No extremo Oriente russo, a tentação do 'made in China'
Trancada há vinte anos, a fronteira entre a Rússia e a China, um pontilhado de 4.192 km no mapa, quando olhada de perto é o palco de um incessante vai-e-vem. Vinte e um “portões” controlam a abertura entre os mundos eslavo e asiático. Um deles, o peque
Publicado 12/07/2009 19:23
Mapa do leste da Ásia, com destaque para a fronteira leste entre China e Rússia
Desde 2001, os residentes russos e chineses das províncias fronteiriças não precisam mais de vistos para atravessar, contanto que viajem em grupo, o que não é feito para contrariá-los. Por cerca de 5 mil rublos (R$ 286), as pessoas de Vladivostok compram uma excursão de compras para Suifenhe, com 200 mil habitantes, a primeira cidade chinesa logo após a fronteira, verdadeiro templo do consumo.
Em vinte anos, a população de Suifenhe aumentou dez vezes. Hotéis, agências de viagem, centros comerciais surgiram graças ao dinheiro dos turistas russos. “É difícil não gostar da China! Ali fazemos compras, tratamentos, estudamos. Nossos jovens aderiram ao chinês, eles estão pegando mais o avião para Pequim do que para Moscou”, conta Andrei Kalatchinski, um universitário de Vladivostok que se tornou a alma da Associação da Amizade Rússia-China.
Quando Andrei era criança, ele lembra, os dois povos se viam com hostilidade. Em 1969, Pequim e Moscou se encontravam a dois passos do conflito armado. Houve confrontos entre guardas de fronteiras ao longo dos rios Amur e Ussuri.
Desde então, as brigas se amainaram. Passando uma borracha sobre sua rivalidade, a China e a Rússia normalizaram suas relações após a dissolução da União Soviética. A fronteira comum foi demarcada em 2005. Fato excepcional, a Rússia devolveu a seu grande vizinho a pequena ilha de Tabarov e a metade da ilha Bolshoi Ussuriysk, no rio Amur. “A China não é mais vista como uma ameaça”, comemora o universitário.
A prova é que o filho de Andrei estuda em Pequim e “está encantado”. Do lado dos russos, a maioria das escolas e das universidades oferece cursos de chinês. “Antigamente, o japonês era a língua do futuro, hoje é o chinês”, garante Liza. Essa morena supermaquiada, equilibrando-se sobre saltos de 4 centímetros, faz aulas de mandarim no Instituto Confúcio, o equivalente chinês da Aliança Francesa.
Ela vai com frequência para o outro lado. E o que a agrada do outro lado? “A modernidade das cidades e o fato de que tudo cabe no meu bolso”. Ela sabe de alguns mais ousados que chegaram a fincar raízes na China. Em Vladivostok, algumas imobiliárias perceberam esse pequeno mercado e estão oferecendo apartamentos e casas de férias em Suifenhe, Hunchun ou Dalian. A busca pela “casa oriental de seus sonhos” pode ser feita pela Internet (www.vostdom.ru).
“O custo de vida é menor, a qualidade dos serviços é melhor do que na Rússia”, afirma Suei Hueilin, editor de um jornal de classificados em Vladivostok. Oriundo de Suifenhe, ele se estabeleceu na Rússia dois anos após a repressão na praça Tiananmen. Sem ser um dissidente, Suei, então estudante em Pequim, estava “dentro do movimento”. Em 1991, a Rússia, recém-saída do totalitarismo soviético, era para ele uma terra de liberdade e de promessas. Vendo seu futuro comprometido na China, ele deu o grande salto em direção a Vladivostok, a cidade portuária do Extremo Oriente russo no Pacífico. Ele nunca tinha visto o mar. Logo de cara, tudo o agradou, “a cidade, as pessoas, a cultura” e aquela que se tornou sua esposa.
O casal tem duas filhas. Suei é cidadão russo, suas filhas também. Elas vão com frequência para a casa de seus avós em Suifenhe. O pai delas quer que elas “se sintam à vontade dos dois lados”. Na verdade, os casamentos mistos são bastante raros. “Nossas tradições são muito diferentes”, ele conta.
Entre os dois mundos, o contraste é grande. “Aqui, tudo fica estagnado. Lá, tudo se move”, resume Suei. A demografia é vertiginosa. Do lado russo, eles são 7 milhões de habitantes para toda a Sibéria e o Extremo Oriente. Em frente, 148 milhões de chineses povoam as províncias de Heilongjiang e de Jilin. É mais do que a população de toda a Federação Russa – 141,9 milhões de habitantes em 1º de abril.
Seriam a pressão demográfica e a forte presença econômica fontes de preocupação? Talvez em Moscou, não em Vladivostok. “O povo russo não tem medo dos chineses. São os funcionários públicos, as pessoas no poder, que têm. Nossas populações convivem, se comunicam. Quando as pessoas se conhecem, os mal-entendidos se desfazem”, afirma Alexei, que trabalha em uma agência de turismo.
Na cidade, procura-se desesperadamente por essas hordas de chineses descritas em Moscou como uma ameaça à integridade da Rússia. Onde estão eles? Nos mercados. Nos últimos anos, o Extremo Oriente e a Sibéria foram inundados por produtos “made in China”. Em Vladivostok, em Ussuriysk, em Khabarovsk, imensos bazares oferecem tudo o que a região, pouco manufatureira com suas usinas militares herdadas da URSS, é incapaz de produzir: roupas, sapatos, eletrônicos, eletrodomésticos, carne, frutas e legumes.
Quase todo o pequeno comércio está nas mãos dos chineses. Sua presença é tolerada. Eles recebem vistos de negócios, não permissões de trabalho. Esse estado semi-legal faz deles presas fáceis para os policiais e funcionários do governo, sempre em busca de pequenos acordos.
Três anos atrás, o Kremlin se preocupou com o domínio chinês nos pequenos negócios. Agora, a lei obriga que se contratem vendedores russos. Logo cedo pela manhã, nas alamedas do mercado Sportivny, em torno do velho estádio em ruínas de Vladivostk, os comerciantes chineses recrutam. Como a mão-de-obra é rara, os negociantes descobriram um truque. O texto da lei menciona “os mercados a céu aberto”: então as barracas foram cimentadas ou dotadas… de um toldo.
Outro quebra-cabeça para as autoridades, a maioria dos artigos oferecidos à venda chegavam nos últimos anos nas bagagens dos turistas russos vindos da China, autorizados a trazer 35 kg de artigos diversos, livres de impostos. Os comerciantes chineses tiraram vantagem disso, recrutando russos a torto e a direito para serem “sacoleiros”. Nascia uma nova profissão : “pomogaika”, literalmente “aquele que ajuda”. Em Pogranitchny, o último grande município russo (130 mil habitantes) antes da fronteira, “todo mundo aderiu”: “Os pais precisavam de braços, eles nem mandavam mais seus filhos à escola”, se revolta Natalia Viktorovna, uma jovem loira sorridente encarregada das relações exteriores na prefeitura.
Mas, desde janeiro, a festa acabou. Os agentes alfandegários receberam ordens de desencorajar esse comércio desenfreado. Pacotes são revistados, às vezes apreendidos. O agente deve determinar se a mercadoria é para uso pessoal ou comercial. Os habitantes de Pogranitchny pagaram o pato, e com abusos. “Um casal de aposentados foi molestado por causa de um televisor comprado na China. Os agentes queriam saber como, com suas modestas aposentadorias, eles haviam feito tal compra”, relata Natalia.
Nessa Rússia da Ásia que não produz grandes coisas, a revenda de produtos chineses, de carros japoneses, de materiais de construção sul-coreanos é a atividade número um. “Não temos indústria, e poucas empresas mistas. Custa caro produzir aqui, e de qualquer forma, nunca poderíamos competir com a China. Ela é a oficina do mundo, nós fornecemos as matérias-primas”, lembra Mikhail Terski, diretor do Centro de Pesquisas Estratégicas do Pacífico.
Nem sempre os empresários chineses são bem-vindos. Xu Rongmao, presidente do grupo Shimao, levou a pior. Ele investiu em um grande projeto russo-chinês, a construção de uma zona comercial franca na fronteira. Os chineses pensavam grande, um gigantesco hotel foi construído em um piscar de olhos. Mas, uma vez terminado o cinco estrelas, e até mesmo inaugurado, não se falou mais em zona franca, os russos recuaram.
Sing Heilung, proprietário do mercado de Kitai Gorod, nos arredores de Vladivostok, não teve mais sorte. Nos últimos tempos, começaram a chover fiscalizações, notificações e multas sobre sua sociedade mista. Pressionado, ele acabou voltando para a China. “Os subornos não conhecem a crise. O apetite dos funcionários públicos é grande, e há menos lucros para dividir, os negócios se tornam difíceis”, resume Wen, gerente de um fast food em Kitai Gorod.
Wen acreditou na grande expansão das pequenas e médias empresas russo-chinesas. Mas seu entusiasmo minguou. Por ter servido como intermediário em transações comerciais, ele sabe que as barreiras administrativas, a falta de transparência e a corrupção são entraves para os negócios. E na China é diferente? Sim e não. “Lá, os subornos são moderados. Aqui, é incomparável”.
A corrupção e a falta de transparência são como vacinas destinadas a imunizar a região contra a concorrência. “Um meio hostil desestimula a concorrência. Se as regras forem transparentes, os outros vão se instalar. Não sou a favor”, confirma Mikhail Terski, o diretor do Centro de Pesquisas Estratégicas do Pacífico. “Ver chineses, coreanos ou japoneses virem aqui fazer negócios não me agrada muito”.
Tradução: Lana Lim