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América do Sul vive conflito internacionalizado, diz Garcia

“A América do Sul está vivendo algo que não era comum, ou que não era existente aqui, que é a internacionalização do conflito”. A opinião é do assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, ao comentar a

Em entrevista a Bob Fernandes, do Terra Magazine, Garcia cita quatro fatores para defender seu ponto de vista: a França de Sarkozy e seu interesse na cidadã binacional Ingrid Betancourt, o ataque aéreo da Colômbia ao Equador, o “erro” de Hugo Chávez ao reconhecer as Farc como “força insurgente” e a presença dos EUA na região.



Leia abaixo a íntegra da entrevista:



Superada ao menos formalmente a crise na América do Sul, feitas aquelas fotos de ocasião com os presidentes das Repúblicas envolvidos se dando as mãos, que percepção resta? O que pensa de todo esse episódio?
Escrevi um artigo para a revista Interesse Nacional, do embaixador Rubens Barbosa, que deve ser em breve lançada. Neste artigo exponho minha percepção, a de que esse problema se deu agora porque a América do Sul está vivendo algo que não era comum, ou que não era existente aqui, que é a internacionalização do conflito, e isso por alguns motivos…



E quais seriam esses motivos?
Não pela ordem de relevância. Um, o interesse da França na libertação de Ingrid Betancourt. Se você vai a Paris vê em todo lugar a importância que os franceses dão ao tema. Vê nas livrarias uma quantidade enorme de livros sobre ela, no Hotel de Ville há um enorme retrato, em muitos lugares há imagens, debates… o presidente Sarkozy tem interesse direto nisso.



Sim, esse interesse já levou até a um incidente diplomático entre França e Brasil.
Exatamente, então esse é um fator importante para essa internacionalização do conflito, o interesse da França no destino de Ingrid, que é uma cidadã binacional. Como sabemos, é também francesa. Outro fator foi determinado pelo governo da Venezuela…



De que forma?
O fato de o governo venezuelano, pelos contatos que tem com as Farc, estar tendo um papel importante na libertação de reféns. Ao mesmo tempo, Caracas propôs o reconhecimento das Farc como força insurgente. Penso que Chávez cometeu um erro ao fazer tal proposta. No meu entender isso caracteriza uma ingerência em assuntos internos da Colômbia. Isso também leva à internacionalização do conflito…



E quais os outros fatores?
O mais recente foi o ataque das forças colombianas ao acampamento das Farc em território equatoriano. Um fato raro, incomum em nossa região.



E a presença norte-americana? Além de US$ 4 bilhões jogados na Colômbia nos últimos anos, das centenas de conselheiros militares, há recorrentes registros agora da participação dos EUA no fornecimento de informações aos colombianos para o ataque às Farc no Equador…
É verdade. Mas, enfim, essa é uma opção colombiana, que não me cabe comentar, enquanto funcionário do Governo brasileiro.



As Farc são “insurgentes” ou “terroristas”?
Não reconhecemos as Farc como força insurgente. Mas não temos atribuído a elas o qualificativo de terroristas. Isso não quer dizer que não tenhamos a mais absoluta repulsa aos atentados que ela cometeu, assim como aos seqüestros, que consideramos grave violação aos direitos humanos, ou a suas ligações com o narcotráfico. Não pode haver dúvida sobre isso.



E por que essa posição?
Porque não somos uma agência de certificação. Teríamos infinito trabalho para caracterizar grupos e/ou governos que praticam ações terroristas. Seguimos as resoluções da Organização das Nações Unidas. Por exemplo: a ONU trata a Al-Qaeda como terrorista, então tratamos da mesma forma. Mas a ONU não trata as Farc como grupo terrorista, tampouco a maioria dos demais países. A história nos mostra que grupos chamados terroristas acabaram por chegar a acordos que foram decisivos para o estabelecimento da paz em regiões conturbadas do mundo. Veja-se o exemplo do Exército Republicano Irlandês (IRA). Qualificativos poderiam nos impedir de realizar ações de mediação para um acordo humanitário que se faz cada vez mais necessário.



Um assunto recorrente a cada crise… a anunciada duplicidade na política externa brasileira…
Isso vem desde o começo do governo, aliás, desde antes de começar o governo do presidente Lula. E é claro que é uma bobagem, coisas de quem não sabe como as ações se dão na vida real, como de fato funciona o governo. Alguém cria uma tese e depois passa-se a discutir aquilo como se fosse real. Mas é assim mesmo…



Por quê?
… porque pessoas discutem idéias, os néscios discutem pessoas. Quem tem idéias para discutir, discute, propõe, contrapõe. Quem não tem idéias, discute as pessoas como se estivesse a discutir idéias. Isso é coisa de néscios. Além do mais, essa é uma visão provinciana, de quem não percebe, ou não sabe, que mundo afora existem diferentes níveis de complementaridade nas políticas externas dos Estados, entre os gestores de política externa.



Por exemplo?
Nos Estados Unidos, o National Security Adviser, que às vezes tem 10 vezes ou 100 vezes mais influência numa questão do que a assessoria do presidente da República do Brasil. Sem contar eventuais divergências mesmo dentro de outras organizações, ainda nos EUA. Muitas vezes essa organização (NSA) tem divergência com o Departamento de Estado, que por sua vez diverge do Pentágono, ou da CIA, do FBI, e por aí afora… da mesma forma acontece nos países europeus. É absolutamente comum esse tipo de assessoria junto à figura do presidente ou do primeiro-ministro, é algo absolutamente comum.



Mas você admite que por aqui isso tem levado à percepção de uma duplicidade na política externa…
Isso é coisa de quem na verdade não sabe como as coisas funcionam, de quem não sabe como o mundo real funciona. Geógrafos, por exemplo, deveriam parar de olhar apenas para o umbigo, para si mesmos, e olhar para o mundo e ver como ele funciona além, muito além das visões provincianas.



Como se dá, na prática, essa administração entre a Assessoria Internacional do presidente e o Itamaraty?
A minha relação com o ministro Celso Amorim é excelente, de identidade política absoluta, além de cordialíssima, do ponto de vista pessoal. Temos conversas constantes e eu o consulto sempre. Essa é uma prática que mantenho com outras autoridades do Governo que estão envolvidas em nossa ação externa. Viajo eventualmente com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, converso com o BNDES, com a Petrobras, na condição de Assessor Especial do presidente que sou. Mas jamais em contradição. Sempre em convergência. Essa assessoria é um ativo a mais para o Brasil. Não é um empecilho.



E como foi, como se moveram todos nesta crise de agora? O presidente falou logo com os chefes de Estado, a diplomacia assumiu em seguida, como foi?
O presidente Lula falou com a presidente Cristina Kirchner, com o presidente Rafael Correa, com a presidente Michelle Bachelet, falou com o Torrijos, presidente do Panamá…



Falou com o presidente Chávez?
Não, porque eles se desencontraram. Quando um ligou o outro não estava, e quando o outro ligou, um não estava. Não se falaram durante aqueles dias, mas não por alguma razão especial. Tampouco falou com Bush. Num outro nível, agiu em todas as frentes, como todos vimos, o ministro Celso Amorim, que manteve contatos permanentes com as chancelarias de toda a região. Foi um trabalho incansável, com ótimo resultado. Importante foi também o papel do embaixador na OEA (Organização dos Estados Americanos), Osmar Chohfi, que liderou as negociações que chegaram à resolução da OEA. Eu mantive conversações em vários níveis, sempre de maneira acordada e conforme.



Seus assessores mais diretos são do Itamaraty?
Sim, são do Itamaraty.



E o senhor tem relações de que tipo com o diretor-geral do Departamento de América do Sul, Ênio Cordeiro?
Tenho ótimas, excelentes relações. Da mesma forma com o secretário-geral, Samuel Pinheiro Guimarães. Falamos, Ênio e eu, diariamente, às vezes quatro, cinco vezes num dia. As ações são sempre comuns, complementares, nunca divergentes. São ações de natureza diferente. Só quem não conhece esses processos pode imaginar e ficar a repisar coisa diferente.



Como são, por exemplo, suas relações com o presidente da Colômbia, Uribe? São relações pessoais?
Tenho ótimas relações com o presidente Álvaro Uribe. No caso Granda, por exemplo, acabei atuando diretamente no processo de reaproximação entre os dois presidentes, Uribe e Chávez. Da mesma forma no caso de Vila Vicenzio, mesmo antes da viagem houve uma consulta ao presidente Uribe sobre a participação do Brasil. Uribe demonstrou interesse tanto na participação do Brasil quanto na minha participação, particular.



E qual o desfecho nisso?
Conto isso aqui não por motivo pessoal, por questão pessoal, mas para que se compreenda um pouco mais qual é a natureza do trabalho do assessor, da assessoria…



Que pode ter caminhos, liberdade de movimentos, uma velocidade distintos dos da chancelaria?
Sim, e sempre complementares. Na minha saída da Colômbia um general me passou o celular com o presidente Uribe, que me agradeceu pessoalmente. A mim e à gestão do Brasil. Portanto, o próprio presidente Uribe, por exemplo, sabe que o papel do assessor da presidência é complementar, jamais divergente. Em um outro episódio, em determinado momento, o presidente Uribe me convidou para ajudá-lo em negociações com sindicatos colombianos. Coisa que fiz consultando antes a CUT brasileira e sua congênere colombiana, além do próprio presidente Lula e do ministro das Relações Exteriores. Como sempre, fizemos consensualmente.



Ainda a prática… o que fará nos próximos dias?
Tenho também boas relações com a presidente Bachellet, com a qual me encontrarei nesta semana no Chile. Da mesma forma, é parte da minha função, tenho boas relações também com Cristina Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa. Conheci o presidente Correa quando ainda era ministro da Fazenda, quando ficamos amigos. Digo isso para que se perceba que isso tudo não é um empecilho, pelo contrário, é um ativo para a política externa brasileira.



A sua é uma representação de uma política externa distinta, ideológica, do PT? Essa tem sido, desde o início do governo, a matriz das críticas à sua atuação.
Os que não têm idéias vivem a dizer que os outros agem como ideólogos. Repito: Pessoas debatem idéias. Os néscios debatem as pessoas. E por isso tomo aqui o cuidado de não fulanizar um debate que é, deveria ser, de idéias, não de pessoas. Como assessor do Presidente, meu único compromisso é com a defesa dos interesses do Brasil.