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Luiz Gonzaga Belluzzo: Pra tudo acabar na quarta-feira

Ainda no início da crise financeira que ora assola o planeta, escrevi na “Folha de S. Paulo” que os economistas divergiam a respeito da intensidade, abrangência e duração da maré vazante. Em meio ao fogo cruzado das controvérsias, não faltaram analista

Walras, Wicksell, Hayek e Milton Friedman formularam teorias distintas, mas todas elas acolheram a hipótese da separação entre os “fatores reais” e os “fatores monetários”. Os chamados novo-clássicos, escorados na hipótese das expectativas racionais, proclamaram a irrelevância dos fatores monetários e decretaram que as forças reais da produtividade e da poupança são as fontes de dinamismo das economias e da sucessão de ciclos que as acomete. Na contramão da “visão natural-realista” das economias de mercado, Keynes se dispôs a investigar as propriedades da Economia Monetária da Produção. Nela, imperam a divisão do trabalho, a propriedade privada das empresas, o pagamento de salários monetários aos trabalhadores e a moeda de crédito administrada pelos bancos. Sem a criação de meios de pagamento e o provimento de liquidez pelo sistema bancário, os empresários não podem comprar os meios de produção e pagar os salários aos trabalhadores.



Nessa economia, as expectativas dos empresários a respeito dos lucros futuros, ou seja, da captura dos ganhos proporcionados pelo aumento da produtividade social do trabalho, só são viabilizadas mediante o adiantamento de capital monetário. Isso, por sua vez impulsiona a competição pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de insumos e equipamentos.



As relações de crédito-débito e as ações geram um estoque de direitos de propriedade e de apropriação sobre a riqueza e a renda da sociedade. As avaliações desses direitos nos mercados especializados passam a comandar as condições em que o crédito é ofertado pelos bancos e demandado pelas empresas. Elas determinam o ponto de demanda efetiva, ou seja, o estado de expectativas que permite a “criação” de valor, isto é, de certo nível de renda na “economia real”.



O desenvolvimento da economia monetária da produção suscitou, sim, a subordinação do sistema de crédito à lógica da acumulação produtiva. Mas, ao mesmo tempo, ensejou a possibilidade de episódios especulativos, crises de crédito e seu rastro de destruição de valores. O economista Cláudio Borio, do Bank of International Settlements, discute, em artigo recente, as conseqüências da maior integração comercial e produtiva das economias, e crescente interdependência dos mercados financeiros “liberalizados”. A combinação entre esses fenômenos, diz, acentuou o caráter pró-cíclico dos sistemas financeiros e impulsionou a criação de desequilíbrios cumulativos entre credores e devedores – famílias, empresas e países -, com sérias conseqüências para a eficácia das políticas monetárias nacionais.



A questão central, na opinião do economista do Bank of International Settlements, reside nas limitações da política monetária, enclausurada nas metas de inflação, diante da excessiva inclinação dos sistemas financeiros a desatar movimentos pró-cíclicos. “Enquanto o sucesso da luta contra a inflação foi extraordinário, o mesmo não pode ser dito da estabilidade financeira. Desde a liberalização do início dos anos 80, observamos flutuações cada vez maiores na expansão do crédito e no preço dos ativos. Esses fenômenos desencadearam crises financeiras com conseqüências materiais para a economia real.”



Borio suspeita que as regras microprudenciais (terrível neo-anglicismo) impostas às instituições pelos acordos da Basiléia I e II tiveram pouca eficácia para conter a sistemática subestimação dos riscos suscitada pelas articulações entre crédito farto e o valorização dos ativos. A despeito dos códigos da Basiléia, as “conjeturas” dos bancos e dos investidores – guiadas pelas benesses e ilusões da Grande Moderação – deflagraram as interações “virtuosas” entre o movimento de preços dos ativos e a euforia descontrolada na avaliação dos riscos de crédito. Tudo acabou na quarta-feira, quando sobreveio a ressaca da impropriamente chamada crise do subprime.



Borio chama a atenção para o caráter sistêmico, ou seja, macroeconômico dos processos de “euforia e desilusão”. Como Minsky, ele admite que, em seu movimento de expansão, a economia monetária da produção produz endogenamente as situações de fragilidade financeira que culminam na crise e na destruição de valor da riqueza acumulada, com danos à economia real.



O desenvolvimento da fragilidade financeira não decorre do comportamento irracional dos agentes, mas sim do peculiar sistema de relações que se estabelece entre os possuidores de riqueza. Minsky sustentou que a formação dos preços dos ativos é determinada por fortes interações subjetivas entre os participantes do mercado. As condições de liquidez se alteram endogenamente ao longo do ciclo: primeiro, abundante; depois, eufórica; para, finalmente, desaparecer diante da demanda desesperada dos que carregam ativos cujas receitas tornaram-se inferiores aos pagamentos contratuais decorrentes da dívida assumida.



A rede de pagamentos formada pelo sistema bancário é crucial para o funcionamento adequado dos mercados. Ela se constitui na infra-estrutura que facilita o “clearing” e a liquidação de operações entre os protagonistas da economia monetária. A preservação dessas instituições, que estão na base do sistema de provimento de liquidez e de pagamentos, justifica as intervenções de última instância dos bancos centrais, sob pena de uma crise de liquidez se transformar numa crise de crédito com efeitos desastrosos sobre a chamada “economia real”.



Não por acaso, Borio propõe a adoção, ao longo do ciclo, de medidas discricionárias – tais como requerimentos de margem mais rigorosos e restrições quantitativas aos empréstimos, atuando em conjugação com os instrumentos preventivos já existentes – para impedir a alavancagem excessiva e imprudente.



* Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp



Artigo publicado no Valor Econômico