Bolívia vive trégua e diálogo de destino incerto
Durou mais de oito horas e entrou pela madrugada deste sábado (13) o encontro governo-oposição visando superar a convulsão política na Bolívia. As partes foram lideradas pelo vice-presidente Álvaro García Linera, do lado do governo, e pelo governado
Publicado 13/09/2008 16:40
Fabián Yaksic, vice-ministro da Descentralização que falou em nome da delegação governista na reunião, saiu dizendo que o diálogo terá continuidade na tarde de domingo. ''A idéia é que levemos as propostas ao presidente e que Cossío faça as consultas aos demais governadores''.
O próprio Cossío – um dos quatro governadores da ''Meia Lua'', que se mobilizam há três semanas para derrubar o governo Evo Morales – deixou a reunião dizendo que houve ''a abertura de um processo de negociação'' e ''todas as propostas giraram em torno da necessidade de pacificar o país e por fim à violência''.
Evo: “Talvez eu seja culpado”…
Um mês atrás, Evo, do alto dos 67,4% de votos que obteve no referendo revogatório de 10 de agosto, usou esse capital justamente para isso: fez um chamamento ao diálogo com os governadores oposicionistas.
Na ocasião, os governadores e ''comitês cívicos'' da ''Meia Lua'' recusaram o apelo. Em vez disso, passaram das manifestações de massas para as ações de violência organizada, primeiro com porretes de madeira e coquetéis molotov, em seguida com armas de fogo.
Nesta semana, chegaram a ''derrotar'' a polícia e o exército em algumas batalhas pelo controle de prédios do governo central e aeroportos: as forças repressivas tinham ordem do presidente da República para não atirar,
''Quero dizer uma verdade: talvez eu seja culpado por dizer à Polícia Nacional e às Forças Armadas que não usem armas contra o povo. Alguns grupos de aproveitam disso para ofender e obrigar as Forças Armadas e a Polícia. Somos uma cultura de vida. temos a obrigação de defender a vida. Há grupos que se aproveitam dessa humildade, dessa defesa da vida; em algumas regiões mas não em todo o departamento, sem moradores de um departamento, apenas grupos'', disse Evo nesta sexta-feira (12), no ato de aniversário de Quillacollo.
Os fatos mostraram que a ''cultura de vida'' de Evo levou a melhor. Tudo que a direita ''cívica'' do Oriente boliviano queria eram alguns cadáveres: para fingir que ela ocupa o lugar dos movimentos populares da rebelião de 2003, enquanto Evo faria o papel do ex-presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, ''El Gringo'', que mandou os soldados matarem gente até ser obrigado a fugir de helicóptero do palácio presidencial, rumo ao exílio em Miami.
O castigo andou a cavalo: a truculência oposicionista terminou por começar a derrotar a si própria, em Porvenir, departamento de Pando, a 30 km da fronteira com o Brasil. Um grupo de paramilitares, treinados desde 2006 por ordem do governador Leopoldo Fernández, ''o ditador de Pando'', emboscou uma marcha de mil camponeses rumo a Cobija. Deixou 16 mortos, segundo a última contagem deste sábado: 12 camponeses e dois funcionários do poder público local, para comprovar que não se tratava de ''cidadãos indignados'', agindo espontaneamente, e sim de gente do ''ditador''.
O Massacre de Porvenir abriu muitos olhos. A Bolívia conhece bem isso de trabalhadores abatidos a tiro. O episódio foi a justificativa para o governo central decretar o estado de sítio no departamento de Pando, e ordenar a primeira ação efetiva das Forças Armadas – a desocupação do Aeroporto de Cobija, capital departamental, que estava fechado pela polícia local. A imprensa anti-Evo noticiou que teriam ocorrido três mortes, que mais tarde baixaram para uma.
Futuro incerto
É difícil prever os rumos da tentativa de diálogo iniciada nesta sexta-feira. Somente em 2008 ocorreram três outros ensaios semelhantes, e todos os três fracassaram.
Formalmente, Cossío foi a La Paz não apenas em nome de Tarija, mas também do Conalde, e portanto de todos os governadores oposicionistas da ''Meia Lua''. Mas não está claro que tenha efetivamente essa procuração.
O ''ditador de Pando'', Fernández, anunciou logo após o anúncio do estado de sítio que não integrará o processo de diálogo. A julgar pelo número de cadáveres em seu departamento, ele se alinha na ala direita do Conalde. O governador de Santa Cruz, Rubén Costas, chegou a ter anunciado o seu nome como um dos participantes da reunião no Palácio Quemado, mas não compareceu.
Alberto Melgar, o presidente ''cívico'' do departamento de Beni, foi outro que tratou de torpedear o diálogo antes mesmo de saber seus resultados. ''Dá a a impressão de que, quando você senta para conversar com o governo, um extremo tem uma lei na mão mas o outro saca um revólver. Portanto, não creio que haja um interesse real em solucionar o problema'', disse.
Bônus e ônus do ''autonomismo''
Aos poucos, a América do Sul vai aprendendo quem são e o quanto valem os movimentos da oposição conservadora em diferentes países: tentativa de golpe em 2002 e ''paro cívico'' (locaute patronal) na Venezuela; crise do ''Mensalão'' em 2005 e movimento ''cansei'' em 2007 no Brasil; ''paro cívico'' na agroindústria argentina em 2008, entre outros.
A oposição boliviana é mais uma nessa lista. Na Bolívia, como no continente em geral, é duvidoso que obtenha o relativo sucesso dos exemplos que tenta imitar – as supostas Revoluções de Veludo no ex-campo socialista.
Depois de perder as eleições presidenciais de 2005 para Evo, a oposição boliviana passou algum tempo em busca de uma bandeira e um discurso, até que abraçou o ''autonomismo'' da ''Meia Lua''. A escolha trouxe-lhe vantagens mas também prejuízos. A vantagem é poder jogar com um anseio – a autonomia – que possui raízes reais e antigas no Oriente. A desvantagem é entrincheirar-se em um bunker regional, sem um discurso para o conjunto dos bolivianos.
O referendo de 10 de agosto expressou em votos essa dificuldade oposicionista. O eleitorado pró-Evo cresceu 14 pontos em todo o país (alcançou 67,4%, contra 53,3% nas presidenciais de 2005). Alguns dos maiores índices de crescimento foram nos quatro departamentos da ''Meia Lua'':
Em Pando de 20,9% para 53,5%;
Em beni de 16,5% para 42,3%;
Em Santa Cruz de 33,2% para 39,4%;
Em Tarija de 31,6% para 49,8%.
Estes números explicam a intransigente negativa dos ''autonomistas'' em aceitar que o eleitor boliviano vá às urnas novamente, em dezembro, para referendar o projeto de Constituição aprovado a duras penas pela Assembléia Constituinte em dezembro passado. Podem explicar também a passagem da oposição, das formas de luta políticas e eleitorais (os ''referendos autonomistas'' deste ano) para ações como a destruição de prédios públicos, o atentado a um gasoduto em Tarija, nesta terça-feira (que cortou 10% do fornecimento de gás boliviano ao Brasil) e o Massacre de Porvenir.