Braga: a crise sistêmica da financeirização
Pioneiro na construção da categoria “financeirização da riqueza” como um padrão singular de acumulação capitalista, o economista e livre-docente do Instituto de Economia da Unicamp José Carlos de Souza Braga (autor do livro Temporalidade da Riqueza
Publicado 28/03/2009 14:30
O FMI e do Banco Mundial passaram a prever um produto global negativo em até 2%. A China tenta alcançar 8%; a Índia chegar em 7%; a Rússia algo como 5,7%. No Brasil, as previsões mais sérias vão de 0,5% a 2%%. Noam Chomsky afirma que os Estados Unidos “provavelmente” sairão da crise melhor do que os países mais industrializados. Haverá ou não um novo “reequilíbrio mundial” econômico após a tempestade?
Qualquer previsão atualmente é um ato de vontade, de desejo que se quer que aconteça, seja positivamente, seja negativamente. A bem da verdade, é por isso que temos lido e ouvido uma quantidade de tolices que chegam a tirar a paciência do cidadão. De todo modo, arrisco a dizer que não está no horizonte um “reequilíbrio mundial” se entendermos por tal uma dinâmica econômico-financeira, um conjunto de regras nas relações internacionais, e um quadro para a regulação sistêmica que reordene globalmente o capitalismo.
O que vejo são tensões; interesses que ora se aproximam e ora se afastam entre as nações; entre os governos e as corporações; entre os governos e seus cidadãos e assim por diante. Não se trata apenas de retomar o crescimento. Isso até poderá ocorrer antes do que muitos imaginam considerando o gigantesco apoio dos Estados capitalistas aos mercados geneticamente instáveis e propensos a crises.
A questão maior é que o paradigma de desenvolvimento liberal globalizado que se implantou desde os 1970 entrou em crise sistêmica. Ele poderá ser remendado e seguir adiante, disso não tenho dúvida. Não estou entre os que acham que acabou o neoliberalismo de uma vez por todas!
Porém, em assim sendo, assistiremos aí pela frente mais do mesmo: a interminável dinâmica de expansão-instabilidade-crise — com as conhecidas e agravadas conseqüências sócio-econômicas e ambientais. Exemplo: enfrentar recessões com estímulos à indústria automobilística entope cada vez mais as cidades de automóveis e as pessoas ficam horas nos engarrafamentos. É obviamente ridículo como solução econômica e condição humana, civilizatória.
Queda acentuada do produto, extensão e durabilidade da estagnação econômica, desemprego em larga escala e deflação constituem as características fundamentais de uma Grande Depressão. Apesar do aperfeiçoamento dos mecanismos defensivos dos Estados capitalistas centrais, não lhe parece que as tendências atuais apontariam esse caminho?
Como disse acima em outras palavras, sou adepto da idéia de Keynes da incerteza radical segundo a qual o futuro é incognoscível em condições normais de temperatura e pressão. Imagine quando nos encontramos no desenrolar de uma crise sistêmica. Exagerando: “tudo pode ocorrer”. Em seu famoso artigo de 1937, John Maynard Keynes, ao responder a seus críticos, descartava o cálculo probabilístico para lidar com o “incerto”. Pois, para ele, o “incerto” é usado no sentido em que é incerta a perspectiva de uma guerra, ou a taxa de juros daqui a vinte anos ou a obsolescência de uma nova invenção.
Uma Grande Depressão ocorreria se as ações do Big Bank — banco central — e do Big Government — despesas expressivas dos governos — não funcionarem. A negativa a esta questão ainda não está determinada. Portanto, não creio que se possa estabelecer como líquida e certa uma tendência àquela depressão.
Em artigo ainda no prelo, você constrói a formulação “crise da financeirização sistêmica”, ao analisar a grande e grave crise capitalista dos dias que correm. Explique-nos melhor quais seriam as causas e a dinâmica “teórica” dessa crise.
O que está acontecendo nessa crise é da natureza do capital e do capitalismo desregulado. Não existe nenhuma deformação, nenhum desvio da essência do processo de acumulação tal como detectado por seus grandes intérpretes. Tanto da acumulação produtiva como da articulação daquela com a acumulação financeira e da autonomização dessa última.
O capitalismo está cada vez mais parecido com ele mesmo. Determinações econômicas e políticas têm concorrido para tanto. O período iniciado em 1970 que se designa como o do Capitalismo Financeirizado, ou do Capitalismo sob Dominância Financeira ou ainda o “Finance Led Capitalism”, já dura mais de 38 anos.
A esse ponto se chegou com a globalização financeira e o movimento de financeirização do capitalismo pelo qual a riqueza de papel se multiplica relativamente independente da valorização dos ativos produtivos, das variáveis reais. É um processo em que todos os atores estão envolvidos, até a corporação produtiva que incorporou a meta financeira em seus objetivos, nunca é demais ressaltar. Interpretações mais recentes e abundantes, sobretudo na mídia, põem ênfase, nos descuidos da regulamentação, nos desvios de conduta etc. Esses claramente existiram e foram responsáveis, mas é necessário penetrar nas raízes e ver como se moviam as estruturas desse capitalismo.
Como se sabe, os empréstimos imobiliários feitos por instituições americanas do ramo foram revendidos para financistas organizados em fundos de investimento, fundos de pensão, e “hedge funds” que encontravam garantia nas prestações dos imóveis e, em último caso, no próprio valor dos mesmos imóveis, que passaram a se elevar consideravelmente com a especulação que se armava. Uma perversa “inovação”, sabe-se, teve lugar quando semelhante operação passou a ocorrer com hipotecas para tomadores de “alto risco” — “subprime borrowers”.
A partir daí o percurso da inovação financeira tomou o rumo da geografia mundial sob o comando de grandes atores do mercado, e por isso engendrou-se uma turbulência global. Os empréstimos inicialmente eram reagrupados em títulos caucionados em hipotecas (MBS — Mortgage-backed securities) que possuem um mercado secundário altamente líquido e dinâmico nos Estados Unidos. Em seguida, esses MBS eram adicionados a outros títulos (débitos de cartões de crédito, aluguéis de automóveis, “recebíveis” de corporações, etc.) e reagrupados em outros títulos hipotecários caucionados. Eis mais uma operação de inovação financeira, cujo produto denominou-se collateralized debt obligations securities, as CDOs securities. Traduzindo: títulos de créditos estruturados (para os aplicadores), denominados de Obrigações de Débito Caucionadas, para, evidentemente, os devedores.
Essas invenções financeiras dos bancos de investimento eram confeccionadas para clientes específicos — nunca comercializadas —, não eram continuamente validadas através de um mercado secundário ativo. As autoridades monetárias e as relacionadas ao setor deixaram correr solto. Nada de fiscalização, intervenção ou prevenção foi feito, a despeito de todo o debate que anunciava o que estava por vir.
Agrava a crise a existência do que foi chamado sistema financeiro sombra formado por instituições financeiras envolvidas em operações altamente alavancadas e sem acesso aos seguros de depósitos e/ou operações de redesconto dos bancos centrais, segundo as normas vigentes antes da explosão da crise.
Nessa definição, enquadram-se os grandes bancos de investimentos independentes (brokers-dealers), os hedge funds, os fundos de investimentos, os fundos private equity, os diferentes veículos especiais de investimento ou seja organizações paralelas criadas pelos bancos, os fundos de pensão e as seguradoras. Com isso a incerteza radical pela opacidade da informação e aprofundou-se a crise de crédito e de liquidez.
O passo seguinte foi a transmissão dos problemas para a esfera produtiva, para a macroeconomia da renda e do emprego. Aí sim vem o dramático da história que é o juntar-se a perda do emprego e dos rendimentos assalariados à perda da moradia.
Cabe aos governos e à política controlar a economia e não o contrário.
Às vésperas da reunião do G-20, Alain Greenspan reafirma que a “bolha imobiliária” não poderia ter sido evitada e defende um “regime regulador” que estimule riscos “inerentes e necessários” ao capitalismo. Henry Paulsen, ex-secretário do Tesouro de Bush, quer “regulação” flexível, que inspire confiança dos investidores para “voltar a criar prosperidade” dos mercados. Afinal, o padrão de acumulação neoliberal tem chances de se soerguer?
É como disse acima: não nos iludamos achando que eles “jogaram a toalha” e que desistiram de encontrar uma nova fórmula de desenvolvimento liberal. O capitalismo e sua lógica e seus interesses não admitem “amarras” e seus ideólogos, dentre os quais sobressaem os economistas esgrimem argumentos surpreendentes para reanimar a economia liberal.
Ao mesmo tempo o governo Barack Obama anuncia através de seu secretário do Tesouro a intenção de fazer uma regulação e fiscalização consideráveis sobre o conjunto do sistema financeiro no que logo obteve reações de políticos republicanos. Creio que mesmo no interior do governo não haja consenso quanto a isso. Duvido que Paul Volcker não tenha suas objeções a uma regulação desse tipo.
De todo modo as condições objetivas evidentemente não favorecem o “laissez-faire” e a pergunta mais realista e evidente é: até que ponto se conseguirá avançar na instituição da disciplina financeira nos âmbitos nacional e internacional?
O Brasil — afirma o banqueiro Roberto Setúbal, presidente do Itaú-Unibanco — terá crescimento “próximo de zero” neste ano. Segundo ele, a redução dos spreads (diferença dos juros que o banco toma emprestado e empresta) é “questão técnica”; as críticas à banca privada em forjar altas taxas de juros “é injusta com o sistema financeiro”. Sem estranhar tanto cinismo, é possível um Projeto de Desenvolvimento Nacional permanecendo na condição de refém do sistema financeiro brasileiro?
Penso que não. Sem finanças industrializantes, ou seja, sem um sistema financeiro interno solidário com a industrialização o Projeto de Desenvolvimento é vulnerável. O BNDES não pode fazer tudo, já tem feito demais. O Brasil tem que livrar-se do que chamo de triângulo de ferro da política econômica que é essa combinação de metas de inflação- câmbio flutuante- superávit-primário.
Agora, o momento é outro, é o de adicionar desenvolvimento à estabilidade de preços que terá de ser mantida. O governo precisa reduzir juros e reduzir o estoque da dívida pública para que a política monetária e fiscal sejam solidárias com o projeto de desenvolvimento senão fica difícil.
O gasto público produtivo na infra-estrutura econômica e social tem que deslanchar de vez e isto requer um novo enfoque às finanças públicas, à estrutura tributária, à atuação dos bancos públicos etc.
O governo pode negociar com os bancos privados e os detentores de grande riqueza o fato de que eles deixarão de ganhar com os títulos da dívida pública para ganhar com os financiamentos aos investimentos privados produtivos e públicos de uma nova onda de desenvolvimento na qual o Brasil já se encontra desde 2004. Instrumentos fiscais-tributários podem ser manejados nessa direção. A interrupção do crescimento ocorrida desde o último trimestre de 2008 em razão da crise internacional pode ser corrigida por políticas internas ousadas e ofensivas no sentido de dissolver o triângulo de ferro já enferrujado.
Nas relações econômicas internacionais impõe-se a defesa de nossas reservas em moeda forte e atenção com a taxa de câmbio que não pode ficar ao sabor das especulações de todo tipo.
Finalmente, cabe ressaltar, a propósito do tema sistema financeiro nacional, que ele foi vulnerabilidade significativa nos dois “ciclos” de industrialização estratégica que o Brasil teve — o Plano de Metas de JK na década dos 1950 e o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) no governo Geisel, nos 1970.