Novo filme de Rosemberg Cariry estréia no Festival de Brasília
Siri-Ará – longa-metragem com direção de Rosemberg Cariri participa da mostra competitiva de longa-metragem do 41º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Em entrevista ao Jornal do Festival de Brasília, o diretor cearense fala sobre o filme, a hi
Publicado 21/11/2008 11:15 | Editado 04/03/2020 16:35
Esse é um projeto antigo do senhor. Quantos anos esteve trabalhando nesse filme? Quanto foi gasto na produção do Siri-Ará? É uma realização ter terminado o filme e, em seguida, ser indicado para uma premiação importante do cinema brasileiro?
Trabalhei doze anos neste projeto. Uma idéia transforma-se com o tempo. Inicialmente eu escrevi o roteiro de um filme épico e histórico que narrava a tragédia fundadora do Ceará, quando em 1603, Dom Pero Coelho de Sousa, a mulher, os filhos e um exército de mil homens aventuram-se pelo sertão do Ceará, para expulsar os franceses estabelecidos na Serra da Ibiapaba e conquistar as riquezas do Eldorado. Desta expedição regressam vivos ao litoral, roídos de fome, envoltos em trapos e loucura, apenas nove pessoas. Nunca consegui os recursos suficientes para realizar o filme com esta dimensão histórica e logística de produção. Resolvi então fazer um filme ''visagem'', uma ópera popular, uma alegoria, usando os atores e as manifestações dramáticas populares, como o Reisado do Mestre Aldenir (os colonizadores) e a Banda de Pífanos dos Irmãos Anicetos (os índios).
No filme, Cioran é um mestiço brasileiro que, depois do exílio na França, resolve voltar ao sertão em busca da sua origem e da história do seu povo. Por guia, ele toma a figura misteriosa de uma velha índia. O destino de Cioran, que vive um novo exílio na nação real/imaginada, cruza com os guerreiros do reisado e os índios da banda de pífanos, grupos de folguedos dramáticos populares que vagam pelo sertão. A partir daí, conflitos se dão entre os dois grupos, nos remetendo à tragédia fundadora do Ceará. Estabeleço assim o filme 'visage' sobre os encontros e desencontros de 'mundos' que marcam a invenção da nação brasileira. O filme tem o custo aproximado de hum milhão de reais, ou seja, é um filme de baixíssimo orçamento, embora pareça uma grande produção.
Sim, ter terminado este filme, depois de tantos anos, é para mim uma vitória. Esta busca pela compreensão da história, do mito fundador, da alma mestiça e coletiva, marcada pela dor ancestral, é também a minha própria busca de compreender o meu país, de curar as feridas da morte fundadora através de um ritual antropofágico figurado, que anuncia, assim, uma ressurreição simbólica.
A fotografia do filme, pelo que pude perceber, é bem colorida. Tem alguma intenção implícita nisso? Há algum motivo especial na escolha dos municípios de Quixadá e Quixeramobim para as gravações? Quais são?
O sertão profundo, já marcado pela presença agressiva do progresso e da globalização, é o grande cenário onde se desenrola a narrativa épica do filme que se equilibra entre a ficção e o documental, marcado pela necessidade alegórica de desvendar os significados dramáticos da construção da nova civilização mestiça e tropical.
A fotografia deste filme tem um tratamento muito especial. Os enquadramentos foram elaborados a partir da concepção dos ''quadros vivos'', representações teatrais dos ciclos religiosos medievais, ainda presentes em algumas cidades do sertão. Temos nas as seqüencias de Cioran, uma fotografia inspirada em algumas representações pictóricas medievais e modernas das ''Tentações de Santo Antão'', que vão de Jérôme Bosch e Bruegel – o Ancião, de Matthias Grünewald a Salvador Dalí. Recorremos também a toda uma representação dramatúrgica dos folguedos dramáticos populares tradicionais, estabelecendo os fundamentos da estética do ''figural'' dos reisados, elaborando uma linguagem de representação bem brasileira. A câmera é quase sempre frontal, quase sem contra-planos, buscando uma imagem bi-dimensional, onde o uso do suporte digital HD trabalha com a profundidade de campo e o contraste. Tentamos tirar partido disto. O filme tem toda uma concepção estética vivida, pesquisada, experimentada e maturada durante todos estes anos que vivi imerso na cultura sertânica. Originalmente a fotografia foi captada com cores vivas, mas depois, na intermediação digital para 35mm, remarcamos as cores, baixando o croma, aproximando-se nas cenas noturnas do claro-escuro de Rembrandt e nas cenas diurnas do ocre, do cinza, da desolação do sertão, em sua intensa luminosidade e amplidão. O sertão central do Ceará, onde ficam as cidades de Quixadá e Quixeramobim é um dos mais belos cenários do Brasil com seus monólitos e suas caatingas retorcidas, em agonia e essencialidade, como se fosse tocado por uma agonia cósmica e assim preparado para nele o homem representar a sua tragédia. Este cenário funciona como um palco, onde os atores representam a sua própria história e a tragédia do seu povo, através do violento processo colonial de conquista, de mestiçagem e de surgimento das culturas híbridas, sobre ruínas e ossadas.
O filme é ambientado em 1603 mesmo ou é uma história mais atemporal que apenas remete à tragédia fundadora do Ceará? Dom Pedro Coelho está retratado no filme?
Diante da impossibilidade de realizar um filme ''histórico'', com toda uma reconstituição de época, realizamos um filme de estética ousada, construído a partir dos arquétipos, dos mitos, das narrativas e manifestações mais profundas dos folguedos dramáticos populares, possibilitando uma nova compreensão da nossa história e da nossa formação cultural. Um filme feito com fragmentos de registros reais, de geografias reais, de homens e mulheres também reais e contemporâneos, em seus impasses e assombros, mas sempre transfigurados pela alegoria e pela imaginação. A ação se desenrola no tempo presente, mas o drama apresentado reflete também sobre o passado e a tragédia histórica fundadora. É no sertão que a cultura popular se reinventa como um novo mar, uma nova alma, uma nova civilização feita da herança de muitos povos e dos fragmentos de incontáveis culturas.
Segundo o diretor de arte, Sérgio Silveira, o filme Siri-Ará ''é uma ''visage'' que revela uma nação submersa, revolvida pelo vendaval da história, proscrita de dúvidas e ferida de morte pelos desmontes dos seus acervos memoriais''. A proposta é revolver a cultura viva do povo brasileiro, como quem escava as camadas sedimentares de nossos ''sambaquis imaginários'', garimpar esfinges no pântano da nossa origem, para desvendar mistérios, utopias e enganos.
Dos 6 filmes concorrentes como longa no Festival, apenas dois não são documentários. Um deles é o Siri-Ará. O senhor acha que isso pode interferir postiva ou negativamente nas chances de ganhar o prêmio?
Não posso profetizar quem ganhará prêmios ou não. Posso apenas dizer que as fronteiras entre o documentário e a ficção, entre o imaginário e o real, entre a vida ordinária e o sonho, estão cada vez mais misturadas, mais profundas. O Siri-Ará tem muito de documental e quase todos os meus filmes documentários têm muito do imaginário e das representações do mundo construídas a partir mediação estética e mágica. Não consigo estabelecer as fronteiras que separam o real do representado pela imaginação. Acredito que em muitos outros filmes presentes no Festival esta situação se configure com a mesma complexidade.
Argumento
Cioran é um mestiço brasileiro que, depois do exílio, resolve voltar ao sertão, em busca da sua origem e da história do seu povo. Por guia, ele toma a figura misteriosa de uma velha índia. O destino de Cioran, que vive um novo exílio na nação real/imaginada, cruza com os guerreiros do reisado e os índios da banda de pífanos, grupos de folguedos dramáticos populares que vagam pelo sertão. Os conflitos entre o Reisado e a banda de pífanos nos remetem à tragédia fundadora do Ceará; quando Dom Pero Coelho, no ano de 1603, em busca do Eldorado, encontra a guerra, a peste, a fome e a loucura. O filme Siri-Ará é uma ''visage'' sobre os encontros e desencontros de ''mundos'' que marcam a invenção da nação brasileira.
Elenco e Ficha Técnica
Adilson Maghá, Everaldo Pontes, Erotilde Honório,
Juliana Carvalho, Richele Viana
Participação especial: Reisado do Mestre Aldenir
Banda dos Irmãos Anicetos e Companhia Dita
Produção: Petrus Cariry, Teta Maia e Willa Lima
Trilha Sonora original: Liduino Pitombeira
Cantora: Myrlla Muniz
Direção de arte: Sérgio Silveira
Fotografia e câmera: Pedro Urano.
Mixagem: Érico Paiva (Sapão).
Montagem: Rosemberg Cariry