Movimentos enfrentam ataques conjuntos da grande mídia
A trincheira está aberta. Neste começo de 2009, veículos da grande imprensa iniciaram uma nova cruzada contra entidades organizadas da sociedade. “Os movimentos sociais estão sofrendo um verdadeiro ataque midiático, com pouca fundamentação, muita espec
Publicado 28/03/2009 19:20
Há uma regra geral em cada reportagem ou artigo do gênero. Ainda que se exponha a versão das entidades, o texto é escrito de maneira enviesada e ambígua, de modo a conduzir o leitor a conclusões preestabelecidas pelos jornais. Foi o que fez o repórter Leandro Colon, do Correio Braziliense, em matéria sobre repasses do governo federal à UNE desde 2003. Já no título — “R$ 10 milhões para amansar a UNE” —, o jornal não esconde a intenção de desmoralizar a entidade e atribuir uma vocação mercenária a suas lideranças. É provável que nunca, em 72 anos de história, a UNE tenha se articulado como hoje, em tantas frentes de atuação. Mas a matéria do Correio Braziliense dá a entender que a entidade, ao contrário, está paralisada, e suas lideranças, vendidas.
“Prova” dessa promiscuidade, diz o jornal, é que a presidente da UNE é filiada ao mesmo partido que um dos ministros do governo Lula. Há dois parágrafos no texto para explorar a “acusação”, sem levar em conta o caráter suprapartidário da entidade e sua independência frente a governos. O primeiro trecho minimamente imparcial fica só para o sétimo parágrafo. “No segundo semestre do ano passado, a UNE recebeu R$ 2,8 milhões do Sistema Único de Saúde (SUS) para fazer uma caravana pelo país. O objetivo foi abrir um debate e realizar ações ligadas à saúde”, registra o texto, que — coisa rara — cita em seguida uma frase literal de Lúcia: “Percorremos os 27 estados discutindo cultura, saúde e educação, visitando 41 universidades públicas e privadas no Brasil”.
Os argumentos pouco consistentes do Correio Braziliense foram denunciados pela UNE, por meio de um comunicado esclarecedor: “A matéria é irresponsável. Insinua que há irregularidades ou favorecimento à UNE sem apontar fatos concretos. A UNE, assim como qualquer organização civil, tem toda a legitimidade de pleitear verbas públicas e o faz com toda a responsabilidade e dentro dos parâmetros legais”, registra Lúcia. “A matéria se confunde, portanto, com um artigo de opinião, sustentada apenas no juízo de valor do autor”.
O jornal O Estado de S.Paulo dispensou a linguagem maliciosa do Correio Braziliense, mas bateu na mesma tecla quatro dias depois. Com o título “Lula aumenta repasse para UNE em 20 vezes”, a matéria do diário paulista divulgou com mais fidelidade a versão da entidade. “Tanto é o cuidado com o dinheiro público que nunca houve uma rejeição de prestação de contas da UNE'', disse Lúcia ao repórter Guilherme Scarance. A presidente da entidade reafirma a autonomia do movimento estudantil. “Não há constrangimento para iniciativas de oposição”, agrega ela, lembrando o movimento “Fora, Meirelles” — pela demissão do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles — e os protestos contra o corte de R$ 1 bilhão no orçamento da Educação. Para explorar a matéria, o Estadão lançou uma enquete em seu site, com a pergunta “Na sua opinião, a UNE ainda representa os estudantes?”. Até 15 de março, a maioria dos mais de 5.600 votantes tinha assinalado a opção “sim”.
As críticas ao movimento sindical partem de pressupostos igualmente deturpados. Em 1º de março, a Folha de S.Paulo sentenciou: “Crise revela despreparo de sindicatos”. O jornal via nas centrais de “falta de sintonia com o cenário econômico e social”, além de “atrelamento” ao governo. No Estadão de 14 de março, o jornalista Mauro Chaves destilava mais preconceito: Lula teria conseguido “amaciar as forças sindicais”, introduzindo no movimento um “neopeleguismo galopante, deslavado e ultrajante”. Chaves mentiu ao dizer que “a mobilização das centrais sindicais”, em meio à crise, “foi zero”. Seu próprio texto cita mais um “protesto contra os juros altos'' na frente do Banco Central. Os dois jornais paulistas fazem coro ao desqualificar medidas democráticas — como o reconhecimento jurídico das centrais e o repasse a elas de parte do imposto sindical. “As centrais começaram a receber uma fatia do imposto em 2008, mas as manifestações não diminuíram em momento algum”, afirma Artur Henrique, presidente da CUT (Central Única dos Trabalhadores).
O fato é que, para provar suas teses, Folha e Estadão não apresentam dados concretos nem tece comparações sobre a atuação das centrais antes e depois da eclosão crise. A Folha, um pouco mais preocupada, edita opiniões de “especialistas” e líderes sindicais. Mas nenhum dos jornais diz que historicamente — e não apenas hoje — o movimento sindical sofre mais restrições em cenários de crise econômica e desemprego. “Na fase da bonança, há uma correlação de forças mais favorável para mobilizarmos os trabalhadores e pressionamos pela ampliação de direitos e conquistas. Com a crise, surgem demandas mais urgentes, como a luta contra o desemprego”, diz Wagner Gomes, presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
Em defesa dos sem-terra
Os jornalões só deixam a ironia à parte quando o assunto é o MST. Não há concessões na mídia a um movimento que luta pela reforma agrária e prega a ocupação de terras contra uma das maiores injustiças do país — a estrutura rural latifundiária. De forma sempre oportunista, a grande imprensa pode até inflar centrais e entidades estudantis em momentos muito peculiares, como as manifestações de 1992 pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Mello. Com os sem-terra, nada feito. Não é por outra razão que a mídia aplaude a repressão organizada por autoridades como a governadora Yeda Crusius (PSDB-RS) — que ordenou à Brigada Militar que impedisse qualquer manifestação sem-terra e fechou escolas itinerantes do MST. O Zero Hora, maior jornal gaúcho, é um dos mais entusiasmos defensores da repressão.
Em janeiro, quando o movimento completou 25 anos, Folha e Estadão fizeram editoriais provocativos. No jornal da família Mesquita, afirma-se que “o MST tem desde sua origem um componente político-ideológico que extrapola a simples reivindicação fundiária”. O Estadão acusa “a turba paramilitar emeessetista” de “práticas explícitas de violência” — mas a morte a sangue frio de 19 sem-terra em Eldorado do Carajás, em abril de 1996, não aparece no texto retrospectivo. Já a Folha, em 21 de janeiro, vislumbra um movimento “encurralado pela própria decadência”, “protagonizando mais ações estapafúrdias e desconexas”.
Nada comparável à superexposição que os veículos da grande mídia fazem às declarações reacionárias de Gilmar Mendes contra o MST. Adotando um comportamento incompatível com o cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Mendes convocou jornalistas, reiteradas vezes, para criminalizar o movimento e respaldar a perseguição. Primeiro, acusou o governo Lula de fazer “repasses ilícitos” a grupos que, a seu ver, praticam “ações ilegais”. Ele e a imprensa se esqueceram de informar que o MST, por princípio, não usa dinheiro público em ocupações de terra. Mas Mendes não parou: cobrou ação do Ministério Público e acusou um procurador-geral da República de proteger os sem-terra. O motivo: o procurador defende o Estado Democrático de Direito e não aceita a criminalização automática do MST. Mendes anunciou ainda que Conselho Nacional de Justiça (CNJ) — presidido por ele — recomendou aos tribunais brasileiros que julguem, prioritariamente, ações sobre conflitos fundiários. Mendes falava. A grande imprensa ecoava.
Na opinião de João Paulo Rodrigues, membro da direção nacional, Gilmar Mendes é “o novo líder da direita brasileira” — um “Berlusconi tupiniquim”. Em entrevista promovida pelo MST, o líder sem-terra denunciou que Mendes faz “intenso ataque ideológico à esquerda e aos movimentos sociais”. O presidente do STF, segundo João Paulo, “é ágil para defender o patrimônio, mas lento para defender vida”, “ataca os povos indígenas, os quilombolas, os direitos dos trabalhadores, os operários e defende os militares da ditadura militar”. A UNE — que participa com o MST da Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) — saiu em defesa dos sem-terra. “Os mesmos que criminalizam o MST se calam perante os massacres de camponeses — que continuam ocorrendo como outrora em Eldorado dos Carajás”, registra uma nota assinada por Lúcia Stumpf. “Repudiamos o papel vergonhoso empreendido por importante parcela da mídia nacional que busca criminalizar o MST.”
As manifestações em solidariedade aos sem-terra se multiplicaram, partindo de entidades do campo, passando pelos membros do CMS e partidos políticos, até personalidades e autoridades progressistas. “Alguém já viu, por acaso, este presidente do Supremo se levantar contra a violência que se abate sobre os trabalhadores do campo, ou denunciar a grilagem de terras públicas, ou cobrar medidas contra os fazendeiros que exploram mão-de-obra escrava?”, indagou Dom Xavier Gilles de Maupeou d’Ableiges, presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “O Estado brasileiro seria muito melhor se as autoridades se limitassem a exercer suas próprias atribuições'', disparou o procurador-geral da República Antonio Fernando de Souza. “Cada autoridade age como quer agir, mas tenho a responsabilidade de só falar aquilo que eu posso provar.”
Uma nota do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social não poupou críticas ao papel lastimável da “mídia corporativa” nesses episódios. “Estas articulações políticas conservadoras, às quais os grandes grupos de comunicação brasileiros estão historicamente ligados, tornam estes veículos incapazes de refletir os problemas do povo brasileiro”, afirmou o grupo. “Todos os espaços dedicados às denúncias contra o MST tratam o tema como um caso de polícia, mas não há uma reflexão mais profunda sobre a questão agrária no Brasil, que aborde os sem-terra como um problema social, herdeiros de uma dívida histórica do Estado brasileiro.”