Régis Lopes: Juazeiro como lugar sagrado

Padre Cícero ainda é um santo negado pela Igreja Católica, sem altar oficial, mas com espaço de destaque no oratório doméstico de cada fiel. Pela devoção popular, ele já está canonizado.

Juazeiro seduz a vontade de lembrar. Acolhe o desejo de quem gosta de (con)fabular, deixando o escutado com mais sabor do que o visto. Até parece que lá teve mais acontecidos, que fermentam e arrebentam os limites do passado. Depois de 1889, quando a hóstia se transformou em sangue, Juazeiro não parou de acolher o desejo de narrar.


 


 


Feito e refeito nas vivências do cotidiano, Juazeiro ficou profundamente marcado pelas táticas de sobrevivência. O pequeno povoado foi se transformando em cidade de migrantes que alargavam o tamanho das ruas e romeiros que faziam um novo “Centro do Mundo”, como diria Mircea Eliade.


 


 


De algum modo, todos esses sertanejos moveram-se na esperança de ter soluções para as dores do dia-a-dia. Para curar uma doença, para pedir um bom casamento, um emprego, um pedaço de terra ou inverno abundante, homens e mulheres exercitavam uma fé cotidiana, como parte das astúcias que procuravam superar desventuras e necessidades do viver.


 


 


Foram esses devotos que transformaram Juazeiro em um lugar sagrado: meio do mundo e de sobrevivência, meio de falar e escutar.


 


 


Falar em recepção de mensagens do além foi uma prática que marcou a vida do Padre Cícero e das beatas envolvidas na transformação da hóstia em sangue. As primeiras narrativas das beatas e do Padre Cícero construíram milagres a partir de outras histórias, que estavam na Bíblia ou nas vidas dos santos, transmitidas por tradições orais e escritas.


 


 


Condição de devotos


 


 


Já familiarizados com o ato de contar e ouvir graças alcançadas e a prodigiosa biografia de escolhidos por Deus, os devotos espalhados pelos sertões nordestinos receberam as notícias sobre o “Milagre de Juazeiro” como um acontecimento extraordinário, porém inserido em perspectiva coerente e plausível.


 


 


Assumindo a condição de devotos do Padre Cícero, homens e mulheres passavam a dar ressonância aos prodígios de Juazeiro na medida em que todos também se sentiam partícipes do movimento, protagonizando casos de promessas e dádivas recebidas. As crenças fertilizavam narrativas na medida em que as narrativas excitavam as crenças.


 


 


As memórias sobre Juazeiro têm uma proporção completamente desmesurada. O pesquisador que se debruça sobre o que foi dito ou escrito sobre a cidade toma um susto que, no decorrer do tempo, volta sorrateiramente a se repetir.


 


 


Cada romeiro conta suas histórias e, atualmente, a romaria chega a ter quase um milhão de devotos por ano.


 


 


Ânsia de escrever


 


 


A respeito dos escritos, a situação é semelhante os registros orais. Os inventários que dão conta do número de cordéis sobre Juazeiro, por exemplo, são constantemente superados, em razão da descoberta de um exemplar desconhecido ou por causa da publicação de um novo folheto.


 


 


Enquanto Juazeiro seduz a memória dos narradores, também desperta a vontade de explicar. Motiva a ânsia de escrever. Escrever não somente para contar, mas sobretudo para contabilizar. Padre Cícero instiga a análise, o estudo, a interpretação, a disputa de versões em matrizes excludentes e sotaques variados. Poucos conseguiram desencadear uma memória tão crescente e tão contraditória como ele.


 


 


Para alguns, ele foi mais um “coronel”. Para outros, um exemplo de sacerdote. Na fé de intelectuais, que já produziram vários livros, transitando da crônica aos enfoques acadêmicos, não há dúvidas: trata-se de um fenômeno que, conforme o gosto de cada um, pode ter significado sociológico, antropológico, psicológico, histórico, teológico, político, econômico, ecológico, entre tantos outros.


 


 


De qualquer modo, eu não poderia deixar de mencionar que, até hoje, não passa um ano sem a saída de pelo menos um livro que, sob a capa de estudo historicamente fundamentado, apresenta qualidade duvidosa, para não falar da enjoada repetição de datas e fatos supostamente neutros e até mesmo sob o manto enganador da novidade. E é curioso que alguns chegam a ter segunda edição, como se merecessem. Os estudos realmente baseados em pesquisas inovadoras permanecem raros e a tese de Ralph Della Cava continua sendo a insuperável referência no tema. Mas essa avaliação bibliográfica não cabe no curto espaço desse artigo. O que desejo aqui é apenas destacar o inestimável valor de outro tipo de produção, que não é a escrita da história e sim a incansável (re)volta da memória. Esse é o campo vital de Juazeiro do Norte, que, além de muitas voltas e volteios, não se cansa de se revoltar sobre si mesmo e diante de outros imaginários.


 


 


Cadernos da devota


 


 


Como bem ressalta o professor Diatahy Bezerra de Menezes, estudos sobre o imaginário tornam-se fundamentais quando se trata de Juazeiro. E sobre essa proposta de investigação não se pode esquecer a inestimável contribuição do professor Eduardo Hoornaert em seu estudo, infelizmente pouco citado, sobre os cadernos da devota Maria da Conceição.


 


 


Para os devotos, não há dúvida sobre a eternidade do “Santo de Juazeiro”. A biografia do Padre Cícero começa antes do nascimento e não termina depois da morte.


 


 


No dia 20 de julho de 1934, Padre Cícero se foi e, mais uma vez, contrariou as expectativas dos intelectuais de plantão (que, muitas vezes, se imaginam possuidores do dom profético). O que ocorreu, depois da sua partida, não foi o fim de Juazeiro e sim um revigoramento das romarias.


 


 


A conivência mais íntima com o sagrado passou a residir em seu túmulo, no altar da Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Diante da indisposição que os padres tinham para benzer as estatuetas e os retratos do “Padrinho”, os peregrinos inventaram rituais alternativos: acreditavam que a sepultura guardava o poder de benzer as imagens.


 


 


A lápide transformou-se em lugar para operar rituais de contato com o Além e obter proteção para as dores de cada dia. Evocação do verbo encarnado e encantado, que ecoa em pequenas imagens em gesso, plástico ou papel (de madeira é mais para decorar a casa de turistas ou exposições de museu). Um santo negado pela Igreja, sem altar oficial, mas com espaço de destaque no oratório doméstico de cada fiel.


 


 


A professora Martine Kunz, no livro de sua autoria “A Voz do Verso”, afirma que “ele é igual a essas imagens de gesso, essas miniaturas quebradiças e desajeitadas, é a mesma batina, a cabeça inclinada, os braços não se desprendem do corpo, o passo precisa do cajado, e no entanto esse pequeno bloco monolítico e perecível representa o esteio da fé, ele tem a leveza das maiores utopias e a verticalidade da esperança”.


 


 


Com a morte de Padre Cícero, o Dia de Finados transformou-se na data de maior romaria na cidade. O 2 de novembro ergueu-se como o tempo do grande morto, que de tão grandioso, não morreu de verdade. Ainda hoje, os peregrinos afirmam que ele apenas “se mudou”. Emerge, em êxtase, o desejo de permanência.


 


 


Os olhos azuis, que antes invadiam o corpo dos peregrinos, estão cerrados e sob o peso da lápide de mármore. Mas a memória tem seus engenhos. O mesmo azul continua presente, como detalhe penetrante de um rosto levemente reclinado, em tom de acolhimento e ternura. Azul com destaque garantido na sala de cada devoto que faz o interminável rosário da romaria. A morte lhe deu vida nova, bem maior e infinitamente crescente.


 


 


 


Ele saiu da vida para entrar na história, mas conseguiu muito mais do que isso, porque também entrou na memória e foi aí que ele se fez poderoso. Foi exatamente aí que ele se instalou no afeto coletivo.


 


 


Como diz a professora Kênia Rios, subvertendo o título do livro de Leda Ribeiro, “O Narrado e o Vivido”, há casos em que se deve pensar sobre “O Narrado e o Morrido”.


 


 


Com seu falecimento, surgiu um largo território de crenças, rituais e narrativas. Nos textos da Literatura de Cordel, por exemplo, os autores não economizaram palavras para divulgar os milagres do venerado “Padrinho”, transformando-os em um tema de profunda expressividade do sentido de viver (e de morrer).


 


 


E a tradição foi se fazendo na renovação. Em 1961, por exemplo, no auge da Guerra Fria, o poeta João José da Silva publicou o folheto “Palavras do Padre Cícero Sobre a Guerra Nuclear”. Vários outros títulos revelam que a fé se renova de variadas maneiras.


 


 


“A voz do Padre Cícero contra a Guerra das Malvinas”, escrito por João de Barros; “Encontro de Tancredo com Pe. Cícero no Céu”, do poeta Pedro Bandeira, ou “A visita de Luiz Gonzaga ao Padre Cícero Romão”, feito por Lucas Evangelista para narrar a chegada do “Rei do Baião” ao Paraíso Celeste, são exemplos.


 


 


Público e privado


 


 


Afinal, ele faz o que poucos fazem: o milagre solicitado. Talhado no molde de um santo, Cícero se expõe demasiadamente humano. Transita entre o público e o privado, assumindo a condição de protagonista de novas e velhas narrativas que circulam pelos sertões e, ao mesmo tempo, ouvindo dos fiéis as confissões mais inconfessáveis, os pedidos mais inusitados e os agradecimentos mais sinceros e secretos. São exemplos de memória que vai fazendo o devir do pretérito e gerando, no tempo nosso de cada dia, a sedução do sagrado.


 


 


Juazeiro do Norte é um lugar para pedir e agradecer, como se fosse uma grande orelha, pronta para escutar todas as histórias, de todos os lugares. O romeiro vem munido de voz e ex-voto, porque falar com a garganta nem sempre é o bastante. Parece que há coisas que só os objetos sabem dizer, assim como há vozes que só o espaço pode escutar.


 


 


A fé em Juazeiro vive da abundância de memória. A memória, que como disse François Dosse é uma “ausente que age”, se une ao mistério da fé para advertir que sem contar, não dá para continuar.


 


 


Não basta viver para contar, é preciso contar para viver. É por isso que a memória torna, retorna e, nesse balançado, entorna. Se a luz do dia pode facilitar afazeres, o sombreado da noite deve convocar aqueles dizeres que merecem memorações. No insaciável desejo de escutar e também dizer, com todas as partes do corpo e do mundo, esse perambular dos retornados sabe que sua sobrevivência depende do vexame e da paciência. Para quem tem ouvido, os narradores do mundo fabuloso ensinam: “nada como um dia depois do outro e uma noite no meio”.


 


 


RÉGIS LOPES
Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC)