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Merten: Caro Francis, a velha polêmica vai recomeçar

Foram 19 anos de convivência quase diária. Paulo Francis telefonava para Nelson Hoineff todas as noites e, quando não o fazia, era Nelson quem tomava a iniciativa. Quando Francis vinha ao Rio, ficava no apartamento de Hoineff. Quando Hoineff ia a Nova

Caro Francis será exibido sexta-feira no Festival de Paulínia, integrando a mostra competitiva de documentários. O próprio Hoineff diz que se trata de uma carta ao amigo. O afeto, porém, não o levou a fazer um retrato “chapa branca” de Paulo Francis. Seria indigno do próprio personagem.


 


Embora tenha convivido tanto tempo com o homem (e o mito), Hoineff confessa: “Nunca consegui estabelecer o que seria o limite entre o personagem e seu intérprete. Todo mundo é multifacetado, mas o Francis era mais. E ele era 100% consciente da persona que construiu no jornalismo impresso e na TV.”


 


Para o cineasta, o aspecto mais interessante — ou controvertido — do personagem é que Francis estava sempre adiante de sua época. “Ele foi trotskista numa época em que as pessoas não eram ou tinham medo de ser de esquerda. Quando ser de esquerda virou quase uma palavra de ordem, ele se transformou num conservador.”


 


Francis marca outra mudança de eixo. A intelectualidade brasileira sempre foi, tradicionalmente, voltada para a cultura europeia e para a francesa, mais do que a inglesa. Francis pertence a um momento em que a ordem do mundo está mudando. Há um deslocamento, um interesse maior pela cultura norte-americana. Ele radicalizou.


 


O jornalista Daniel Piza, colunista e editor executivo do Estado, colabora no roteiro do filme, além de dar seu depoimento. Ele diz que tudo em Francis era exacerbado – “Não bastava ser pró-cultura americana. Era preciso exagerar.” Também colunista do Estado, Nelson Motta, outro entrevistado, que dividiu com ele a bancada do Manhattan Connection original, acha um absurdo dizer, como fazia a esquerda brasileira, que Paulo Francis se havia vendido aos norte-americanos.


 


A polêmica sempre acompanhou Paulo Francis. Ele brigou com o ator Paulo Autran, com o jornalista Caio Túlio Costa, com o ministro Gustavo Krause. Com exceção de Autran, que já morreu, os outros discutem suas brigas com o jornalista diante das câmeras de Nelson Hoineff. (A briga com Autran mereceu um comentário de Fernanda Montenegro.)


 


Francis disse que era absurdo um nordestino caipira como Krause ser ministro. O próprio Krause, que poderia ter ódio de morte de quem investia contra ele, admite que era mesmo caipira e diz que é importante haver gente como Francis, que não reza pelas normas nem cartilhas. Masoquismo do ministro? Lucidez?


 


Ocorre algo curioso, neste momento, na carreira do diretor Nelson Hoineff — que, originalmente, também é jornalista. Hoineff tem dois filmes prontos, um sobre Chacrinha, Alô, Alô Teresinha, e o outro, Caro Francis. Nenhum deles é rigorosamente biográfico. São mais interpretativos. “O do Chacrinha demorou mais para ser feito do que eu esperava. O do Francis, ficou pronto mais rapidamente.”


 


Alô, Alô Teresinha ganhou quatro prêmios no Cine PE — Festival do Recife, incluindo melhor filme para os júris oficial e popular. Caro Francis vai a Paulínia. Mais importante — ambos são filmes sobre transgressores, que marcaram a história da comunicação no País. Chacrinha jogava bacalhau no público e expunha a miséria cultural brasileira na TV, transgredindo em pleno regime militar. Impulsionou as carreiras de Roberto Carlos, Fábio Jr., Agnaldo Timóteo e outros, mas sua buzina ainda ressoa hoje, 30 anos depois, nos ouvidos dos calouros a quem desclassificou.


 


Nada mais diferente de Chacrinha do que Paulo Francis. Nada…? Paulo Francis não jogava bacalhau no público, mas seus textos falados ou expressos continham outro tipo de provocação. Na abertura do documentário, quando a câmera está sendo montada, ele diz que seu objetivo é mostrar que um filmezinho doméstico pode ser mais bem-feito do que todo o cinema brasileiro. Provocação pura.


 


Alô, Alô Teresinha tem estreia apontada para 30 de outubro. Caro Francis ia estrear antes, em agosto, mas agora o Festival do Rio e a Mostra de São Paulo querem o filme e a estreia vai ser jogada para adiante. Retratos de dois provocadores, duas provocações de Nelson Hoineff. Paulo Francis morreu de infarto em fevereiro de 1997. Era colunista do Estado e tinha opinião sobre tudo. A partir de amanhã, em Paulínia, muito será dito sobre seu legado.