Dragão de mil faces: Centro Dragão do Mar comemora hoje 10 anos

Marcado por polêmicas durante a construção, o Dragão do Mar completa dez anos. A data terá programação especial

Em agosto de 1997, começavam as atividades do Instituto Dragão do Mar (de Arte e Indústria Audiovisual), responsável pela formação em núcleos de Dramaturgia, Vídeo, Gestão Cultural, Artes Cênicas, Artes Plásticas e Design. Investindo pesado na formação em um setor que ainda hoje, no Estado, se mantém como uma mina pouco explorada, sob a cumplicidade de alguns daqueles mesmos gestores e até de alguns ex-alunos, o Instituto veria nascer, nos dois anos seguintes, sua principal estrutura edificada, o Centro Dragão do Mar, projetado pelos arquitetos Delberg Ponce De Leon e Fauto Nilo, em uma antiga área de galpões da Praia de Iracema, 30 mil metros quadrados entre as avenidas Monsenhor Tabosa e Almirante Tamandaré.


 


A cidade recebeu o Dragão com empolgação, até mesmo porque as obras já vinham alterando a rotina boêmia do lugar desde setembro de 1994. Até mesmo porque não tínhamos nada parecido. Assim, bares como o Besame Mucho e o Coração Materno viam seus últimos dias, enquanto os R$ 17 milhões gastos no projeto se transformavam em duas salas de cinema, museus (o de Arte Contemporânea e o Memorial da Cultura Cearense), café, livraria, um anfiteatro, um espaço multi-uso, duas passarelas (sob uma delas, mais um palco aberto; sob a outra, um painel de Aldemir Martins) e ainda um teatro e até mesmo um planetário e uma Praça Verde. Se é verdade que pouco a pouco o Centro Dragão do Mar dividiria as atenções com outros centros e espaços culturais, incluindo casas de show e bares que vêm e vão, é incontestável que, pelo menos durante seus cinco primeiros anos de atividades, o Centro se configurou como o principal difusor de cultura do Estado. O que foi motivo para críticas, justamente, à centralização da cultura, ao contrário da democratização difundida em seus projetos.


 


Lançado durante a gestão do Secretário de Cultura Nilton Almeida (mas idealizado pelo ex-secretário Paulo Linhares), o Dragão teve como seu primeiro diretor-presidente Pádua Araújo, tendo diretora de programação cultural Elisa Gunther e o jornalista Cláudio Pereira na direção de Comunicação e Marketing. Tudo sob a gerenciamento da organização social Instituto de Arte e Cultura do Ceará (IACC), administrado através de um conselho formado por representantes do poder público e da sociedade civil. “Produzir e difundir o conhecimento e prestar informações nas áreas de arte e cultura”, estas eram as premissas do IACC.


 


No começo de 1999, foram anunciadas atividades como a do cinema e do Museu de Arte Contemporânea, além do projeto Dragão Musical, que traria os maracatus Az de Ouro e Vozes da África. O equipamento cultural, que já se transformara em atração turística, apresentaria os programas Sábado Acústico e o retorno da peça Os Iks, um dos marcos do lançamento experimental do novo empreendimento. Abril chegava anunciando o show do baixista cearense Nélio Costa, lançando o CD “Das Origens”, Antonio Bandeira e Raimundo Cela expunham juntos no MAC, enquanto Roberto Benigni entrava em cartaz em uma das salas do Espaço Unibanco: “A Vida é Bela”.


 


Nesse clima, após sucessivos adiamentos e de uma “fase experimental” que duraria nove meses, finalmente a inauguração do “Grande Dragão Branco” se deu, e ninguém mais se lembrou de falar em atrasos.


 


Nova realidade


 


Na época da inauguração do Dragão, Maninha Morais, sua atual presidente, dirigia o Theatro José de Alencar, até então considerado o mais suntuoso equipamento cultural do Estado. ´Naquele momento, o Dragão era um projeto de vanguarda, onde nós iríamos oferecer à população de Fortaleza, do Ceará, um equipamento que tinha no seu projeto original, pensado, todo um espaço para a criação, a formação e a difusão da cultura para pessoas de diferentes formações e gerações´, considera a gestora.


 


Ela própria admite, no entanto, que este projeto não conseguiu ser totalmente cumprido, principalmente após a desestruturação do processo de formação de mão-obra especializada para o setor cultural. ´Hoje, a gente analisa que ele cumpre muito bem o seu papel de difusor da cultura, mas ele não se sustenta só com a difusão da cultura. Ele precisar ter resgatado este seu braço de difusão da criação e da formação. Um equipamento desta natureza tem que dialogar com a sociedade.


 


Ainda gerido pelo Instituto de Arte e Cultura do Ceará, através de um contrato de gestão orçado em R$ 600 mil ao mês, o Dragão continua sendo, na visão de Maninha, o principal equipamento cultural do Estado. ´O Dragão é o principal equipamento cultural do Estado, sem tirar a importância dos demais. Ele veio para ser esse equipamento pela sua própria dimensão. Mas digo isso sem tirar a importância do TJA e de outros equipamentos como o Museu da Imagem e do Som, o Sobrado José Lourenço. O Dragão não é mais nem é menos´.


 


Para chegar a esta conclusão, Maninha analisa a quantidade de acessos efetivos ao equipamento, chegando a um milhão durante o ano de 2007, e quase um milhão e 150 mil, no ano passado. ´A tendência é aumentar, o governo não tem medido esforços para isso, como comprovam todos estas ações que vão dar ao Dragão este espaço de discussão sobre os vários segmentos da arte e da cultura´, diz, referindo-se à série de iniciativas que começam a movimentar o espaço a partir do próximo mês, numa programação que será anunciada somente hoje.


 


Maninha considera que as ´ações´ do projeto Ano 10 do Dragão do Mar podem contribuir para tornar o equipamento ainda mais utilizado. ´Consideramos que este projeto é um marco, um resgate do projeto original´. Maninha ressalta que seminários e mostras em torno de linguagens como as artes plásticas e a música, por exemplo, deverão dar início a um processo que revitalize a idéia de retomar o processo de formação mais intensiva do público atual. ´Ainda estamos discutindo como será o modelo para este braço da formação. Naquele momento, nenhum equipamento realizava essa função na sua essência. Hoje avaliamos que o Dragão tem que realizar os cursos básicos, já feitos por organizações não-governamentais, mas deve buscar também uma formação mais ampla”.


 


´Temos tido a preocupação de estimular as atividades teatrais locais nesses horários´, diz. ´E também baixamos o valor das pautas, dentro de uma política de democratização do acesso. Hoje a pauta é praticamente subvencionada´, enfatiza, em torno de uma constante reclamação dos artistas da cidade.


 


'Mudaria no varejo, não no atacado'


Entrevista – Fausto Nilo / Repórter – Dalwton Moura


 


Fausto Nilo: ´Para mim, a preservação dos sobrados, a instalação do Aquário e da Caixa Cultural já significam que o Dragão teve capacidade de funcionar´
´Acho que o Dragão funcionou e que há motivos pra comemorar´. A afirmação é de Fausto Nilo Costa Júnior, vencedor, ao lado do colega de arquitetura Delberg Ponce de León, do concurso de projetos para a obra que se tornaria o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Falando ao Caderno 3, Fausto reflete sobre os 10 anos do equipamento cultural, suas contribuições para a cidade, suas conquistas, limitações e perspectivas


 


Dez anos depois pode-se dizer que o Dragão cumpriu os propósitos para os quais foi concebido, como trazer novo fôlego e conectar os espaços naquela área de Fortaleza? Em que medida? Com que acertos e que limitações nesses 10 anos em que o projeto foi ´testado´ pela cidade?


 


Na realidade, a questão tem que ser entendida com um cuidado que o Ceará não pratica e o Brasil, muito pouco. Hoje em dia eu tenho amadurecido muito essa questão do urbanismo, que tem quatro bases: política, social, ambiental e econômica. É necessário que o urbanista compreenda que as implementações que são relacionadas com mudanças na qualidade em uma cidade passam pela conjugação desses âmbitos. As metrópoles deram uma surra muito grande nas técnicas urbanistas durante muito tempo. Mas hoje em dia já há muito amadurecimento sobre essas técnicas, e uma delas diz respeito à reabilitação de áreas de declínio. Popularmente chamam de revitalização, mas não gosto desse termo, porque não é rigoroso, em termos de urbanismo. O tecido velho, por esvaziamento econômico, deslocamento de atividades-âncora, perde suas propriedades, seu valor comercial, os proprietários ficam com vontade de derrubar. Mas, ao mesmo tempo, a gente quer a memória preservada. Esse paradoxo, esse desencontro só pode ser resolvido se você dá umas injeções. É como a acupuntura: você coloca em velhas estruturas o que em urbanismo chamamos ´catalisadores urbanos´.


 


São ações para reverter esse processo… Como agora se fala no Oceanário, como um projeto que vem causando polêmica pelo custo, mas que vem sendo defendido como uma continuidade do processo pensado para aquela área…


 


São novas oportunidades, que se supõe que estejam previstas, num bom planejamento. Nelas, o velho e o novo se juntam, como sempre foi. Em Paris você vê arquitetura de vários períodos. E reabilitando as pessoas não querem mais derrubar. É como um palimpsesto, com v árias camadas. Quando houve o concurso do Dragão do Mar, entramos com esse critério: como se inserir na situação existente, da Monsenhor Tabosa com grande fluxo de pessoas que percorriam a pé a avenida, chegavam naquela praça e voltavam, e ali embaixo uma orla abandonada e em ruínas. Apostamos na recuperação da orla e na estabilidade da Monsenhor Tabosa. Aí veio a lógica do nosso projeto como um conector. Não como um edifício convencional. O projeto do Dragão foi executado, na época, dentro da disponibilidade de recursos. Foram executados o Dragão propriamente e sua outra cabeça, que era a Ponte dos Ingleses, então interditada. Entre esse pólos havia uma seqüência de ofertas, atrativos intermediários, pra que a pessoa tivesse interesse de ir prosseguindo, independente de automóveis. Implantar ali um processo de ´tráfego calmo´, que não fecha a rua, mas cria meios para que o conforto principal seja pro pedestre. Essa era a idéia. Mas só foi realizado o Dragão e a ponte. E o Aquário era um dos componentes previstos no projeto.


 


É uma idéia da qual o Governo do Estado afirma não abrir mão, mas que vem causando polêmica…


 


Essa posição existiu antes também na idéia do Centro de Eventos, que seria no Poço da Draga. Agora, o Aquário não é projeto nosso, não quero me referir a ele. Mas a existência de um Aquário é uma conclusão a que vários grupos chegaram para aquela área. De maneira que sou a favor da geografia de localização e da construção do equipamento, porque ele solidifica as bases para o desenvolvimento de um bairro de caráter cultural, que é a vocação mesmo ali, e turístico, dentro da visão do turismo que a gente acha correta no urbanismo, que inclui a comunidade local, e nunca uma ilha de visitantes. A ilha de visitante é que leva ao turismo sexual, a tudo o que a gente sempre combateu.


 


Mas, nessa discussão sobre o Oceanário, não fica parecendo que ele viria para resolver todos os problemas daquela região? Problemas que podem ser mais complexos?


 


Se você perguntar se só o Dragão e o Aquário resolvem, eu responderia que não, que ainda está incompleto, que tem que ter mais coisa ali. Principalmente estimular uma nova inserção de moradias, dar um sentido comunitário mais forte. Porque erroneamente se expulsou a comunidade que morava ali. Na época, eu disse isso. Quanto mais se expulsava, mais a qualidade desse turismo ia piorar. É reconhecido: onde se tem focos de convergência entre comunidade e turista, tem um turismo de qualidade. O Dragão contribuiu com essa reabilitação? Acho que sim. Mas, embora muita gente não saiba, os processos de reabilitação são lentos. As pessoas pensam que é coisa de dois anos. Não é assim. Eles são lentos, porque têm que configurar um benefício legítimo a todos.


 


A seu ver, o Dragão atingiu esse objetivo? E quanto ao que aconteceu com a Praia de Iracema? O grande motivo seria esse afastamento da comunidade, ou faltaram mais ações do Poder Público?


 


O Dragão foi configurado com o objetivo de atrair pessoas de várias idades e de várias faixas sociais. E isso se pode conferir todo fim de semana ali. E felizmente ele se legitimou: ele não é um prédio que alguém deseje derrubar pra fazer um supermercado. Então, foi esse o ideário. Existe o problema da Praia de Iracema, mas isso pode ser restaurado. Agora, precisa de uma posição muito firme quanto à mobilidade urbana. Desde o pedestre até o transporte público e individual. A Praia de Iracema tem muitas inconveniências. A expulsão dos moradores, a iluminação precária, o tráfego de passagem do porto que fica ali dentro, da Almirante Barroso, com impacto muito ruim ali, caminhões a toda hora… Para mim, a preservação dos sobrados, a instalação do Aquário e a instalação da Caixa Cultural já significam que o Dragão teve capacidade de funcionar. A recuperação do calçadão que a Prefeitura quer fazer, a recuperação da Ponte Metálica… Quer dizer, tem como ir solidificando isso. Aí as pessoas voltarão a morar, você pode colocar regras, evitar paredão de som, desestimular tráfego de automóveis, estimular transporte local. É isso que faz uma zona turística ser internacionalmente qualificada e útil também para seus moradores. O Dragão é um indês, como se dizia antigamente: é um ovinho ali pra ver se as galinhas põem. E tá segurando a onda. Eu sempre digo, eu e Delberg, que somos autores do projeto: todo projeto tem defeito. Se eu pudesse reformar muita coisa no Dragão, reformava. Mas arquitetura não é brinquedo, tem dinheiro público, uma responsabilidade grande. Mas eu fico tranqüilo em saber que o atacado dele até hoje não se comprovou como errado. Os probleminhas dele são no varejo. Eu mudaria no varejo, não no atacado. O que é trágico em arquitetura pública é quando um projeto fracassa no atacado. Aí dá vontade de o arquiteto mudar de cidade. Mas imagino que não foi o caso. Veja, por exemplo, que o Dragão do Mar, no seu projeto, teve momentos que ele foi maior do que aquilo. Aí admitiu-se reduzir, porque a gente ficou com medo da escala ser muito grande. E hoje a maior reclamação é a exigüidade dos espaços, de serem pequenos, do teatro ser pequeno. Eu acho bom, porque ruim seria se fosse o contrário, se estivesse superdimensionado. E o Dragão pode crescer, com esses outros equipamentos.


 


É um processo que leva tempo, ao contrário de algumas soluções que às vezes aparentam ter sido rápidas, como em Lisboa com a Expo, em Barcelona com a Olimpíada, por conta de grandes eventos…


 


Leva tempo. Todas as cidades do mundo onde se promoveu reabilitações urbanas, as coisas levam tempo. Em muitos casos são com mais propósitos, com cronogramas mais rigorosos, e mesmo assim são prazos de décadas pra você perceber resultado. Há quanto tempo São Paulo procura resolver sua área ali da Estação da Luz, no Centro? Essas soluções nessas cidades, com esses eventos, elas ganham mais visitantes e mais renda. Agora, o cuidado é se fazer de forma que o evento acabe e aquilo fique útil para seus residentes. Por isso sou radical nessa idéia de que o espaço para atrair visitantes tem que ser o mesmo para atrair moradores. Então, acho que o Dragão funcionou, acho que há motivos pra comemorar.


 


Você já passou por problemas como ter os seus shows no anfiteatro atrapalhados pela música que vem dos bares no entorno do Dragão. Mas como é que você se sente como usuário do Dragão? Como pessoa que vai lá, por exemplo, em um final de semana, atrás de algo interessante para ver?


 


Eu vou uma vez ou outra. Acompanho visitando e acompanho as estatísticas de visitação que eles fazem desde o começo, e que são muito boas, sempre ascendentes. Eu tava lá na exposição do Rodin e me emocionei vendo crianças suburbanas a um metro de distância do ´Pensador´. Porque isso confirma a idéia do equipamento: ele é o lugar que apresenta situações casuais de impacto com essa coisa. Isso foi um propósito do projeto e acho que deu resultado. Agora, há pequenos detalhes… Eu hoje, se fosse desenhar, faria uma indicação mais clara da entrada do Memorial. Muita gente passa direto ali, aquilo é um defeito na gramática. Acho que o teatro, que eu já usei, a retaguarda do teatro é pequena, a infra-estrutura de camarim é muito sacrificada. Eu faria isso bem melhor hoje em dia, porque tenho mais trato com a matéria. Faria uma retaguarda melhor no anfiteatro também. Felizmente, foi complementado o anfiteatro. E o Dragão, a gente vem fazendo uma monitoria pós-uso. Vendo o que o prédio pede, coisas que na época o dinheiro não deu. E já fizemos uma parte disso. A parte ligada à acessibilidade, que foi pioneira, mas vai melhorar mais ainda. Me arrependo muito de por economia não ter posto dois elevadores. Foi feito um. Mas mesmo assim aquela rampa permite, você vê grávidas, velhinhos… É um prédio acessível. Mas tem muita coisa que eu refaria: a Praça Verde era pra ser um ´playground´ e acabou descoberta como lugar de shows. Mas precisa ser complementada pra isso, com um palco fixo com qualidade, pra ópera, balé, e fechamentos melhores que aquelas madeiras. Essas coisas estão sempre em avaliação.


 


Nessa questão das despesas, à época houve críticas quanto a ser um megaprojeto, em um Estado pobre…


 


Mas ele é um prédio pobre. A construção dele foi na época um metro quadrado baratíssimo, milagroso até. Ele tem acabamentos franciscanos, de propósito, como é a arquitetura popular do Ceará. Só usa ar condicionado nos escritórios, em pouquíssimos lugares. É um prédio sustentável, e por isso ganhamos o direito de usar aquela iluminação à noite, com a economia do dia. E é um prédio que foi feito pra dialogar com essa luz aqui, por isso fotógrafos do mundo inteiro produzem fotos dali. Acho que ele dialoga bem com a brisa, aproveita sua própria sombra e cria lugares que propõem você se encontrar, bater papo. Também revelou-se um edifício democrático, no sentido das diferentes culturas, acolher várias tribos. Tem espaços para o que foi pensado, mas deixa folga pra que as pessoas inventem outras atividades. Vi um dia um maracatu naquela passarela, e aquilo ali me emocionou demais. Essas coisas foram mais ou menos planejadas com a expectativa de produzir esse resultado. Agora, tem muita coisinha pra melhorar, e pacientemente estamos sempre próximos ali, esperando essas oportunidades de recursos pra fazer essas complementações.