Roberto dos Santos da Silva – A juventude precisa de oportunidade e não de cadeia
O limite da idade penal, ou simplesmente, a questão da maioridade penal, como é mais conhecido, é tema acalourado de debate que volta e meia é lançado à cena pública pelos meios de comunicação quando é cometida alguma infração brutal, de autoria ou co-aut
Publicado 28/01/2009 10:27 | Editado 04/03/2020 16:35
Dessa forma o tema da redução da maioridade reaparece como que catapultado por mais um fato novo, capaz de causar grande comoção – e audiência –, mesmo que atos violentos semelhantes, mas sem o mesmo apelo de ação demasiada cruel ou hedionda, como a mídia bem enfatiza sempre, ocorram todos os dias, vitimando moradores das periferias das grandes cidades sem ocupar o mesmo destaque na imprensa, senão, na forma sem rosto e sem biografia de estatísticas, excetuando os programas de jornalismo policial, que por sua vez banalizam essas infrações. E se o primeiro tipo de delito citado (de desmedida ou gratuita violência ou crueldade e que ocupa de forma privilegiada o tempo do noticiário geral) pode ser menos comum no dia a dia e em estatísticas do que a insistente e prolongada cobertura, bisbilhotagem e exploração jornalística do ocorrido dá a atender, falta esclarecimento de sua real freqüência reduzida, assim como consulta a outros especialistas que não sejam somente os de instrumentos repressivos, como de leis penais e órgãos de segurança pública.
Precisamos travar esse debate embasados em dados concretos da realidade que só nos ajudam a desmentir os falsos mitos. Estes mitos a que me refiro são criados em boa parte pelos grandes meios de comunicação que agem de maneira sensacionalista e se beneficiam nesses momentos espetacularizando a violência que lhes proporciona bons índices de audiência e assim contribuem para banalizar a própria valorização da vida. Assistimos então a artificialização de um clima de insegurança maior do que o real nos informa, a partir da teledramaturgização de pequenas tragédias reais promovida por grandes veículos comunicativos, causando comoção em amplos setores da população, em lugar de se consultar dados reais e estudos científicos sobre o assunto para informar os cidadãos. Da mesma forma, em geral, impera nessa grande mídia, um único posicionamento apenas sobre a questão, sendo diariamente apresentado, portanto, sem contraponto e com status de verdade nos lares e bancas de jornal. E este posicionamento já o conhecemos em seu teor apocalíptico e estigmatizador. Este engendra o discurso retrógrado, principalmente quando se trata de adolescentes pobres, da responsabilização unilateral do infrator, quem de fato é responsável pelo delito, mas desconsiderando ser isto resultado do conjunto de privações sociais e omissão do Estado, desviando o foco das causas reais tornando questão de polícia o que é mais amplo, como uma questão social e política, buscando na psicopatologia ou em preconceitos morais justificar o problema. Seu resultado esperado é o recrudescimento da repressão ao invés de se identificar as raízes sócio-econômicas do problema.
Mário Volpi, representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), reforça que é necessário derrubar os mitos em torno do problema, como o da periculosidade dos jovens, o da imputabilidade (que adolescentes não respondem por crimes na Justiça) além da idéia de impunidade. Vejamos senão em que se apóia o posicionamento retrógrado descrito acima, ou seja, os falsos mitos que servem como uma de suas bases. O primeiro mito é sobre a dimensão da delinquência juvenil, que pesquisa do UNICEF aponta se tratar da responsável pela minoria de delitos cometidos no país, concentrados principalmente nos grandes centros urbanos, onde justamente se agravam as más condições de vida desses jovens. Dos delitos cometidos pelos mesmos apenas cerca de 1% são contra a vida e a parcela mais significativa se refere a danos ao patrimônio e furtos.
Outra questão é que se procura desvincular infração juvenil da realidade social daqueles que a cometem. Grande parte dos jovens infratores que são atendidos pela Justiça da Infância e Juventude e que vão parar em Centros Educacionais são justamente os que vêm de famílias “desestruturadas”. Portanto muitas vezes possuem pai(s) alcoólatra(s), usuário (s) de substâncias psicoativas, são testemunhas e/ou vítimas de violência doméstica, quando não de abuso sexual, freqüentemente explorados para complementar o precário orçamento familiar e dessa forma ficando fora da escola, sem tempo de brincar, sem acesso à cultura ou tempo para a prática de esportes e por esses mesmos problemas acabam empurrados para fora de casa – esta precária e às vezes sendo um lugar de maus tratos – tornando a rua o seu lar. Entre os que permanecem em casa a privação de oportunidades e a tentação oferecida pelo tráfico de um caminho fácil para sobreviver recrutam alguns desses jovens para o crime.
O segundo mito e um dos mais recorrentes trata-se de enquadrar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como instrumento de impunidade, para “passar a mão na cabeça de menor”. Quem recorre a esse argumento demonstra que não se deu nem ao trabalho de ler o Estatuto. O ECA é considerado uma das leis mais avançadas do mundo – e é responsável inclusive por hoje alguns estudiosos repensarem a base de nosso código penal. Segundo Volpi ainda, a legislação do Brasil é “excelente” e a solução para a diminuição da prática de delitos por menores já está devidamente contemplada nela, não havendo necessidade da criação de outra lei.
Mas o diferencial é exatamente a condição peculiar de sujeito em desenvolvimento do adolescente, pois esta faz com que ele ainda não tenha sua compreensão de mundo inteiramente formada nem sua personalidade acabada. Contudo, ainda, entende-se que se pode e deve reconhecê-los como cidadãos de direitos e deveres, responsabilizando-os por seus próprios atos e prevendo medidas educativas e socializantes para fazê-los quitar cada dívida que adquiram com a sociedade. O ECA é, inclusive, em muitos casos mais rigoroso que as leis para adultos, por exemplo, nos casos de agressão, dano leve, ameaça e até estupro. Nestes casos se o infrator for adulto, mesmo que haja o flagrante para que o responsável seja penalizado faz-se necessário que a vítima ou um representante dela monte sua representação legal – providencie um advogado – e dê queixa, enquanto que se o responsável for um adolescente a autoridade judicial é obrigada a agir automaticamente.
Quem defende a redução da idade penal não aposta na recuperação de garotos, mas que estes uma vez tendo infringido as regras, serão eles sempre infratores e por isso está na prática defendendo que estes sejam isolados e excluídos do contato com o resto da sociedade, quando é justamente essa socialização, em condições educativas, que pode mudar as atitudes desses adolescentes.
Nosso sistema carcerário está superlotado e infelizmente não apresenta condições adequadas de “recuperar” ninguém, pois nele ainda se infiltram drogas e também facilitaria o recrutamento desses jovens pelo crime organizado. Não queremos jovens entrando em presídios por furto e saindo de lá como futuros assaltantes de banco. Volpi mesmo, quando teve que se pronunciar recentemente a respeito de projetos com o intuito de reduzir a idade penal para 16 anos ressaltou que “a inclusão de adolescentes de 16 e 17 anos no sistema penitenciário de adultos vai consolidar a participação deles no mundo do crime.”
Hoje os jovens infratores são submetidos a um regime diferenciado com sete medidas sócio-educativas progressivas que variam conforme a gravidade do ato cometido, sendo elas: advertência, obrigação de reparar o dano cometido, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semi-liberdade e internação ou privação de liberdade. Esta última estabelece que o adolescente autor de infrações mais graves deve permanecer privado de liberdade em Centros Educacionais por até três anos, medida que pode ser seguida de outras em regime de progressão como semi-liberdade e liberdade assistida, ou seja, na prática, o tempo para quitar sua dívida social pode ser ainda maior que somente o previsto na medida de internação.
Cabe aqui a reflexão de que a continuidade de problemas devido ao ingresso de jovens em práticas infracionais não passa simplesmente pela viabilidade do ECA, mas pelo debate e mobilização para que as garantias fundamentais de cada cidadão sejam respeitadas, pois se cada direito de cada criança e jovem for assegurado, certamente o índice de infrações juvenis cairá, como tem ocorrido onde os direitos básicos são respeitados.
Nossa juventude, em sua maioria, de origem popular, tão maltratada não necessita que lhe abram a porta de presídios como perspectiva e solução a problemas resultantes já de tantas violações de seus direitos, mas que lhes dêem escola de boa qualidade, acesso a cultura, esporte, emprego, saúde, segurança, e DIGNIDADE.
*Roberto dos Santos da Silva é cientista social, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV-UFC) e membro da Comissão de Movimentos Sociais do PCdoB – Fortaleza.