Esvaziamento e mudanças climáticas ameaçam semi-árido

Redução de 79,6% de terras agricultáveis e de 16,4% do Produto Interno Bruto (PIB) do Ceará são efeitos previstos até 2050. O prognóstico revelado na I Conferência Regional sobre Mudanças Climáticas, semana passada em Fortaleza, acompanhou anúncio de R$ 8

Por que a região do semi-árido é tão vulnerável às mudanças climáticas?


 


A região semi-árida está na fronteira do clima e há uma relativa escassez de água. Durante só quatro meses do ano ocorre superávit de água e mesmo assim com variações, porque há anos em que nem isso acontece. O Nordeste é vulnerável porque qualquer alteração climática pode afetar essa região. É diferente de onde chove muito e onde uma alteração de clima faz chover menos 20% ou 30%, mas ainda assim continua chovendo. No Nordeste não tem excedente de água que permita às pessoas continuarem vivendo assim.


 


O nordestino se adapta para conviver com adversidades, mas migra em função de problemas do semi-árido. Como o senhor analisa isso?


 


Os pobres não têm uma boa capacidade de adaptação. Isso é uma constatação que prova que, por isso mesmo, eles são afetados em cada seca. Eles consideram as alternativas e uma delas é migrar. Isso não é novidade. Eles já migram atual e historicamente. E é claro que se as secas chegarem mais severas eles continuarão migrando. Esse fenômeno continuará existindo mas, de certa forma, tenderá a ser desacelerado porque o semi-árido já está se esvaziando. A maior parte da população era rural e a cada seca muita gente enchia as cidades. É por isso que municípios como Fortaleza incharam tanto e até cidades do Interior. Agora há menos gente. A população do Nordeste é predominantemente urbana. As pessoas já estão nas cidades e as que permanecem no meio rural continuarão se deslocando devido à escassez de água e de chuvas.


 


Quais os impactos econômicos desse fenômeno nas cidades e no campo?


 


No campo, o primeiro impacto é sobre a agricultura, sobretudo a que depende da chuva, não é irrigada e compreende, basicamente, a atividade dos pequenos agricultores, a agricultura de subsistência, como a produção de feijão e de milho. Ali há um maior impacto, o que causa reflexo social com a falta de ocupação dessas pessoas. Na nossa história, esse era o momento em que o governo entrava com os programas de emergência, para criar uma renda para as pessoas. Hoje esse impacto está diminuindo porque as pessoas já têm uma renda mais ou menos permanente, fornecida por programas governamentais, como os de aposentadoria rural e o Bolsa-Família, além do emprego municipal , que é muito importante e é alimentado por fundos de participação com transferências federais. As políticas públicas já reduziram, de certa forma, a vulnerabilidade das pessoas a esses impactos. Mas as pessoas continuem sobrevivendo só porque recebem transferências não é uma situação desejavável.


 


Os impactos no meio ambiente, como o avanço do mar, superam os piores prognósticos. Há o que fazer para reverter o quadro?


 


Infelizmente não. Há o que fazer para evitar que os desastres se tornem cada vez maiores. O que fazer não é uma questão que se restringe ao Nordeste, mas é do mundo inteiro e depende de acordo entre países. É um processo de negociação. É necessário para limitar as mudanças climáticas ao máximo de dois graus até o final deste século. Para isso, é preciso reduzir as atuais emissões de gases do efeito estufa em 80% até 2050. Mesmo se começarem a adotar medidas hoje, as emissões continuam aumentando durante algum tempo. É preciso aumentar o conjunto de medidas hoje para que as emissões comecem a cair a partir de 2015. Se não conseguirmos isso em 2015, mas só em 2025, então mesmo que cheguemos a 2050 com os 80% de redução das emissões, devido ao atraso, ao invés de serem dois graus vão ser 2,5 graus. O Nordeste não tem contribuição muito grande, embora tenha muito a fazer — não estou dizendo que aqui só há produção limpa. O problema é conviver com a mudança, mesmo a de dois graus.


 


Como conciliar desenvolvimento e a necessidade de evitar que a problemática se agrave?


 


A questão é encontrar formas de promover desenvolvimento sustentável. É preciso analisar cada ação, cada política do ponto de vista da sua sustentabilidade, para evitar que o desenvolvimento provoque um aumento nas emissões e fazer com que o crescimento econômico traga condições de vida. A capacidade do semi-árido de sustentar a população está ultrapassada, por isso já há migrações hoje. Se uma parte fica mais árida, a região vai ter menos capacidade de manter pessoas lá. No cenário futuro, haverá menos gente morando no semi-árido. A preocupação é fazer as pessoas terem capacidade de ter um emprego competitivo.


 


Com as migrações e o inchaço nos centros urbanos, os recursos naturais atenderão à demanda?


 


Haverá redução na população que depende diretamente de recursos naturais. A economia deve se despregar na base de recursos naturais, havendo desenvolvimento e adoção de tecnologias para esses recursos serem utilizados de maneira mais eficiente. A número um é a questão da água, que hoje é um bem escasso, mas também sofre porque ainda há muito desperdício. A água tem que ser considerada um bem precioso e ser usada com muito cuidado.


 


De que maneira a segurança alimentar será afetada?


 


A produção de alimentos tenderá a cair e ficará cada vez mais incerta. A população precisará ter renda para comprar alimentos. O importante vai ser encontrar meios para assegurar renda, seja com transferências como as que já existem ou com oportunidades de empregos produtivos. Esse é um grande desafio para o desenvolvimento da região. O Brasil se beneficia de ser uma grande nação e poder complementar a renda dessas pessoas. Não vejo a segurança alimentar como ameaça muito grande, embora a produção de alimentos na região Nordeste, na economia de subsistência, tenda a cair.


 


Os prognósticos apontam novos desafios na saúde, como a ocorrência de dengue no Sul e o aumento de leptospirose. O sistema público de saúde, já sobrecarregado, tem condições de lidar com essa nova realidade?


 


Tem, mas é preciso continuar melhorando. O sistema público de saúde tem uma meta de atingir 100% de atendimento, mas muito a melhorar na qualidade. Mas como as mudanças vão afetar a saúde? Em termos de Brasil, está mais ou menos claro. O mosquito da dengue fica normalmente em região mais quente, por exemplo. Com o Sul do Brasil ficando mais aquecido, o mosquito da dengue pode descer e chegar àqueles estados. Um dos efeitos é esse: a movimentação entre as regiões. Quando se diz expansão de doenças é nesse sentido. Certos transmissores migrarem em função do clima. No caso de o Nordeste ficar mais seco, é um pouco mais complicado. O mosquito da dengue gosta de climas mais quentes, mas também de lugares molhados. Então, se chover menos, como vai ser? Isso a gente não pode responder ainda. Até me preocupam os estudos que dizem que vai ser isso ou aquilo, porque nem tudo está claro.


 


Com tantas mudanças, como fica o destino da preservação das tradições e da cultura dessas populações? Os valores correm o risco de se perderem?


 


Na verdade, essa população do Nordeste já migra muito, hoje e historicamente. As pessoas vão embora e aos poucos podem perder algumas características das suas raízes. Ou então se vão muitas pessoas para um mesmo lugar, como São Paulo, que tem 3 milhões de nordestinos, elas se agrupam e conseguem manter suas tradições em outros espaços. Mas com o esvaziamento do semi-árido há uma tendência de reduzir as manifestações culturais locais, a menos que isso possa fazer parte das políticas de desenvolvimento sustentável, que devem incluir a importância de manter e promover a cultura local e popular.


 


FIQUE POR DENTRO
Estudo revela que 483 mil pessoas deixarão NE


 


O estudo Migrações e Saúde, Cenários para o Nordeste Brasileiro, 2000-2050, financiado pelo Global Opportunities Fund (GOF), por meio da Embaixada Britânica no Brasil, mapeou as conseqüências sociais e econômicas das mudanças climáticas sobre a região. Em um cenário da pesquisa, cerca de 483 mil pessoas deixariam o Nordeste para morar em outras regiões brasileiras até 2050, devido à falta de condições de sobrevivência motivadas pelas mudanças climáticas, em especial o aumento de quatro graus Celsius na temperatura até 2070. Doenças como dengue, calazar, leptospirose e desnutrição demandariam mais custos, principalmente no Ceará.