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Para Nobel da Paz, capitalismo é cego para o que não é lucro

Neste momento em que o mundo está às voltas com a crise do sistema bancário e com motins da fome, o Prêmio Nobel da Paz em 2006, o bengalês Muhammad Yunus, aponta os limites e as falhas do capitalismo, e preconiza a implantação de um modelo de empresa

A reportagem do Le Monde entrevistou Muhammad Yunus em Paris, no momento em que o sistema mundial do crédito está enfrentando uma crise histórica e que vários bancos desmoronaram. O medo da recessão está tomando conta dos Estados Unidos, enquanto dezenas de milhares de americanos inadimplentes se vêem empurrados para o olho da rua pelos organismos credores. O que pensa disso o fundador do Grameen Bank, um estabelecimento no qual as taxas de reembolso dos empréstimos são superiores a 95%? Veja a seguir:



Como o senhor explica esta gigantesca crise do crédito popular que está abalando o sistema financeiro como um todo? O senhor chegou a prever a ocorrência de tal fenômeno?
No caso dos subprimes (crédito hipotecário), a crise é inerente ao funcionamento do mundo financeiro e bancário. Os próprios princípios de crédito, as garantias exigidas, os prêmios de risco que são faturados em detrimento das pessoas menos solvíveis revelaram o quanto este sistema não sabe emprestar para os pobres. A culpa disso, portanto, é dos bancos em primeiro lugar. Eles emprestaram muito dinheiro, multiplicando as falsas promessas. Eles se mostraram muito agressivos com a sua propaganda para vender essas hipotecas. Eles apresentavam às pessoas ofertas fantásticas, garantiam que os mais modestos poderiam reembolsar no longo prazo. De fato, os créditos acabaram ficando mais e mais pesados. Esta é a lógica do sistema financeiro. Os pobres devem ser colocados sob pressão para reembolsarem. No Grameen Bank, nós fazemos o inverso. Nós não pedimos nenhuma garantia para emprestar dinheiro. Nós não estrangulamos as pessoas praticando taxas exorbitantes. Nós invertemos o próprio princípio do crédito. No nosso estabelecimento, quanto menos dinheiro você tem, mais vocês é interessante para nós. Se você não tiver um tostão sequer, então você se torna prioritário. E isso funciona! A nossa taxa de reembolso é superior a 95%, pode comparar!



Os subprimes, as dívidas transformadas em produtos financeiros, a cegueira diante da situação das famílias mais pobres: como acabamos chegando a uma situação tão alarmante?
O sistema financeiro está sempre em busca do melhor rendimento; ele vai sendo levado pela sua própria lógica, que o conduz a criar todos esses produtos, os subprimes, os títulos negociáveis, os hedge funds (fundos de securitização)? A única voz que se faz ouvir no mercado é a da maximização dos lucros. A venda dos créditos consentidos em títulos financeiros e dívidas hipotecárias, a criação e uso como moeda de troca de ativos bancários sem solvabilidade aceleraram a crise. Grandes bancos, grandes sociedades financeiras os utilizaram para cobrir seus déficits na hora dos balanços. O sistema é cego a toda consideração que não seja a do lucro. Atualmente, a mídia publica as suas principais manchetes a respeito das quantias colossais perdidas pelos bancos, todo esse dinheiro dilapidado, esses patrões demitidos das suas funções? Mas ouve-se falar muito pouco das famílias que foram enganadas pelas ofertas inadaptadas dos bancos, que acabaram ficando no olho da rua, perseguidas pelos credores; essas centenas de milhares de pessoas que acreditaram neles e que não são nem sequer mencionadas.



O senhor questiona o próprio princípio da concessão do crédito sob garantia, que é um fundamento da teoria econômica clássica e do funcionamento financeiro?
É verdade, eu critico o dogma segundo o qual empréstimos não podem ser concedidos sem garantia, sobretudo aos mais pobres. Todos os banqueiros defendem este princípio sem nem sequer analisá-lo. Quando nós começamos a nossa atividade, em 1983, eles nos diziam: ''Vocês estão desperdiçando o seu dinheiro. Vocês nunca serão reembolsados. O seu sistema vai desmoronar''. Contudo, atualmente, é o sistema deles que está desmoronando. Nos últimos 25 anos, o Grameen Bank e as instituições do microcrédito distribuíram US$ 6 bilhões (equivalente hoje a R$ 10 bilhões) para 150 milhões de famílias, sem exigirem garantia alguma. O nosso banco realiza lucros, como todo banco que é bem administrado. Desde 1995, ele não precisa recorrer a doações. Ele funciona em colaboração com 10 mil instituições de crédito em todo o mundo. Segundo uma pesquisa recente, 64% daqueles que tomaram dinheiro emprestado do nosso banco durante cinco anos se desvencilharam da pobreza crônica. A nossa iniciativa constitui uma oportunidade para ajustar o conjunto do sistema financeiro. Ela deveria permitir pensar num crédito de um novo tipo que não deixe ninguém de lado. Os princípios atuais do sistema bancário impedem que a metade da população mundial possa participar da vida econômica. Não apenas nos países em desenvolvimento, como também nos Estados Unidos e na Europa. Os bancos tradicionais exigem das pessoas que elas sejam solvíveis antes mesmo de lhes emprestarem dinheiro. Mas então, para que servem essas instituições, se elas não ajudam as pessoas a saírem de uma situação difícil, a criarem valor agregado, a proporcionarem trabalho? Os bancos vêm pedindo todos os dias aos seus advogados para imprensarem seus clientes. Por nossa vez, nós não temos juristas em nosso sistema. Nós não precisamos deles. Com isso, é possível perceber o quanto a teoria econômica dominante apresenta diversos pontos cegos e armadilhas.



Quais deles lhe parecem os mais perigosos?
Os bancos e os financistas se recusam a entender que o fato de emprestar para os pobres permite criar empregos e gerar renda. Eles não reconhecem uma família ou um casal como uma unidade de produção dinâmica. Eles não enxergam que uma atividade independente – um pequeno estabelecimento de rua, serviço de conserto, barbeiro, oficina de reforma de objetos, pequeno artesão itinerante, ou seja, tudo aquilo que chamam de ''setor informal'' – constitui um verdadeiro trabalho, e até mesmo uma fonte de empregos que deve ser estimulada por meio do crédito. A literatura econômica cria um impasse em relação a este dado fundamental da atividade humana, o trabalho independente, que é o meio principal de ganhar a sua vida. Os responsáveis econômicos consideram o emprego unicamente como assalariado, e eles esperam das empresas que elas contratem. Se elas não o fizerem, o desemprego se instala. Eis a lógica atual do capitalismo. Por que as pessoas deveriam esperar serem empregadas? Por que não ajudá-las a criarem a sua própria atividade? Os pobres dos países em desenvolvimento não esperam que grandes empresas os remunerem. Eles não esperam tudo da política de emprego, nem das alocações-desemprego. Eles precisam alimentar a sua família, eles fazem uma multidão de trabalhos úteis, ganham a vida no pequeno comércio, tocando serviços de consertos, de alfaiate? Vejam a intensa atividade que predomina nas ruas das cidades asiáticas mais pobres, e comparem com o que ocorre na Europa! É preciso sustentar essa energia por meio do crédito popular, lhe fornecer ferramentas econômicas?



O senhor afirma que na Europa e nos Estados Unidos, nós estamos presos na armadilha de uma política de emprego e de crédito elitista e tacanha. Poderia explicar isso melhor?
Recentemente, um amigo americano me contou que ele havia atravessado as regiões pobres dos Estados Unidos, as cidades que mais foram atingidas pelas demissões e o desemprego. Ele descreveu bairros desertos, ruas mortas, casas desocupadas, escritórios e usinas fechadas, por todo lugar. Ele se perguntava como os habitantes conseguiam sobreviver. Eis o resultado a que conduz a lógica do trabalho assalariado, a política do emprego único. Quando este amigo visitou o Bangladesh, infinitamente mais pobre do que os Estados Unidos, ele descobriu o quanto qualquer canto do país, na cidade, no campo, fervilha de atividades ''informais''. Em qualquer parcela de terreno desocupada, há cabanas onde vendem de tudo, legumes, ferramentas, equipamentos eletrônicos? Em praticamente todas as casas, nos quintais, nos jardins, há pessoas que selecionam sua colheita, fabricam, soldam, consertam. No Ocidente rico, vocês oferecem um tipo de emprego apenas, o emprego assalariado, a serviço de um patrão, de uma empresa. Entenda bem o que estou querendo dizer: eu apóio toda forma de contratação e de indústria, toda política de emprego. Mas o fato de promover apenas o regime do assalariado me parece terrivelmente limitado. Considerar o homem apenas como um ser em busca de um pagamento me parece uma concepção demasiadamente estreita do humano. É uma forma de escravidão.



De escravidão?
Atualmente, nos países desenvolvidos, cada criança trabalha duro na escola para obter um bom trabalho. Ou seja, um bom salário. Uma vez adulto, ele ou ela trabalhará para alguém, se tornará dependente dele. Ora, o ser humano não nasceu para servir um outro ser humano. Um trabalhador independente, que mantém uma pequena venda, por exemplo, trabalha apenas quando ele precisa. Se, em determinados dias, ele não quiser trabalhar, ele pode. Ele faturou seu dia, e resolve tirar proveito um pouco da vida. Ele não precisa avisar ninguém caso ele chegar com um atraso de uma hora. Ele não está preocupado em perder uma parte do seu salário. Quando nós éramos caçadores ou colhedores, nós não éramos escravos, nós dirigíamos as nossas existências. Milhões de anos mais tarde, nós perdemos esta liberdade. Nós levamos vidas rígidas, escoradas nos mesmos ritmos de trabalho todos os dias. Nós corremos para ir trabalhar, nós corremos para voltar para casa. Esta vida robótica não me parece ser um progresso. Com o regime do assalariado, nós acabamos passando da liberdade de empreender e de um modo de vida mais versátil para uma maior rigidez. Eu tenho um salário, um patrão, devo fazer o meu trabalho que isso me agrade ou não, pois eu sou uma máquina de fazer dinheiro. É nisso que identifico o perigo global das estruturas econômicas atuais, da teoria dominante. O homem é considerado exclusivamente como um agente econômico, um empregado, um assalariado, uma máquina. Esta é uma visão unidimensional do humano. O regime do assalariado deveria permanecer uma escolha, uma opção entre outras possibilidades.



O ''setor informal'' não goza de uma boa reputação na literatura econômica dos países ricos?
É um termo degradante. Este setor nunca é incentivado; ao contrário, ele se vê impor toda uma série de entraves, como regulamentos, patentes, impostos. Eu sugiro dar-lhe um nome mais adaptado, mais valorizador, justamente por ser neste setor que os homens se mostram mais criativos. Na falta de uma expressão mais apropriada, eu proponho o ''setor das pessoas'', isto é, o que elas fazem quando inventam por conta própria o seu emprego, criam a sua atividade e a exercem nas ruas, nos bairros, no campo. Neste setor de atividade, a população inventa o seu emprego, o exerce em todo lugar, onde for possível, na rua, nos bairros, no campo. Em relação a ele, o governo não precisa fazer nada, apenas cuidar para não sufocá-lo. Eu fabrico jóias, torro nozes e produzo bombons, eu preparo refeições para pessoas do bairro, eu reformo roupas usadas, eu canto nos terraços dos cafés? É o auto-emprego, o ''self-employement''. Eu não preciso preencher formulários de candidatura. Eu não espero ser contratado. Eu atendo diretamente à demanda. Ao inventar a minha própria atividade, estou cuidando de mim mesmo e da minha família. Dezenas de milhões de pessoas vivem desta forma nos países em vias de desenvolvimento. Já, nos países ricos, a teoria dominante não considera essas atividades como ''econômicas''. Os atores sociais, os bancos, se recusam a financiá-las e a ajudá-las. Eles acreditam somente na empresa formal, no regime do salariado. Como se o fato de receber um salário lhes desse uma certidão de desenvolvimento!



Quais outros ''pontos mortos'' e armadilhas do pensamento econômico seriam reveladores da crise atual?
Os governos que seguram as alavancas e os bancos consideram a pessoa humana como uma entidade abstrata, um agente econômico desprovido de gênero sexual. Ora, a nossa experiência no Grameen Bank revela que as mulheres se mostram muito mais ativas e solváveis do que os homens, tão logo alguém lhes dá crédito. Em Bangladesh, quando eu tentava, em vão, convencer os bancos a outorgarem empréstimos para os aldeões, eu sempre ouvia a seguinte resposta: ''É impossível fazer isso''. Quando eu sugeri a idéia de emprestar dinheiro para mulheres pobres, eles me consideraram como um iluminado. Quando nós tentávamos falar de dinheiro com as mulheres, todas elas respondiam: ''Conversem com o meu marido. Eu nunca toco em dinheiro. Não entendo nada disso''. Eu me dei conta de que nenhuma mulher, nem mesmo 1% dentre elas, freqüentava os bancos. Elas eram subestimadas de tal forma que eu me dizia: elas estão com medo, vai demorar bastante tempo até convencê-las do contrário. Quando nós lançamos o Grameen Bank, queríamos conseguir conceder empréstimos para ao menos 50% de mulheres. Nós sabíamos que seria necessário vencer as resistências das próprias mulheres.



O senhor precisou de muito tempo para alcançar esta meta?
Nós demoramos seis anos até alcançar a paridade entre homens e mulheres. Nós percebemos ao longo deste processo que o dinheiro confiado às mulheres proporcionava muito mais benefícios. Elas criavam trabalho, empregos, riquezas. Elas reembolsavam o seu crédito. No começo, nós só trabalhávamos em Bangladesh. As mulheres bengalis cuidam muito mais das crianças do que os homens. Elas pensam no seu futuro, querem fazer as coisas acontecerem de modo a viverem melhor num futuro próximo. Os homens, por sua vez, querem tirar proveito do instante, eles gastam com maior facilidade. No início, nós pensávamos que esta situação de fato só dizia respeito ao Bangladesh. Mas não, é possível encontrar a mesma vontade feminina em todos os continentes. Eu creio que em função da sua longa história a serviço das crianças e dos homens, a mulher possui uma qualidade única, que é o sacrifício de si. O homem não possui este mesmo senso do sacrifício. Você raramente ouve dizer que uma mulher foi ''beber seu pagamento''. As mulheres pensam a longo prazo, elas economizam, elas são solvíveis. Isso explica por que o quociente do Grameen Bank se inverteu. Atualmente, as mulheres são os nossos principais clientes, numa proporção de 90%? Os bancos tradicionais nunca pensaram em emprestar dinheiro para as mulheres, porque eles nunca compreenderam a força econômica virtuosa e dinâmica que elas representam.



O senhor diz torcer pelo advento de um ''capitalismo social'', um novo capitalismo. O que isso vem a ser?
Com freqüência, as pessoas me perguntam: ''Você fundou o Grameen Bank. Não estaria obtendo nenhum lucro com as suas atividades?'' Eu lhes respondo: ''Eu não sou proprietário do Grameen, eu não possuo parte alguma da sociedade''. Eu sempre pensei que o Grameen Bank deveria ter como proprietários aqueles que tomam dinheiro emprestado, os pobres. São eles os proprietários, e, aliás, eles fazem parte do conselho da diretoria. Evidentemente, eu sou chefe de empresa e, como tal, recebo um salário, mas este não está vinculado ao fato de que eu venha a possuir partes ou não. O fato de trabalhar numa empresa de vocação social não lhe proporciona dividendo algum. Outros interlocutores me dizem, em Bangladesh: ''Você deve ser rico, você fundou a maior companhia de telefonia móvel do país''. Eu lhes respondo: ''É verdade que se trata da maior companhia de telefonia móvel do país, mas isso não me torna necessariamente mais rico. Eu fundei a companhia sem sequer pensar por um único instante em adquirir partes do seu capital''. Então, eles perguntam: ''Por que ter construído todas essas estruturas se você não ganha nada com isso?'' Eu ganho aquilo que me proporciona o meu trabalho.



Contudo, o senhor contribuiu para fundar um grande número de sociedades?
Eu participei da criação de 26 sociedades por intermédio da Grameen Bank, mas eu não sou acionista de nenhuma delas. Eu sei muito bem o que alguns pensam: ''É um idealista''. Mas não é nada disso, eu não sou um idealista, sou realista. Todo mundo espera ganhar dinheiro fazendo negócios. Mas o homem pode realizar tantas outras coisas fazendo negócios. Por que alguém não poderia definir para si mesmo objetivos sociais, ecológicos, humanistas? Foi o que nós fizemos. O problema central do capitalismo ''unidimensional'' é que ele dá espaços apenas para uma única maneira de atuar: faturar lucros imediatos. Por que não integrar a dimensão social na teoria econômica? Por que não construir companhias que tenham como objetivos pagar decentemente seus assalariados e melhorar a situação social em vez de procurarem fazer com que dirigentes e acionistas obtenham apenas lucros?



Quais seriam as regras de funcionamento deste sistema, ao mesmo tempo capitalista e social? O senhor poderia dar exemplos?
As primeiras empresas deste tipo já estão gravitando em volta do Grameen Bank ou do comércio eqüitativo. Elas se parecem com sociedades capitalistas clássicas, elas empregam trabalhadores, produzem bens e serviços, oferecem aos seus clientes um preço único e coerente, o seu faturamento permite cobrir seus custos de maneira perene, sem que elas nada esperem das doações ou de uma ajuda governamental. Trata-se de negócios que funcionam, mantêm seu equilíbrio e não dependem da caridade. Qual é a sua particularidade? Elas se destinam a criar um benefício social para uma categoria de população. Pode ser, por exemplo, produzir uma alimentação de qualidade destinada às crianças pobres, livrando-se de todos os custos com embalagem luxuosa e propaganda dos alimentos tradicionais. Ou ainda, comercializar apólices de seguro-doença que permitam que os mais depauperados possam ter acesso a tratamentos médicos. Ou então, dedicar-se à reciclagem do lixo e das águas usadas que poluem um bairro onde vive uma população que foi deixada por conta pela sociedade. É só olhar em volta de você, e encontrará em todo lugar elementos capazes de motivar a montagem de um ''social-business''. Sem dúvida seja necessário imaginar um desses negócios que possa ajudar as famílias que foram expulsas da sua casa pela crise dos subprimes.