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Carl Bernstein: “Hillary passou a vida escondendo verdades”

Nesta entrevista ao jornal Le Monde, o jornalista Carl Bernstein revela um pouco mais sobre a trajetória e as idéias de Hillary Clinton, a senadora que tem chances reais de tronar-se a primeira mulher a presidir os Estados Unidos da América.

Não é qualquer um que pode se orgulhar de ter sido encarnado, aos 32 anos, por Dustin Hoffman num filme (“Todos os Homens do Presidente”, de Alan J. Pakula, 1976). Carl Bernstein deve esta glória a uma façanha jornalística: ele, junto com Bob Woodward, o seu colega no “Washington Post” (encarnado no filme por Robert Redford), desvendou em 1973 o caso do Watergate, que conduziu o presidente Richard Nixon (1913-1994) a renunciar. “A Woman in Charge: The Life of Hillary Rodham Clinton” é o seu sexto livro. Ele o começou tão logo Hillary Clinton anunciou sua candidatura a senadora, antes mesmo do final do mandato do seu marido. Este livro é o mais equilibrado de todos aqueles que foram publicados a respeito da ex-primeira-dama, todos marcados ora pela adulação, ora pela depreciação. Além disso, é de longe o mais rico em detalhes: Facts, facts, facts (“Os fatos, sempre os fatos em primeiro lugar”).


 


 


A sua biografia de Hillary Clinton ressalta que Bill e ela formam “um casal” indissolúvel. A presença do ex-presidente ao seu lado será mesmo um trunfo?
Carl Bernstein – Indissolúvel? A certa altura, ela quis deixá-lo. Mas o casal está unido por laços muito fortes, é uma verdadeira história de amor. Atualmente, está claro que ele esta cumprindo uma “missão” para ela. O problema é que muitas pessoas consideram a eventual vitória de Hillary como uma restauração: o retorno dos Clinton à Casa Branca. E elas se perguntam se estão realmente com vontade de assistir a um novo psicodrama na cúpula do Estado.



De maneira surpreendente, longe da sua imagem de “mulher moderna”, ela está aparecendo antes como tradicionalista…
Bernstein – As biografias a seu respeito, lisonjeiras ou hostis, privilegiaram os estereótipos. Eu quis fazer um retrato o mais honesto e detalhado possível. Precisei de nove anos para este projeto. Ela mesma se descreve numa carta como “alguém com mente conservadora mas com coração progressista”. A religião e a família são os fundamentos da sua vida. Paralelamente, os direitos civis, as minorias, as pessoas humilhadas a preocupam realmente. A vergonha a marcou profundamente desde a infância. Ela precisou de trinta anos para reconhecer que, quando ela era uma jovem jurista, havia fracassado no exame de admissão à Ordem dos Advogados de Washington. Ela passou a sua vida escondendo verdades. Antes mesmo do seu casamento, ela já sabia que a compulsão sexual de Bill seria um obstáculo político. Ela sempre assumiu a responsabilidade de esconder este problema.


 


Quando ela descobriu a ação política, na universidade, em meio à efervescência esquerdista do final dos anos 1960, ela não demorou a se tornar uma líder, mas “que atuava com prudência no âmbito do sistema”…
Bernstein – Nos primórdios da sua carreira, ela é republicana, da mesma forma que o seu meio social. Na política, ela sempre se posiciona no sistema. Paralelamente, ela quis por muito tempo se libertar disso. Ela pode mostrar-se obstinada frente a forças hostis, como em 1992-1993 quando ela fracassou na sua tentativa de fazer aprovar a reforma dos planos de saúde. Além disso, na luta política, ela não faz prisioneiros.


 


Em 1991, Hillary fez campanha com Bill sobre o tema da “mudança de geração”. Hoje, ela está se defrontando com alguém que vem erguendo esta mesma bandeira: Barack Obama…
Bernstein – Ela não pode arriscar-se a competir com ele neste terreno. O único meio de responder a isso é valer-se dos seus próprios trunfos, e, portanto, da experiência que ela tem do sistema. Dito isso, ela me surpreendeu no início da campanha. Eu pensava que ela enxergaria melhor o perigo, que ela responderia de modo mais contundente a Obama, que ela se mostraria mais incisiva. Mas Hillary Clinton apareceu como o clichê dela mesma: segura de si, gélida.


 


Um senador lhe disse que, apesar de se mostrar excelente em relação a questões como a saúde ou o salário mínimo, ela “se parece com uma versão cansada dela mesma”. O senhor confirma esta avaliação?
Bernstein – Foi o sentimento que ela transmitiu até a votação em Iowa. A surra que ela tomou fez com que despertasse. Ela começou a se mostrar mais sincera, não só porque não conseguiu segurar algumas lágrimas. Ela passou a mostrar-se mais acessível. Ela tem um verdadeiro problema neste plano. Hillary se protege atrás de uma couraça e quer controlar tudo.


 


Desde o início da carreira de Bill Clinton, em Arkansas em 1982, ela foi o objeto de uma campanha hostil. O que pode explicar esta animosidade, que volta e meia ressurge em certos círculos conservadores?
Bernstein – Ela e Bill travaram um combate absolutamente fundamental nos Estados Unidos. Ele foi o primeiro presidente democrata reeleito desde Roosevelt! Eles triunfaram em duas ocasiões sobre a máquina da direita, por mais que esta fosse muito mais rica e poderosa. A cólera que ela suscita não se deve exatamente à sua pessoa, e sim às idéias que ela encarna. Os Clinton representaram tudo aquilo que a direita “dura” detesta. Além disso, uma vez que ela vive uma relação muito difícil com a verdade, que ela sempre procura esconder coisas, isso faz com que certas pessoas enlouqueçam de raiva e lhes forneça munições para atacá-la.


 


O senhor se refere às “forças negativas em ação em Washington”. De que se trata?
Bernstein – Nasci nesta cidade e a minha mãe também. Eu conheço muito bem o nosso sistema político. Ora, ele não está mais funcionando já faz mais de 25 anos! Ele mostra-se incapaz de atender às necessidades em infra-estrutura deste país em termos de saúde, de educação e de mil outros problemas. Washington é uma máquina de triturar iniciativas. E os problemas de funcionamento passaram a atingir o nosso sistema eleitoral. Por mais que George W. Bush tivesse obtido um número menor de votos que Al Gore em 2000, ele ainda assim foi eleito. Tudo isso para ele ser marcado com a mais desastrosa das presidências da era moderna. Washington é um sistema no qual o dinheiro é o primeiro determinante da política. Nenhuma nova reforma fundamental conseguiu ser adotada nesta capital desde os direitos civis, durante os anos 1960. Os lobbies predominam. As pessoas passam o seu tempo todo coletando fundos. Quando Hillary chega ao Congresso, em 1993, ela sabe que este sistema não funciona. Por natureza, ela não está inclinada a fazer compromissos. Mas a máquina é poderosa demais e Hillary foi forçada a se dobrar. Por fim, eu creio que ela só veio a compreender realmente o seu funcionamento quando se tornou senadora. A chave, em Washington, é descobrir como fazer compromissos sem vender a alma.


 


Como jornalista, o senhor faz uma descrição aterradora dos costumes jornalísticos americanos…
Bernstein – Bob Woodward e eu somos muito críticos em relação aos veículos de comunicação americanos. Mas é preciso reconhecer que o “New York Times”, o “Wall Street”, o “Washington Post” e mais dois ou três diários, além de alguns raros jornais locais, são muito melhores hoje do que na época do Watergate. Tudo o que sabemos da presidência de Bush, nós o descobrimos na imprensa.


 


Por que Hillary Clinton detesta tanto os veículos de comunicação?
Bernstein – Ninguém mais do que ela, em nossa vida política contemporânea, sofreu tantos ultrajes indignos, todos disparados ou veiculados pelos meios de comunicação. Mas ela também foi alvo de ataques fundamentados, que ela tampouco suporta. Há um ano, eu ouvi Bill proferir um extenso discurso sobre a imprensa, no qual ele conclamou os jornalistas a refletirem, a levarem em conta o contexto tanto quanto os fatos. O problema com os Clinton é que quando a imprensa faz este trabalho a seu respeito, eles se esquecem desses belos discursos. Ao mesmo tempo, já faz 25 anos que nós estamos permanentemente à procura deles. Hillary vivencia isso como se a imprensa estivesse ali para impedi-la de agir. Recentemente, no seu ônibus de campanha, ela começou a falar com os jornalistas: eles ficaram pasmos. Depois do desastre Bush, nós precisamos de uma pessoa sincera, aberta. Desse ponto de vista, a campanha inicial de Hillary junto aos meios de comunicação foi desastrosa: digna de um aparelho soviético.


 


Hillary Clinton despreza os grupos petroleiros e farmacêuticos, os bancos que “estrangulam” a economia americana. Será isso uma estratégia de campanha ou o fruto de uma convicção?
Bernstein – Os dois. Ela sempre nutriu ressentimentos contra essas companhias. Basta lembrar sua briga com a indústria farmacêutica e com as seguradoras de saúde privadas quando ela quis reformar o seguro-saúde. Entretanto, ela aceita embolsar o seu dinheiro para a sua campanha. Como “animal político”, ela se parece cada vez mais com Bill.


 


Em qual medida a atitude em relação à guerra no Iraque é relevante no processo de escolha do candidato democrata?
Bernstein – A questão iraquiana não está trazendo tantos prejuízos para Hillary quanto Obama teria desejado. Ela não pediu desculpas pelo seu voto, como fez Edwards. Dito isso, ela acredita que um presidente americano deve poder obter os meios necessários para conduzir a sua política em caso de ameaça grave. E ela afirma que Condoleezza Rice lhe havia assegurado que o presidente Bush não entraria em guerra sem o aval das Nações Unidas. Nada indica que o seu vote tenha sido cínico.


 


Da mesma forma que em 1992, as grandes questões do momento são a redução do déficit, o reaquecimento da economia, as dificuldades da classe média, a saúde…
Bernstein – Hillary sabe que as receitas de 1992 não podem simplesmente ser repetidas hoje. Além disso, em 1992, os Estados Unidos não estavam em guerra. As semelhanças não são suficientes para estabelecer uma estratégia política. E nós teremos passado oito anos com uma presidência muito radical de direita. O radicalismo fracassou. Obama e Hillary Clinton não são radicais. O próximo presidente, seja democrata ou republicano, sabe que terá de reparar os danos incríveis que foram causados pela administração Bush.


 


Fonte: Le Monde
Tradução: Jean-Yves de Neufville / UOL Mídia Global