acredito. Eu tenho a convicção de que a Polícia Federal é uma só. Tem suas carências, claro. Mas os servidores têm orgulho de trabalhar na Polícia Federal.
Existe uma Tropa de Elite dentro da Polícia Federal?
Não. Eu sempre digo que segurança se faz de três formas: inteligência, integração e corregedoria. É fundamental esse olhar da corregedoria a fim de impedir que o organismo se torne suscetível a deslizes. E isso a gente aplicou não só na Polícia Federal mas também no Sistema Único de Segurança Pública, que é a integração das forças federais com as forças estaduais. Temos problemas sérios, como o carcerário, mas se deu avanço com as duas penitenciárias federais que estão funcionando e as duas que funcionarão ainda este ano. Elas servem como reguladoras de estoque dos sistemas penitenciários estaduais. Então os comandos das quadrilhas não estão mais nos presídios estaduais, estão nos federais e funcionam como lugar de guarda e desestruturação das quadrilhas que se montam nos sistemas carcerários estaduais. Acredito que essas duas coisas levaram a segurança do País a avançar. É um processo. Estamos caminhando na direção de construir um sistema sólido para transformar o Brasil em um País mais seguro.
O senhor destaca que todos os dias se reunia com Paulo Lacerda e era informado sobre as operações. Como era o seu controle sobre as operações?
Eu procurava não discutir. Quando estive no Congresso Nacional me perguntaram se eu controlava a Polícia Federal. Eu falei que nem queria controlar a Polícia Federal. Ela não é órgão de governo, é de Estado. Quero que os rumos sejam seguidos. Tinha conhecimento das operações, sabia que iam se realizar mas nunca interferi nelas. Para ser justo, também o presidente nunca interferiu, nunca pediu que perseguisse alguém ou protegesse alguém. De modo que a Polícia Federal, republicana, impessoal, que não persegue, é uma realidade.
O senhor foi acusado de ter atuado como um advogado do presidente Lula. Isso aconteceu?
Essa é uma história que virou verdade, embora não seja. De tanto ser martelada. Teve em alguns momentos da crise de 2005 e 2006 do governo Lula, quando alguns ministros caíram, surgiu a noção de que não seria má idéia derrubar o ministro da Justiça. Então houve esforço nesse sentido. Eu nunca fui advogado. Se eu fosse advogado acredito que teria feito uma defesa melhor do que a que foi feita. Fui para o Ministério da Justiça saindo de uma carreira bem sucedida de advogado. Até hesitei, pelos prejuízos que minha vida pessoal iria ter. Eu fui com a consciência que tinha duas lealdades: uma ao presidente da República e outra às instituições. Eu tenho certeza hoje, depois de 50 meses de Ministério da Justiça, que a minha lealdade às instituições não foi em nenhum momento prejudicada pela minha lealdade ao presidente da República. É claro que o presidente conversava comigo sobre os aspectos jurídicos das coisas que surgiam. Ele não ia conversar com o ministro da Saúde ou da Pesca. Conversava com o ministro da Justiça. Mas nunca fiz defesa, nunca atuei como advogado, a não ser do País, como pessoa empenhada em construir instituições, como a Força Nacional de Segurança, o sistema carcerário federal, o Susp, a PF e o MPF independente. Como nunca houve no Brasil. Se você olhar na história, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nomeou quatro vezes, portanto oito anos, o mesmo procurador-geral que nunca entrava na lista da classe. Nós, não. Nomeamos sempre os mais bem votados. Isso significa a consciência que o governo tem de servir mais ao Estado que ao governo. Acredito que esse papel eu fiz.
Com relação ao combate de drogas, em parceria com os Estados Unidos? Teve o Plano Colômbia, a Lei do Abate. Como o senhor vê o resultado? Hoje o mercado continua abastecido de drogas…
A questão da droga tem que ser discutida. A droga tem uma capacidade de geração de caixa tão grande que a repressão tem um limite. A solução para alguns crimes nesse mundo globalizado, é combater a lavagem de dinheiro, fundamentalmente. E isso foi feito muito no primeiro mandato de Lula. Foi criado o Departamento de Recuperação de Artigos e Cooperação Política Internacional. Fizemos acordos com o mundo inteiro. Eles continuam a ser celebrados até hoje. A única maneira de combater esse crime é torná-lo desinteressante economicamente. Não se consegue combater só com repressão. É preciso também economicamente, tornando o produto do crime uma coisa que possa ser capturada e tornar desinteressante economicamente. Pois, veja: se você comprar, aplicar 20 mil dólares em cocaína aqui em Fortaleza, descontar os custos com transporte etc e levar este produto para algum país da Europa Ocidental, você vende isso por um milhão de dólares. É um retorno grande. É preciso fazer um movimento global para acabar com isso. Mas avançou muito. A Polícia Federal teve ataques frontais e desmontamento de quadrilhas. Mas as pessoas estão sendo substituídas e algumas continuam trabalhando de dentro da prisão. Nós tivemos um exemplo agora de uma quadrilha que foi desmantelada e que era comandada de dentro de uma prisão federal. É uma luta que não acaba. O combate à lavagem de dinheiro é importante em todo o mundo. Quanto às operações na Amazônia, elas tiveram caráter mais repressivo e desmantelaram quadrilhas poderosíssimas de roubo de cargas e etc. Com a possibilidade de monitoramento, tivemos varias apreensões de drogas no momento que ela chegava ao seu destino. Tivemos cooperações dos EUA, países da Europa, com todos aqueles que têm o interesse global nesse combate. É um combate diário que não pode terminar.
O senhor falou do FBI brasileiro. E a CIA brasileira? Está bem representada pela Abin?
Eu acredito que com o Paulo Lacerda no comando da Abin e com o amadurecimento da inteligência como atividade importante de defesa do Estado, acho que podemos criar, a partir da Abin, um sistema de inteligência que se aproxime da divisão de inteligência da PF. E que se estabeleça um núcleo comum em que todos os órgãos possam partilhar informações e ter reação imediata através de gabinetes de gerenciamento de crises. Acredito que a CIA faz isso e que no Brasil está sendo estruturado. O presidente Lula aumentou em março de 2003 em 70% o efetivo da Polícia Federal. Foi o ponto de partida para esta tarefa de uma nova Polícia Federal. Acredito que teremos um novo sistema de inteligência voltado para combater estes crimes.
Existe muita reclamação de parlamentares que se sentem inseguros ao falar ao telefone, com medo de serem escutados. Há exagero nisso?
Eu acredito que possa ter tido exagero em escutas. Mas a escuta é fundamental para desmantelamento das quadrilhas. Se não a tivermos para produzir prova, não chegaremos a bons resultados. O equipamento Guardião é uma garantia do cidadão. As conversas só vazam quando saem da Polícia Federal, quando a operação eclode. Tem operações que consumiram dois ou três anos e nunca vazou nada. Começa a vazar quando outras pessoas tem acesso.
E agora? Como fica a relação do senhor com as informações que adquiriu ao longo do período como Ministro?
Estou com esse problema que é sério, de natureza profissional e existencial. Quando fui para o Ministério da Justiça, estabeleci uma regra empírica. Eu tinha uma quantidade de informações grande devido à minha clínica criminal. Então estabeleci que como advogado não uso o que sei como ministro e o que sei como ministro não uso como advogado. Isso tem me criado problemas. Tenho recusado muitas causas. Com a Polícia Federal, minha relação é tão intima, de confiança recíproca, respeito, que teria dificuldade de acompanhar um cliente que vá a Polícia Federal, até pelo efeito que minha presença causaria. Mas tenho recusado causas. Fiz uma quarentena de 6 meses que eu não seria obrigado. Também com relação aos Tribunais, que participei de diversas nomeações. Estou tendo dificuldades, sim, de natureza ética, mas pretendo superar ao longo do tempo. É como se tivesse feito uma viagem para o outro lado e tivesse voltando. Mas sei que agora me oponho à uma Polícia Federal mais institucionalizada, mais imune à corrupção.
E o trabalho do seu sucessor?
Está indo bem. É um ótimo gestor. Manteve a estrutura grande que já estava montada. Montou o Pronasci, que procura compatibilizar a atividade social com a repressiva. É o PAC da segurança. Muitas dessas medidas estavam sendo pensadas desde o meu tempo e foram consolidadas agora. Hoje o Ministério da Justiça tem mais dinheiro que no meu tempo. Terá grande êxito esse projeto. Logo no primeiro ano implantamos o Susp e assinamos convênios com todos os estados. As pessoas estão integradas. Aqui no Ceará, por exemplo, tivemos integração com o gabinete integrado de segurança pública. Tem funcionado melhor em alguns estados e pior em outros, mas é um processo. Hoje tem um colégio de secretários de Segurança. Em São Paulo só instalamos depois da crise do PCC. Mas é difícil mesmo. Tem interesses de toda ordem, pontos de vista diferentes.
E o Ceará e o Nordeste, como estão se comportando?
Temos um delta de grande número de delegados da Polícia Federal que são secretários de Segurança Pública. São cerca de 10 secretários, como o Roberto Monteiro aqui no Ceará. Então imagino que esse processo vá avançar. Sei que o problema da segurança assola a imaginação de todos os brasileiros, mas tenho consciência que o alicerce foi construído. Os projetos das regras do jogo para transformar a justiça mais rápida foram feitos. As instituições foram mexidas. Agora é trabalho de consolidação, correção de erros. Eu saio com a consciência tranqüila. Chego até a brincar que não sei como consegui viver até aquela época sem ter sido ministro da Justiça. Mas, agora, estou voltando para a advocacia que é minha verdadeira vocação.
Como o senhor vê a flexibilização da Lei de crimes hediondos, com a qual os criminosos passam menos tempo em regime fechado?
Tenho dúvidas quanto a isso. Eu não acredito na lei dos crimes hediondos como ferramenta eficiente de combate. O que diminui a criminalidade não é o tamanho da pena, é a certeza da punição, então, se tiver uma policia que investiga crimes e sistema judiciário que atribui penas, essa é a forma de combater a criminalidade. O Supremo entendeu que era inconstitucional não haver progressão na pena, de fechado para semi-aberto e depois para aberto. Então o sujeito ficaria 1/6 da pena e iria direto para a liberdade, pois muitos estados não têm como fazer o semi-aberto. Então eu, junto com o presidente, mandamos uma mensagem aumentando de 1/6, que havia sido definida pelo Supremo, para 1/3 da pena em regime fechado. Mas muitas pessoas foram beneficiadas. No fundo, o Ministério da Justiça endureceu a interpretação do Supremo.
Fonte: O Povo