Sapatos atirados contra Bush apertam pés da RSF
Estão chegando as festas de fim de ano. Já se entoam os cânticos de natal e os versos religiosos da “caridade com os pobres”, da esperança de que Papai Noel não esqueça de nenhum sapato, mesmo que seja só para deixar nele uma balinha ou um chocolate.
Publicado 18/12/2008 18:37
Em um divertida ironia desta situação, um pobre, um pouco antes da data específica, quis, sob os olhos das câmeras da mídia, dar um presente ao homem mais poderoso do mundo.
George W. Bush quis fazer uma viagem a Bagdá. A fez cautelosamente, de modo furtivo, sem bumbos nem trompetes. Sua visita surpresa não tinha sido anunciada, inclusive haviam divulgado em Washington uma agenda falsa com suas atividades para o fim de semana na capital americana.
Seu trenó pessoal, o avião presidencial Air Force One, decolou da base aérea de Andrews na escuridão da noite de sábado. Com ele viajaram vários jornalistas cuidadosamente escolhidos e informados da missão apenas no último momento.
Mas, em Bagdá, Bush deu de cara com um jornalista tão transtornado pela sorte de seu país, que confundiu o presente com os sapatos e converteu os sapatos em presente.
E, assim, quando Bush começava sua coletiva de imprensa diante de um auditório de jornalistas selecionados, credenciados, rodeados de gorilas com terninhos, um jornalista iraquiano, Muntazer al-Zaidi, conhecido correspondente de uma cadeia de TV local, tirou os sapatos e os atirou contra o presidente dos Estados Unidos da América. Bush esquivou-se dos projéteis, agachando-se por trás do púlpito.
Antes que o prendessem, derribassem, surrassem, o jornalista iraquiano ainda teve tempo de gritar “Aqui tens teu presente de despedida, pedaço de cachorro! De parte das viúvas, dos órfãos e de todos os que foram mortos no Iraque!”
Levaram Muntazar al-Zaidi à força e no caminho ficou um rastro de sangue, a partir do lugar onde os serviços de segurança o neutralizaram (depois se soube que também quebraram seu braço). Umas gotas de sangue e um nome na história de seu país.
Recuperado do susto, Bush disse que lhe parecia “estranha” a reação do jornalista iraquiano, cujas “queixas” não compreendia.
Realmente: “de que podemos reprovar Bush? pouca coisa, na verdade: um país devastado, petróleo saqueado, 800 mil mortos civis segundo alguns, um milhão segundo outros, entre eles parte da família de Muntazar al-Zaidi
Muntazar al-Zaidi se atreveu a algo com o que sonhavam muitos democratas autênticos de todo o mundo, amantes da liberdade, defensores dos direitos dos povos a decidir seu destino: obrigar o representante do Império a engolir sua soberba, a dobrar a espinha, a se esconder por trás de um móvel.
O gesto de Muntazar al-Zaidi está tão bem sintonizado com a opinião pública que o governo títere de Bagá, deposi de tomar a gravação de sua façanha, se viu obrigado a autorizar sua transmissão. Esta foi outra afronta a Bush, cujo exército, no Iraque, silencia desde 2003 os jornalistas que mostram o que não deve ser mostrado.
O correspondente da cadeia de televisão americana ABC explicou que Muntazar al-Zaidi “esquentou a cabeça”. Estes jornalistas iraquianos são uns tontos! (Não são como os nossos, que suportam heroicamente que lhes levem até a delegacia e lhes dêm uma surra, montando um tremendo escândalo em toda a Europa [1]).
O 43º presidente dos Estados Unidos, que termina seu mandato a sapataços, tinha ido ao Iraque dizer o contrário do que disse em julho de 2003, ou seja, que a guerra não havia terminado.
Em uma reente entrevista para a cadeia ABC, Bush havia confessado que “o maior erro” de sua presidência foi o “equívoco” de seus serviços de informação a respeito das armas de destruição em massa de Saddam Hussein.
A verdade é que os inspetores da ONU, depois de passarem anos procurando essas armas, disseram que não encontravam nada; que Colin Powell havia agitado na tribuna da ONU um frasquinho com um suposto produto mortal que o Iraque tinha, e depois soube-se que estava cheio de areia. Bush não foi vítima de um equívoco da CIA. Mentiu desde o princípio.
Se agora confessa que a guerra se baseou em falsos argumentos, que se vá desse país, e depressa, levando seus assassinos uniformizados. E que seu país pague reparações e que os criminosos paguem seus crimes.
Duzentos advogados disseram que desejam encarregar-se gratuitamente da defesa de al-Zaidi.
A Repórteres Sem Fronteiras tem uma organização, chamada Damocles, cuja função é defender nos tribunais os jornalistas encarcerados. É o momento então de ativá-la. Não para avaliar o lançamento de sapatos na cara dos conferencistas, mas sim o porque este jornalista não tinha outra forma de expressar nos meios iraquianos, para todo o mundo, o que pensava do chefe dos invasores e o que todos, exceto os colaboracionistas, pensam no Iraque.
Qual é o problema da RSF? Em abril de 2003, Bush proclamava que a guerra do Iraque havia terminado. Em julho do mesmo ano, a RSF publicava um relatório intitulado: “Os meios de comunicação iraquianos, três meses depois da guerra, Uma liberdade nova mas frágil”. Nele, lemos: “Há três meses que um vento de liberdade sopra sobre a mídia iraquiana”, assim como “os únicos que podem condenar os meios são o exército americano ou a Autoridade Provisória da Coalizão.
O decreto n.º 7 do administrador Paul Bremer, de fins de junho de 2003, proibe e reprime, entre outras coisas, a incitação à violência contra as forças da coalizão.
Falando em dinheiro: na mídia não se pode dizer nada contra as forças de ocupação. Muntazar al-Zaidi acaba de fazer pedacinhos dessa censura. Por isso é que há muita gente desejando defendê-lo.
A censura foi tolerada ontem por uma RSF dirigida por Robert Ménard. Mas a tal ONG tem um novo diretor. É sua oportunidade, então, de demonstrar que já virou história e já foi virada a página da conivência com o exército dos EUA.
[1] Caso de Vittorio Filippi, ex-diretor do francês Libération, detido por omitir-se de uma citação judicial.