Dalmo Ribas visita PCdoB e fala dos anos de clandestinidade
O psicólogo José Dalmo Ribeiro Ribas visitou recentemente a sede-escola do PCdoB. Ele ingressou no partido em 1966, durante o processo de realização da 6ª Conferência. Foi dirigente estadual, responsável pela área de agitação e propaganda e, depois, se en
Publicado 31/10/2008 17:16
Naqueles anos esteve sob a direção de homens como Armando Gimenez, Lincoln Oest, Diógenes Arruda e Pedro Pomar. Sob o comando deste último esteve no Vale do Ribeira estudando a área para implantação da guerrilha rural.
No final da década de 1970 se afastou do partido e se ligou ao pessoal do Partido Revolucionário Comunista (PRC), dissidência partidária capitaneada por José Genoino e Oseas Duarte entre outros. Esta organização, no entanto, teve uma vida efêmera. Mais recentemente, como tantos outros, retomou os vínculos com o PCdoB e auxiliou na campanha vitoriosa de Jamil Murad na cidade de São Paulo.
Por sua trajetória de vida, ele foi convidado a dar um depoimento ao projeto de memória do PCdoB que está em fase de construção. José Dalmo, entre outras coisas, é um dos irmãos mais velhos de Antônio Guilherme Ribeiro Ribas, ex-presidente da UPES e morto durante a Guerrilha do Araguaia.
Sobre a sua história e de muitos de seus companheiros, Dalmo afirmou: “É uma história pesada (…) pesada do ponto de vista pessoal, mas extremamente leve se comparada a história de outros companheiros que não tiveram o privilégio de estarem aqui presentes”. Emocionado concluiu: “só quem militou na clandestinidade pode compartilhar desse sentimento de você entrar num edifício que tem a bandeira vermelha do partido na porta ao lado da bandeira nacional”. Ele veio à sede acompanhado de seu filho mais velho, Daniel Araguaia.
O depoimento foi prestado aos historiadores Augusto Buonicore, Fernando Garcia e a Carolina Ruy, secretária de redação da revista Princípios. Os trabalhos contaram ainda com a participação especial do antigo dirigente comunista Jamil Murad, recrutado por José Dalmo no longínquo ano de 1968. Segue abaixo alguns dos trechos mais significativos desta entrevista.
Ingressando no PCdoB pelas mãos da classe operária
“Meu irmão Valter, que era sete anos mais velho de que eu, começou a namorar a filha do Francisco Romanini. Este era vice presidente do sindicato dos metalúrgicos de ABC, era um operário comunista de longa data. Ele nos catequizou e eu comecei a participar de umas reuniões da Juventude Comunista. Conheci o João Amazonas numa reunião no Centro do Professorado Paulista, quando foi realizada a Plenária de preparação para a Conferência Brasileira de Solidariedade a Cuba. Teve uma plenária grande que João Amazonas estava presidindo. A gente ficava muito orgulhoso de estar em contato com o partido que estava na clandestinidade e eu já falava que gostaria de ser da linha chinesa. ‘Qual que é a mais radical? É a chinesa. Então eu quero ser da linha chinesa’”.
A Ala Vermelha
“Eu entrei no partido um pouco antes do racha com a Ala Vermelha. Foi quando saiu o documento da 6ª Conferência. A reunião que nós participamos foi uma espécie de um ativo na casa do Vicente Roig. Foi uma reunião tumultuada. Num determinado momento eles, que haviam sublinhado uma porção de termos que constavam no documento, disseram: “Vocês continuam desviados para direita. Como falam em união de patriotas? Quem é que compõe essa união de patriotas? Até quando vocês vão acreditar que existe uma burguesia nacional?”. Eles vieram com uma opinião fechada, prontos para virar o barco e num dado momento se levantaram e foram embora. Então eles imediatamente partiram para uma série da ações (armadas) que, no entender da direção do partido, era uma avaliação correta, ia atrair o pau pra cima da gente. Foi o que, de fato, acabou acontecendo”.
O dia em que Regina Duarte “ajudou” o PCdoB
“Eu estava construindo o partido no interior e fui pra Campinas. Precisava encontrar um jeito de chegar às pessoas e não sabia como. Então recorri à atividade ‘baluarteira’ e achei por bem criar um serviço de venda de livros de porta em porta. Em frente ao Colégio Imaculada toquei a campainha. A empregada atendeu e começou a explicar que quem morava naquela casa era a Namoradinha do Brasil, Regina Duarte. Ela estava lendo um texto pra uma novela e viu os livros que eu tinha e disse: “quem pode se interessar por esse livro é aquela menina que mora ali em frente, que é minha amiga, a Magali. Diga que foi a Regina Duarte que mandou. Ela está fazendo sociologia em Rio Claro”. Lá fui eu e comecei a conversar com a Magali. Aí foi uma conversa política. Falou-se de problemas de repressão na Unesp e que ela tinha vários amigos que poderiam estar se interessando pelo tipo de livro que eu tinha. Então, fiquei conhecendo o presidente do Centro Acadêmico, que era o Sérgio Carneiro. E ele proporcionou um encontro onde nós iríamos estar trocando idéias, discutir mesmo o que fazer diante da situação (nacional) e do movimento estudantil, UNE, UEE. Assuntos que eu estava bem a par por que eu vinha daquele movimento”.
Com Che Guevara em Sampa
“Eu estava na ‘quarta tarefa’ e era o contato do partido com outras organizações. Quem me procurou foi o Nelson Gato, me trazendo essa informação: ‘Diga para o Gimenez que o ‘Comandante’ quer vê-lo.’ Isso foi em 1967, aí eu levei a informação. Foi combinado o ponto, na galeria Metrópole. Quando era algum compromisso assim de maior expressão, a pessoa levava uma cobertura; então eu fui de cobertura do Gimenez; ele ia na frente e eu ia atrás pra ver se as coisas se consumavam tal como o combinado. Che Guevara estava obviamente sem barba, com um terno daqueles que se costumava usar na época com grandes botões e transpassado na frente, desse tecido chamado ‘príncipe de Gales’. Impecavelmente bem vestido. Eu me afastei pra um lado e os dois foram almoçar . O que o Guevara queria saber era a quantas andava o Partido, qual era a solidariedade que podia contar e mandou recados pra direção do partido. E aí eu fiquei sabendo que o contato do Guevara com o partido era o Armando Gimenez. Eles era amigos pessoais e, a título de folclore, Gimenez ganhou um charuto. No dia seguinte ele fumou o charuto que recebera do Guevara”.
Treinando guerrilha em São Vicente
“O primeiro destacamento do Araguaia foi montado com a articulação do Armando Gimenez e juntamente com ele veio o Osvaldão. O primeiro treinamento militar foi numa casa que nos foi oferecida em São Vicente, uma casa grande que pertencia a um industrial de São Paulo dono daquelas balanças Filizola. Ate hoje eu não sei qual era a ligação que o Filizola e a família dele tinham com o partido. Mas ele era, segundo me consta, um déspota esclarecido. Eu acho que foi logo depois de um ativo pra discutir luta armada. O Osvaldão era uma figura muito interessante, esteve aqui em São Paulo já com esse propósito, em 67, 68 por aí. Na casa estavam Lúcio Petit da Silva, Jaime Petit da Silva, eu e meu irmão (Antonio Guilherme Ribeiro Ribas). Não era um grupo muito grande, talvez umas 15 pessoas. Tinha também muita doutrinação, a parte ideológica: como se comportar na prisão etc. Inclusive o partido publicou um livrinho de várias páginas: “Como se conduzir diante da repressão”. Isso era muito estimulado, para se ter um comportamento correto diante da repressão. Mas, mesmo assim, a gente morria de medo”.
Um aparelho acima de qualquer suspeita
“Uma mudança significativa foi a qualidade dos nossos materiais por que a gente montou uma gráfica muito boa. E essa gráfica estava funcionando num lugar sui generis. Através do Pedrinho (Pedro de Oliveira) da AP fiquei conhecendo um Coronel da Polícia Militar chamado Maximilian Andrade Neto. Esse homem foi morto na tortura. E ele dizia com muita clareza: “Eu tenho história dentro do partido, dentro da esquerda; não vou dizer que estou nem com vocês e nem com a ALN, mas podem contar comigo, posso ajudar os dois lados. Eu expliquei que a gente estava precisando de um lugar seguro, de confiança, pra instalar a gráfica e ele disse: ‘vou arranjar o melhor local para vocês’. Quando eu vou ver onde era, era no Jardim Chapadão exatamente ao lado da Escola de Cadetes do Exército. Então quando a gente entrava nesse aparelho do partido, via dois militares com metralhadoras na porta. A casa era de uma segurança absoluta. Foi um cabo que me alugou a casa e o coronel assinou como fiador. Ele pegou alguns recrutas e encostou o caminhão na casa e deram uma geral: pintaram, arrumaram o telhado etc. Na hora que eu cheguei e vi aquele caminhão do exército parado na porta da casa levei um susto”.
Antônio Guilherme Ribas na prisão
“O Guilherme foi preso pela primeira vez em 7 de setembro de 1968 numa cerimônia que estava tendo na Av. D. Pedro ali no Ipiranga. A função dele era chegar lá e abrir uma bandeira brasileira e fazer uma manifestação de protesto diante do Costa e Silva. Ele foi detido e ficou preso durante trinta dias. Ele saiu e três ou quatro dias depois tinha início o congresso da UNE em Ibiúna. Nós já havíamos recebido a informação de que a situação estava desgastada e que havia um risco muito grande de uma queda. Eu consultei o Arruda. Ele era muito duro, muito duro, e eu falei: “estou consultando para saber se é correto mandar um companheiro que acabou de sair da cadeia pra uma situação que é complicada”. O Arruda foi inflexível e disse: “prisão não foi feita pra cachorro, se tiver que ser preso, que seja preso!”. Então dei a instrução, a gente nunca discutia instrução, e levamos a coisa pra frente. E ali (em Ibiúna) ele foi preso novamente. Os quatro principais indiciados como responsáveis pelo congresso foram José Dirceu, Luís Travassos, Vladimir Palmeira e Antonio Guilherme Ribas”.
O poste, o City Bank e a 4ª Internacional
“Passado alguns anos, contando parece anedota. Mas na época dava um sentimento de culpa que você não tem nem idéia. Estava conversando com o Alípio (Freire) e lembrávamos do quebra-quebra de rua na qual dois estudantes pegaram um poste e quebraram a porta do City Bank. Essa foto ficou famosa na época e até ganhou um prêmio.Um dos indigitados era eu, mas na época pegaram um espanhol como sendo o responsável. Pegaram a fotografia e por biotipagem escolheram o espanhol e o prenderam. Ele ficou na sela com o Alípio que nos contou que o espanhol reclamava: ‘pô, eu não posso dedar o cara, mas eu sei que é aquele desgraçado”. Por outro lado, eu ficava muito mal vendo o sujeito ser condenado, preso no teu lugar e não poder falar nada. O espanhol era da Quarta Internacional”.
Pinga e mortadela … sem maconha
“Uma coisa muito séria que nós tínhamos era austeridade com dinheiro do parido. A gente passava pra receber as contribuições pegava e trazia. As vezes passava-se fome, mas não usava aquele dinheiro pra comprar comida. O que tínhamos era exíguo, exíguo, exíguo. Então se filava um lugar pra dormir, um almoço, uma jantar. Havia muita seriedade. No partido não tinha essa questão de tóxicos. Era absolutamente vetado o uso de Maria Juana. Nossa, se soubesse que um companheiro do partido usou maconha estava ferrado; bebida alcoólica tinha que ser pinga ou em ocasiões muito especiais. Pinga por que era barata e nacional. Sanduíche de mortadela tinha que ser assim: ‘Escuta, quantas fatias de mortadela você tem por aí? Quatro? Então coloca duas e, em vez de dois e cinqüenta, faz por dois’, Isso era praxe”.
Uma vela para Arruda
“Ele era tão duro que acharam que o seu caixão não tinha que ter flor nenhuma. Não tinha uma flor. Os coveiros começaram a ficar incomodados com aquilo. Chegava um e fazia um discurso, chegava outro e fazia outro discurso. Ele foi enterrado no túmulo dos jornalistas, da associação dos jornalistas do estado de São Paulo. O coveiro achou uma indignidade um homem tão homenageado sendo enterrado sem ao menos uma vela. Aí eu o vi se aproximar com um maço de velas e muito singelamente, com todo respeito, chegou ao túmulo do Arruda, ascendeu uma velinha e colocou ali. Esta foi a participação do povo”.
Nem todo partido é igual
“Mas cada história dessa tem desdobramentos, tem nomes, tem pessoas envolvidas. Eu me disponho a integrar esse grupo de memória do partido e faço com muito gosto, com muito respeito, com muito orgulho. Torno a reiterar que é uma emoção pra quem viveu o período da clandestinidade poder sentar ao lado de companheiros, camaradas, e perceber que hoje vivemos num país diferentes. Com todas as limitações que a gente possa ter, por que nós enquanto comunistas somos muito exigentes, temos um operário no poder, não temos classe operária no poder, mas temos um operário. Foi difícil chegar aqui. Eu fico muito bravo quando eu vejo gente tripudiar o momento presente e dizer que ‘político é tudo igual’. Nosso partido foi construído com sangue, com sacrifício, com morte de muita gente, com muita pancada”. “Só quem militou na clandestinidade pode compartilhar desse sentimento de você entrar num edifício que tem a bandeira vermelha do partido na porta ao lado da bandeira nacional”.
.