Aos 101 anos, mãe de Caetano e Bethânia lança suas memórias
Ela nunca pensou em ser mãe de artistas famosos, mas gerou e educou de dois dos principais nomes da música brasileira. Mãe de Caetano Veloso e Maria Bethânia, Dona Canô tem suas memórias registradas no livro Canô Velloso — Lembranças do Saber Viver
Publicado 22/03/2009 22:25
O livro contém 214 páginas, incluindo uma galeria de fotos da família, de amigos, de cidades do Recôncavo e de viagens acompanhando os filhos artistas. Foi lançado neste domingo (22), em Salvador. “Qualquer pessoa que conviva com ela, que se aproxime dela, vai perceber que é uma pessoa singular, diz Antonio Guerreiro de Freitas, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA
Segundo Freitas, Canô “tem uma memória extremamente viva. Não só guarda o passado, mas interage com tudo o que a rodeia: a igreja, o celibato, casamento. Tudo aquilo que faz parte do cotidiano de qualquer pessoa faz parte do dela também”.
As lembranças mais fortes de Claudionor Velloso (seu nome de batismo) são do próprio casamento, de mais de 50 anos, e da convivência com os filhos, netos e bisnetos. “No final do trabalho, perguntei a ela: ‘Do que a senhora chamaria mais atenção?’. ‘Meu casamento e minha família’, respondeu sem vacilar. Esse foram os tempos mais longos que ela viveu. Foi casada mais de 50 anos — e a família está aí até hoje”, conta o autor.
De acordo com Freitas, a matriarca acompanha de perto tudo o que está acontecendo com seus descendentes. “Ela sabe de tudo sobre o que está acontecendo com todos os filhos. Se estão gravando, viajando, onde estão. Acho que Maria Bethânia ligou para ela todos os dias em que gravamos as entrevistas”, lembra.
O autor também destaca a importância de Canô na vida de Santo Amaro da Purificação — a cidade onde nasceu e vive até hoje. Muito respeitada e dona de um extenso círculo de amizades, a centenária moradora volta e meia está metida com algum tipo de mobilização pela cidade. Já angariou fundos para reforma da principal igreja de Santo Amaro, mobilizou a população em apoio aos pescadores locais, organizou anualmente ternos de reis — dentre muitas outras ações —, transformando-se numa espécie de “embaixatriz” do município.
“Principalmente depois que ficou viúva, ela vive esse cotidiano com muito interesse. Muitos a procuram, e ela está sempre disponível. Ela fala de Santo Amaro com mais autoridade que as autoridades constituídas”, explica o autor. Segundo Freitas, na infância e em parte da adolescência, Canô passava as férias na casa-grande de um engenho. Lá, a matriarca dos Vellos teria tido desenvolvido grande sensibilidade para as artes.
“Ela recebia da dona da fazenda uma boa formação em música e teatro. Desde criança atuava em peças e sempre gostou de canto. Isso fez dela talvez alguém muito singular”, afirma Freitas. O autor conta que, logo cedo, ela percebeu que Caetano seria um artista, mesmo o próprio achando à época que não daria para a música. “Era um aéreo, nunca gostou de estudar, mas desenhava muito”, teria dito Canô em uma das entrevistas.
“Ela nunca pensou na vida em ser mãe de artistas famosos, mas essa vivência em sua infância foi capaz de despertar nela uma sensibilidade para perceber o lugar da arte na vida dos filhos”, revela Freitas.
Antonio Guerreiro de Freitas faz questão de diferenciar o seu trabalho do de um biógrafo. E explica por quê: “Gilberto Gil assinou contrato com a Companhia das Letras para publicação de biografia e escolheu um jornalista para fazer isso. Esse jornalista fez primeiro um cadastro com 800 nomes de pessoas que podem falar a respeito de Gil. Depois juntou fotografias, documentos. Enfim, uma biografia tem sempre alguém de fora que vai estudar um terceiro.
De acordo com o autor, um registro de memórias é bastante diferente. O autor faz um roteiro temático e o submete ao entrevistado. Então, em sessões sucessivas, pede ao entrevistado que fale sobre o roteiro. “Meu trabalho foi, principalmente, o de montar, organizar, estruturar esse roteiro”, diz.
No caso do livro de Canô, a narrativa se transformou em sete capítulos. No início de cada um, Guerreiro faz uma introdução contextualizando leitor. “Intervim muito pouco, tentei respeitar ao máximo a fala dela. O resultado foi um livro com linguagem bastante coloquial. As pessoas que já leram o livro disseram que parece que estar ouvindo ela falando.”
A primeira proposta de realizar o livro foi feita a Canô em 2006. “Fiz uma proposta e ela respondeu: ‘Por agora não. Não sei se vou completar 100 anos’. Retomamos o assunto mais tarde, pedi autorização aos filhos e, em março de 2007, começamos as entrevistas”, explica o autor.
Todas as sextas-feiras, Freitas entrevistava Canô. Foram cinco meses de trabalho e cerca de 40 horas de gravação. “Eu vinha há algum tempo trabalhando com memória de idosos. Havia feito trabalhos de memória oral com pessoas de, no máximo, 85 anos. Mas nunca tinha trabalhado com alguém de 100. Então, para mim, foi um grande desafio.”
Fonte: Terra Magazine