A Direita Existe

A propósito da confusão criada pelos americanos na Colômbia, através de seu serviçal, o presidente Álvaro Uribe, eleito com dinheiro do narcotráfico, vale a pena ler o livro História dos Estados Unidos, das origens ao século XXI, (São Paulo: Contexto,2007

O livro traça uma trajetória do país, desde o seu nascimento até os dias de hoje, a partir de uma visão comum nas Universidades brasileiras, qual seja, um ponto de vista de esquerda moderada, com elementos de análise marxistas como a análise das contradições entre movimentos sociais e o capital, do papel da religião e da mídia, porém sem enveredar para a panfletagem ou demonização dos Estados Unidos.


 


Pelo contrário, faz um esforço sincero para manter um afastamento adequado a uma observação científica, o que permite a revelação de vários aspectos positivos da história daquele país, com impacto inclusive na nossa história e nas nossas conquistas como sociedade. Entre eles podemos citar a luta pelo voto feminino, a luta dos negros e dos homossexuais.


 


Mais importante ainda é a história de luta sindical naquele país, muito mais forte que a nossa, e as conquistas obtidas, que serviram de parâmetro para nossas leis trabalhistas.


 


Interessante descobrir, por exemplo, que o Partido Comunista dos Estados Unidos (CPUSA) era muito forte e influente no início do século XX, e que os comunistas americanos estavam na base dos grandes sindicatos, mas que não davam muita importância às reivindicações dos negros.


 


Chocante é a história do racismo no sul, após a abolição da escravatura e de como todos os governos foram coniventes com as manobras para eliminar as conquistas dos ex-escravos e reduzi-los novamente a uma condição de semi-escravidão. Sobre isso, os autores desmistificam Kennedy e demonstram que o presidente que mais fez pelos negros e pobres no século XX foi Lindon Johnson, sempre muito mal visto pela historiografia.


 


Desmistificam também Jimmy Carter e Bill Clinton, retratados como iniciadores do neo-liberalismo nos Estados Unidos.


Interessante também descobrir que na época da guerra civil, os republicanos eram abolicionistas (inclusive o presidente Lincoln), enquanto os democratas eram escravocratas. Ou seja os republicanos estavam mais à esquerda. Quem mudou isso foi Roosevelt, com o New Deal que adotou o intervencionismo estatal, pela primeira e única vez naquele país, como consequência da crise de 1929.


 


Mas além dessas curiosidades históricas, o mais importante no livro é a percepção de que durante esses 400 anos de existência do país, a direita sempre conseguiu manter um domínio inquestionável, sem nunca ter sido verdadeiramente ameaçada internamente na sua hegemonia sobre a nação, ao contrário da Europa, onde a esquerda conseguiu marcar a história das nações e influenciar suas culturas políticas e econômicas.


 


As causas deste domínio tão seguro, vão ficando claras na medida em que se repetem os embates entre movimentos sociais progressistas e os conservadores, sempre amparados por idéias fundamentalistas religiosas e pela mitificação do ideal americano e do American Way of Life, que de modo de vida exemplar, defendido pelos primeiros colonos, torna-se um discurso ideológico de lealdade ao país, que vai aos poucos se distanciando da realidade, até se transformar em pura propaganda, cada vez mais hipócrita, num país que ostenta níveis altíssimos de criminalidade, uso de drogas e preconceitos contra minorias, baseados em critérios racistas, sem falar na violência explícita contra outros povos, que se oponham aos interesses das corporações norte-americanas.


 


Esse discurso, que compõe a base do conservadorismo, conseguiu se impor como sendo a própria ''alma'' da nação, e colocar-se contra ele, significa passar a ser considerado um traidor, mesmo que a pessoa ou o movimento, esteja lutando por direitos civis respaldados na própria constituição americana. O conceito de liberdade, que permeia todo o discurso, passou a receber uma conotação principalmente ligada ao direito das empresas americanas se expandirem pelo globo, e a dos indivíduos poderem portar armas para se defender. Em paralelo a isso, existe a noção religiosa de que os Estados Unidos são um povo ''eleito'' por Deus, para mostrar o caminho certo ao mundo. A união desses dois discursos, o da pátria da liberdade e o de povo eleito, serve como justificativa para todas as ações belicistas e intervencionistas dos EUA no mundo.


 


O papel da mídia, na construção e manutenção desse ''ideal'' americano é bem demonstrada, nos revelando uma situação que é relativamente nova entre nós, a da unanimidade da mídia em defesa dos interesses das grandes empresas, ou seja, em torno de um projeto político econômico conservador, cuja nova face é o neoliberalismo, de sujeição de toda a sociedade aos interesses de uma minoria, a partir da manipulação de fatos e idéias disseminados pelos meios de comunicação.


 


O que está acontecendo na Colômbia é assustadoramente simples. Os americanos estão tentando provocar uma guerra para desestabilizar o continente e evitar que a esquerda (moderadíssima) continue ganhando eleições na América Latina. A mídia, a serviço do projeto neoliberal americano, concentra todas as atenções sobre Chavez, como se fosse dele a culpa do episódio de invasão do Equador pela Colômbia.


 


É preciso restabelecer o medo pelos Estados Unidos no sub-continente e… vamos dar espaço para as mentiras de Uribe.


 


Uribe invade, massacra e acusa a Venezuela e o Equador. Bush apóia Uribe. A Globo e José Sarney criticam Chavez. A América do Sul em peso condena a Colômbia, mas as declarações de Bush e Uribe tem muito mais espaço dos que a dos presidentes Lula, Alan Garcia, do Perú, Michele Bachelett ,do Chile, Cristina Kirchner, da Argentina, Nicanor Duarte, do Paraguai, Daniel ortega da Nicarágua e Sarkozy, da França.


 


Como dizia aquela velha raposa política, o que importa não são os fatos, mas a versão.


 


Não é mais uma questão de saber quem tem razão, mas de quem é mais leal ao discurso que entronou os americanos como povo eleito, para defender a ''liberdade'' e a ''democracia'' e para nos ensinar o que é certo e o que é errado.


 


Apenas para ilustrar a distância entre a realidade dos fatos e a cobertura tendenciosa da grande mídia, aqui vai um trecho da entrevista que dois escritores colombianos (Laura Restrepo e Fernando Vallejo) deram ao jornal El País, de Madrid, no dia 05 de março passado. A entrevista está na UOL, para quem quiser conferir.


 


Restrepo – Pois vamos lá. Eu penso que aqui está se vivendo um processo de neofeudalismo encabeçado pelo senhor Uribe e seus grupos paramilitares, cuja política defende os que estão lhes dando uma espécie de indulto e legitimação diante da sociedade…
 


Vallejo – Veja, a Colômbia é o país da impunidade. A rainha da Colômbia é a impunidade. O presidente está dormindo, mas a Colômbia tem uma rainha. Aqui a rainha é a impunidade. Aqui, agora que todo mundo fala em porcentagens, mais de 99,99% dos crimes ficam impunes… Não se pode construir uma sociedade a partir da impunidade. Mas a impunidade não é só para os paramilitares, é a impunidade para as guerrilhas, para tudo o que assassina, tudo o que rouba. Aqui tudo está impune.


 


Restrepo – Espere, espere. É que a palavra ''tudo'' é tremenda, Fernando, porque então a questão se dilui e parece um problema histórico, e não podemos aterrissar… Aqui é preciso pôr-se ao lado das vítimas, ver quem são esses milhares de colombianos desalojados, assassinados, despojados de seus mínimos direitos, como também são os seqüestrados, porque essa é uma coisa que não se pode calar. As Farc são espantosas, são criminosas, são cruéis; a população colombiana as detesta…
 


Vallejo – As Farc e o ELN são extorsionários, seqüestradores, torturadores, assassinos e praticantes de genocídio. E odiamos todos eles. 
 


Restrepo – Isso mesmo!
 


Vallejo – Devem ser muito poucos os que estão com eles, e estão sob coação, é claro. E os paramilitares são iguais: seqüestradores… são narcotraficantes! Faltava dizermos narcotraficantes!
 


Restrepo – É o narcoparamilitarismo. E dentro desse processo de legitimação dos paramilitares há algo que ninguém fez, que é desmontar o narco que há por trás do paramilitarismo…
 


Vallejo – É muito grave que o presidente Uribe venha de uma família que esteve muito ligada aos narcotraficantes de Medellín…
 


Restrepo – E nesse processo de legitimação dos paramilitares, que tipo de criminosos estão recebendo indulto?
 


Vallejo – Essa impunidade de assassinos e genocidas é uma bofetada na moral… Se você deixa impune quem assassinou e quem cometeu massacres e quem torturou, então não pode castigar ninguém por um roubo ou por uma calúnia ou por nenhum outro delito, porque delitos maiores não podem haver. Então, estamos dizendo aos colombianos: vejam, estes ficaram impunes, façam o que vocês quiserem.
 


Restrepo – É a escola da morte…
 


Vallejo – É a escola da morte porque a impunidade está entronizada.
 


Restrepo – Sobre esse conceito, que parece impossível, mas que acontece entre nós, de que a morte é mais importante que a vida, cria-se toda uma escola que é contrária à civilização. Nenhuma civilização se levanta sobre a base de dar aprovação à morte… Veja, nós falamos das Farc. Eu creio que, se fizermos os cálculos, um terço dos seqüestrados da Colômbia está nas mãos das Farc e dois terços estão nas mãos dos paramilitares. O presidente Uribe viaja pela Europa falando dos que estão com as Farc, e não menciona os que têm os outros.


 


Como se pode ver, nossa imprensa está mostrando apenas um lado da realidade, distorcendo abertamente os fatos para vender a idéia de que os Estados Unidos e seu projeto neoliberal, ou neoconservador, como está se chamando mais recentemente (já que liberal nos EUA, tem o sentido de esquerda) estão do lado certo e que precisamos continuar fiéis a ele.


 


E ainda tem gente que diz que não existe mais direita e esquerda. Talvez a esquerda tenha deixado de existir, pelo menos como era no século XX, o que nos abre a perspectiva do surgimento de uma nova esquerda, mas a direita, podem ter certeza, essa continua existindo, e ardilosa como sempre.


 


Ricardo Stumpf