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'Cristina é a 1ª a atacar problemas da Argentina desde 1983', diz escritor

O jornalista e escritor argentino Horacio Verbitsky, figura da luta pelos direitos humanos, faz uma análise do panorama político do país nas últimas décadas e acredita que o atual governo está empenhado em resolver os grandes problemas da população.

O escritório de Horacio Verbitsky parece um verdadeiro esconderijo, cheio de tesouros pessoais acumulados ao longo dos anos. Sem janelas, as paredes cobertas de livros, discos e fotos, o local é um refúgio secreto no coração de Buenos Aires, em frente à Praça dos Tribunais. Uma faca antiga está cravada em uma viga do teto, enquanto um aviso ameaça de represálias qualquer tentativa de roubar um livro da biblioteca.

O jornalista, figura da luta para os direitos humanos e autor de vários livros sobre a ditadura e a política argentina desde o restabelecimento da democracia, recebe a reportagem de Opera Mundi no seu escritório, debaixo de uma foto de Marilyn Monroe e outra do mais famoso cantor de tango do país: Carlos Gardel.

Na conversa, Verbitsky analisa a derrota do casal Kirchner durante as últimas eleições legislativas e a tentativa da direita de enfraquecer a presidente. Ele também relembra fatos importantes da história da Argentina e explica de onde vem a atual força do movimento agropecuário e as alianças que a elite construiu com a Igreja e a mídia.

Apesar de fazer algumas críticas a Néstor e Cristina Kirchner, ele acredita, porém, que a atual presidente é a primeira a combater os verdadeiros problemas da Argentina, como a desigualdade na distribuição da renda, desde o restabelecimento da democracia, em 1983.

Leia a entrevista completa com o jornalista Horacio Verbitsky:

O resultado das eleições legislativas de junho passado foi um golpe para o governo de Cristina Kirchner, sobretudo para seu marido, Néstor, que perdeu na província de Buenos Aires para um candidato de direita, o multimilionário peronista Francisco de Narváez. Como explicar esta derrota um ano e meio apenas depois da vitória de Cristina à Presidência?

Um ano e meio parece pouco tempo, mas politicamente foi uma época muito intensa, marcada pelo embate com o setor agropecuário. Há que se lembrar que, de março a junho de 2008, os ruralistas realizaram um locaute como protesto contra o aumento das chamadas “retenções” [impostos sobre as exportações de soja, trigo, milho e girassol].

Naquela época, o aumento foi derrubado no Congresso, provocando uma grave crise política, porque, diante do empate na votação do projeto entre os senadores, a decisão final coube ao vice-presidente, que, na Argentina, também preside o Senado. E ele votou contra o governo. Esta crise institucional, num contexto de bloqueios nas estradas pelos ruralistas e de desabastecimento, acelerou a queda na popularidade da presidente Cristina.

Os ruralistas conseguiram virar a principal força política de oposição na Argentina?

Não é de hoje que o setor agropecuário, que aqui é chamado de “campo”, é um bloco social importante na Argentina. Mas nunca havia tido uma expressão política tão clara como agora. E isso se explica por vários fatores, entre os quais a aliança com as figuras mais importantes da mídia, e com a Igreja.

Voltemos um pouco na história. É importante destacar que, ao contrário do Brasil, por exemplo, a oligarquia agropecuária argentina não foi marcada por um modelo colonial. No último quarto do século 19, foi uma classe moderna que diversificou seus investimentos na indústria e nos mercados financeiros, com uma abertura para as multinacionais.

Conseguiu impor uma Constituição, a entrada de capitais estrangeiros e a imigração massiva para trazer braços de Europa. Movida pelo afã de se integrar ao círculo dos franceses, ingleses e alemães, esta elite afastou-se da igreja católica. A Constituição liberal estabelece a liberdade de culto – era uma medida necessária também para atrair os imigrantes.

Em 1884, o então presidente liberal, Julio Roca, expulsou até o delegado do Vaticano para Montevidéu, porque ele era contra o ensinamento laico nas escolas argentinas. No começo do século 20, a Igreja Católica estava totalmente marginalizada do poder econômico.

O que provocou a reaproximação entre esta burguesia e a Igreja?

Foi a mudança das relações de força nos campos político e social, devido à chegada de centenas de milhares de trabalhadores estrangeiros. Para a elite, os imigrantes eram concebidos como braços prontos a trabalhar de maneira subordinada e em silêncio. Descobriu-se, porém, que tinham também corações e cérebros. A maioria provinha de setores sociais com uma boa formação política, muitos eram socialistas, anarquistas.

Aqui, criaram o primeiro sindicato de América Latina e o primeiro jornal obreiro revolucionário, editado em alemão, ainda no final do século 19. A partir de 1910, o ano da comemoração do centenário da Revolução de Maio, o primeiro passo para a independência, o cenário político estava muito tumultuado, com mobilizações sociais, atentados com bombas e imposição do estado de sítio.

Em 1912, a elite aceita uma mudança das regras eleitorais, que passaram de um sufrágio censitário ao voto universal para homens – Perón introduziu o voto feminino em 1947. O então presidente Saenz Peña esperava assim aliviar as tensões sociais e diminuir o crédito dos grupos anarquistas. O cálculo não deu certo. Na oposição, o radicalismo virou o movimento político mais poderoso e popular do país, e ganhou com amplas margens a primeira eleição presidencial na qual se aplicou o voto universal, com o presidente Hipólito Yrigoyen, em 1916.

Naquele momento, os conservadores perceberam que não podiam transformar seu poder fático em um poder legítimo e constitucional. Isso diferencia a Argentina de Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai.

Qual foi a reação a esta falta de representação política?

A elite, que se confunde na Argentina com a burguesia agropecuária, procurou expressar seus interesses de maneira mais eficaz que na competência eleitoral. Nessa busca, teve o apoio valioso da Igreja Católica. Os dois coincidem na aversão à democracia representativa. A burguesia porque perde as eleições, a igreja católica por razões ideológicas. Após um quarto de século de ruptura, os empresários voltaram a se acercar da Igreja.

Ela providenciava também algo que não tinham: um discurso político baseado na origem divina do poder, o peso da tradição, a importância da ordem pública. Paralelamente, a igreja, que já tentava recuperar o terreno nas classes populares com a criação de círculos obreiros católicos, começa a se interessar por um novo ator que até então tinha um papel político secundário: as Forças Armadas. Com as capelas castrenses, a ideia era infiltrar os quartéis com uma ideologia que buscava tirar a legitimidade da democracia representativa. Isso produz o primeiro golpe de Estado do século, em 1930. Ou seja, quando o governo eleito contradiz interesses econômicos da elite, aparece o partido militar.

De 1930 a 1990, a Argentina sofreu pelo menos um golpe por década (alguns bem sucedidos, outros falidos), às vezes, até dois ou três golpes por década.

Este partido militar sobreviveu à última ditadura, que acabou em 1983?

Justamente, não. Com o final catastrófico desta última época militar (30 mil mortos ou desaparecidos, recessão econômica, guerra das Malvinas…), já não dava mais para recorrer aos militares. A partir de 1983, começa um novo processo: a elite se lança em atrai forças políticas tradicionais populistas, como o radicalismo e o peronismo.

O primeiro presidente da democracia, o radical Raul Alfonsin, teve disputas acirradas com os poderes fáticos: contra os militares, quando se iniciaram os juízos contra a junta, contra a igreja, com o debate sobre o divórcio, e contra a sociedade rural, sobre o tema das “retenções”, exatamente como hoje. Ele os enfrentou, mas cometeu graves erros políticos. O mandato dele acabou num desastre.

Acho que o final apocalíptico do mandato de Alfonsin era um recado para seu sucessor, Carlos Menem: “é este caos que lhe espera, se continuar com ideias de redistribuição das riquezas”.

Menem entendeu perfeitamente a situação e se aliou com todos os domínios de poder: as forças armadas e os empresários. Desta maneira, a direita tinha de novo encontrado uma maneira de co-governar o país durante os dois períodos de Menem e uma parte do mandato de Fernando de La Rua.

A posse de Nestor Kirchner, em maio 2003, quebra este governo de fato?

Totalmente. Após a crise de 2001, uma das piores da história do país, começa com Néstor Kirchner uma situação de embate comparável àquela na época de Alfonsin. Kirchner revoga as leis de anistia que os militares tinham obtido no final dos anos 80. Em um gesto simbólico forte, o governo retoma o prédio da escola da Marinha [ESMA, Escola de Mecânica da Armada], que foi o maior centro clandestino de tortura durante a ditadura, e reformou a Corte Suprema.

Insistindo sobre a necessidade de acabar com o emprego informal e precário, Kirchner reforçou também o papel do Estado na economia, nacionalizou várias empresas que foram privatizadas durante o governo Menem e ajudou os sindicatos a voltarem a ser atores centrais.

Quando Cristina chegou ao poder, em 2007, ela foi ainda mais longe com três medidas consideras pela elite como imperdoáveis: o aumento das retenções sobre as exportações de grãos, a nacionalização das administradoras de fundos de pensão, conhecidas como AFJP, e a reforma da lei de radiodifusão. Ou seja, atacou três poderes centrais na Argentina: o campo, os bancos e a mídia. Sem falar da Igreja, que virou uma das principais opositoras ao governo.

Como se articulam os interesses do campo, dos bancos e da mídia?

Existe um nível de cumplicidade enorme, particularmente entre o campo e a mídia. Para começar, há que lembrar que os principais diários nacionais, ou seja, Clarín e La Nación, são sócios da Expo Agro. Trata-se de um evento anual, que dura três semanas, e gera mais de 300 milhões de dólares por ano. Além disso, os dirigentes dos respectivos jornais pertencem diretamente ao agronegócio.

O vice-presidente do Clarin, por exemplo, é um grande proprietário de gado, inclusive criou uma nova raça capaz de fornecer uma ótima carne até em regiões consideradas hostis. É também um grande exportador de arroz. Por isso, os grandes jornais têm uma razão evidente para apoiar as reivindicações do campo contra o governo.

Como o projeto de reforma da lei de radiodifusão de Cristina Kirchner foi acolhido pela mídia?

Muito mal pela grande mídia, muito bem pelos veículos independentes e alternativos. É um projeto de democratização do espectro midiático, hoje muito concentrado. Por exemplo, o grupo Clarín é dono de um diário que tem seu nome, mas também de vários jornais no interior, de dezenas de rádios, de canais na televisão aberta e a cabo, agência de notícias, e também produz grande parte dos conteúdos distribuídos por outros canais. É um poder enorme.

O outro objetivo do governo é acabar, pela primeira vez, com as violações à lei atual, que sempre ficaram impunes. Por exemplo, o canal América 24 é controlado por Francisco de Narváez, milionário que derrotou Kirchner nas últimas eleições. Mas, segundo a lei, nenhum político tem o direito de controlar um órgão midiático. Esse tipo de irregularidade é comum: entre o uso de laranjas e engenharia financeira, muitos políticos são donos de canais de televisão ou de rádios.

Este projeto é contrário aos interesses do Clarín?

Ainda mais se o governo não aceita as exigências do Clarín, que nesse caso específico seria poder entrar no mercado das telefônicas, o que permitiria à empresa uma diversificação para o chamado “triple play”: mídia, internet e telecomunicações. Mas, até agora, o governo se recusa a dar este presente para o Clarín.

Então, o grupo usou de sua estratégia habitual, que sempre deu certo. No começo de um governo, as maneiras são cordiais. Depois chegam as exigências segundo os interesses financeiros do grupo. O governo resiste, porque esta medida viola a lei, porque tem outros amigos que prefere favorecer. Logo, o Clarín lança uma guerrilha, publicando artigos com uma visão muito crítica, totalmente unilateral. Em geral, o governo capitula.

Qual foi a política dos governos de Néstor Kirchner e Cristina em relação a esses poderes midiáticos?

Foi ambivalente, sobretudo na gestão de Néstor Kirchner – Cristina, neste ponto, é muito mais racional. Ele os enfrentou de uma maneira muito torpe, e logo deu alguns presentes para eles que foram erros graves. Por exemplo, concedeu uma extensão de dez anos à concessão do canal do Clarín, quando a data de vencimento ainda estava muito longe.

Também o fez com outros pequenos canais, que tinham problemas financeiros graves. Com a certeza de ficarem no ar, tiveram mais facilidades para encontrar outros credores e renegociar as dívidas. A ideia dos Kirchner era favorecer uma burguesia nacional frente aos grandes atores concentrados. Fracassou.

Basta ver o caso do América 24, que foi ajudado na época. Desde já, a televisão faz campanha contra o governo. Outro detalhe: o dono do canal, Francisco de Narváez, é também sócio da sociedade rural.

Quando Cristina decidiu anunciar o aumento das retenções contra as exportações de grãos, ela havia entendido claramente a força de seus adversários?

Acho que não. Acho que a decisão foi uma mistura de ingenuidade deste ponto de vista, mas também de necessidades fiscais. Era também visto como uma maneira de conter os preços dos alimentos que, na época, disparavam, já que alguns exportadores podiam desistir de vender para o exterior por preferir o mercado interno.

Há de se lembrar que esta medida era boa e legítima. A ideia era aumentar de maneira substancial os impostos quando o preço mundial estivesse muito alto, e diminuir quando caísse. Muitos economistas recomendam esta medida para evitar a chamada “doença holandesa”, que provoca a perda de competitividade de outros produtos de exportação.

Aliás, se os ruralistas não tivessem ganhado esta briga o ano passado, eles teriam benefícios bem mais altos hoje, já que os preços caíram. Mas não é uma coisa racional. Eu me lembro muito bem de um programa de televisão que participava em 2002, no qual o convidado era o então presidente da sociedade rural.

Naquela época, o tema das retenções já era muito discutido. De repente, o apresentador do programa lhe pergunta sobre as possibilidades das retenções chegarem a 25%. O presidente da sociedade rural começou a rir, como se fosse uma piada e concluiu: “Neste caso, acabamos com todos eles”. Acho que a Cristina não assistiu a este programa.

O outro erro grave do governo foi não buscar alianças dentro do setor agropecuário, pelo menos entre os menores. Não dava para enfrentar todos. O resultado é que, com o apoio da mídia, o campo construiu uma imagem idílica, como se eles fossem a única força viva da nação, que dá de comer às crianças e empregos aos trabalhadores. Evidentemente, é um mito. Mas funciona.

Como é hoje a relação de forças entre o governo e os ruralistas?

Após a vitória do ano passado, eles tentam agora montar um projeto de poder inspirado, dizem eles, no modelo brasileiro da bancada ruralista. Ou seja, já que não dispõem de uma formação política própria, ajudam a eleger vários deputados, senadores e governadores de partidos diversos, que trabalham por seus interesses. Isso nunca existiu na Argentina moderna, e tem que se dizer que o modelo parece funcionar muito bem no Brasil.

Por outro lado, a sociedade rural conseguiu uma hegemonia muito forte sobre a totalidade do setor. Claro que sempre teve uma capacidade de lobby importante, mas antes de 2008 não tinha nenhuma aptidão para as mobilizações nas ruas. Agora, eles ordenam bloqueios das estradas, organizam o desabastecimento das cidades, ameaçam fisicamente os deputados da base governista quando voltam às suas províncias…

Tudo isso vem da Federação Agrária, outro grande ator do setor que nunca havia se aliado de tal maneira à sociedade rural. Inclusive, o presidente da Federação, Eduardo Bussi, está elaborando todo um discurso populista novo. Aparece com os ombros cobertos pela bandeira argentina e incorpora elementos de discurso dos progressistas, mas tudo a serviço dos ruralistas mais ricos. É muito perverso. Agora, a grande preocupação dele, que foi manifestada na inauguração da sociedade rural, é a pobreza na Argentina. E toda a culpa é dos Kirchner.

Os ruralistas não são os únicos, há também a Igreja. Há duas semanas os jornais relataram que o papa denunciou durante um discurso o “escândalo da pobreza na Argentina”…

Claro que existem muitos pobres na Argentina. Mas, primeiro, nem a Igreja nem a sociedade rural nunca se preocuparam com eles. Segundo, depois de cinco anos de crescimento econômico chinês, que melhorou consideravelmente o nível de vida, a crise econômica provocou uma nova queda, mas bem menos grave do que aquela que a Argentina conheceu no passado, ou a que afetou outros países da região.

Esta história do papa é uma grande manipulação. Por sinal, Jorge Casarote, o bispo que dirige a comissão pastoral social, que está encarregada das relações com os sindicatos, as empresas e todos os fatores econômicos, tem como principal colaborador laico uma figura importantíssima do agronegócio: Eduardo Serantes, que é também presidente da Cáritas Argentina. Falam de pobreza, mas fazem negócios. É uma trama muito difícil de romper.

Por que Cristina perdeu capital político em tão pouco tempo?

Por causa da briga com o campo e a mídia e também porque o casal Kirchner cometeu erros importantes. Com o crescimento da economia e a política de redistribuição da renda favorecida pelo governo, chegou um momento que o nível dos salários voltou ao nível prévio à crise de 2001.

Aí, os setores mais concentrados decidiram que já bastava, e que a participação do trabalho na formação do capital não ia crescer mais. Como estão numa situação de oligopólios, começaram a gerar inflação, que era também favorecida pela forte demanda. As respostas do governo – estamos falando da gestão de Néstor – foram erradas.

Primeiro, tentou controlar a subida brusca dos preços com acordos com os maiores distribuidores, o que teve como efeito reforçar a concentração. Dentro da cadeia de produção, favoreceu os que distribuíam contra os que produziam: os moinhos contra os produtores de trigo, os frigoríficos contra os produtores de carne, os supermercados contra as lojas pequenas.

Assim, durante todo o governo de Nestor, e no começo do mandato de Cristina, tinham anúncios permanentes de preços rebaixados.

Também fica difícil medir exatamente a inflação na Argentina.

Exatamente. Acho que a maquiagem dos índices de inflação do Indec [Instituto Nacional de Estatísticas e Censos] foi o pecado maior dos Kirchner. É uma política selvagem, bárbara, cujo impacto foi devastador durante os anos seguintes, porque contribuiu para tirar toda a legitimidade da palavra pública.

As pessoas iam para o supermercado e percebiam, de maneira muito clara, no seu bolso, que os números do Indec não tinham nada a ver com a realidade. Logo, começaram a pensar o seguinte: “Se o governo manipula alguma coisa sobre a qual eu tenho um controle, que tipo de barbaridades fará no resto, sobre o qual não tenho nenhum tipo de controle?”. Isso facilitou rumores de fraudes eleitorais, ridículas, porque Néstor Kirchner reconheceu na hora sua derrota.

(…) Outro exemplo: existem muitas denúncias na Justiça que vinculam Francisco de Nervaez com o tráfico de drogas. Quando Néstor Kirchner, durante a campanha, evocou o tema, a maioria dos ouvintes achava que era uma invenção.

Cristina Kirchner tenta mudar esta situação?

Pouco a pouco. Lançou recentemente uma política de transparência, com a criação de um Conselho Acadêmico de alto nível, uma instância de controle integrado por consumidores. Daqui para o final do ano, a situação deverá voltar à normalidade. O contexto é favorável também: com a crise econômica, a diferença entre a inflação anunciada pelo Indec e as taxas calculadas pelos institutos privados ficou bem menor.

Mas Cristina demorou muito. Durante todo o seu primeiro ano de gestão continuou com a estratégia de maquiar os números. Acho que é um dos problemas da sucessão entre marido e mulher(…).

O governo pode recuperar o terreno político perdido daqui à eleição presidencial de 2011?

É possível, mas acho difícil. A direita já lançou toda sua máquina de confrontação, e os resultados dos últimos comícios não são muito animadores. Podemos chegar a uma situação de bloqueio recíproco. Como o governo perderá maioria nas duas Casas do Congresso a partir do dia 10 de dezembro, data de posse dos novos representantes eleitos, suas margens de manobra são pequenas.

Mas a oposição tampouco tem a maioria de dois terços para contornar as decisões do Executivo. Este empate pode gerar um bloqueio institucional, que, junto à pressão midiática, pode terminar com o governo, ou pelo menos pará-lo, para que se subordine de maneira absoluta às exigências da direita. Espero que não. Seria dramático para o país. Este é o primeiro governo desde o restabelecimento da democracia que ataca os problemas centrais da Argentina.

As medidas tomadas no campo dos direitos humanos, como a revogação da anistia para os militares, tiveram um efeito neste desgaste?

Sem dúvida. A política em favor dos direitos humanos é uma das chaves do ódio que a elite tem em relação aos Kirchner. Os críticos mais duros do governo são também os que falam da importância da reconciliação e do esquecimento do que aconteceu durante a ditadura: chegou a hora que deixar o passado para trás, olhar para frente. É também o discurso da Igreja. Infelizmente, este ódio das classes dominantes infiltrou em outras camadas mais modestas da população.

Agora, basta a Cristina dizer qualquer coisa para que seus adversários denunciem o autoritarismo. Se tem uma coisa que este governo não foi, é autoritário. Não houve nenhum morto por forças federais durante mobilizações sociais. Isso nunca aconteceu antes na história do país. Inclusive, no ano passado, quando os ruralistas mandaram tropas fecharem as estradas, provocando um desabastecimento grave nas cidades, a ordem era: não disparar.

Na direita, a figura mais visível é milionário Mauricio Macri, que é também o prefeito de Buenos Aires. Será o candidato da oposição em 2011?

Pode ser. Mas a direita tem muitas outras opções. Eles podem tentar recuperar o poder usando a máquina do partido peronista. No final das contas, muitos dos dirigentes do partido são também grandes proprietários rurais. Felipe Sola, ex-governador da província de Buenos Aires, vem de uma família de proprietários de terras.

O senador Carlos Reutemann, uma figura da província de Santa Fé e potencial candidato, é um grande produtor de soja. Também é o caso do senador Juan Carlos Romero e da senadora Sonia Escudero (ambos da província de Salta) ou do senador Roberto Urquía (província de Córdoba).

Esse é o problema da construção política dos Kirchner: quem permitiu que estas pessoas fossem escolhidas para representar os interesses de um governo progressista? Os peronistas e Néstor Kirchner.

O senhor considera que isso foi falta de habilidade política?

Ao contrário, Néstor Kirchner tem muita habilidade política. O que lhe falta é visão estratégica de um país tão complexo como a Argentina. (…)Deste ponto de vista, a Cristina seria mais o contrário: ela é menos hábil do que ele, mas tem uma visão do país bem mais elaborada.

Acho que, talvez, o erro tático que fizeram foi convocar as eleições legislativas em junho, quatro meses antes da data prevista. O cálculo do governo era que a crise econômica ia se agravar, e que não daria para ganhar em outubro.

Aparentemente, aconteceu o contrário: as eleições foram celebradas, e perdidas, no pior momento da crise, enquanto as estatísticas já estão mostrando uma recuperação. Talvez teria sido melhor aguardar outubro. São os imponderáveis da política.

No começo do mandato, Néstor Kirchner parecia atraído por um movimento político “transversal”, que acabou abandonando para virar presidente do partido peronista. O senhor acha que isso foi uma das explicações dos problemas atuais?

É a tese dos pequenos partidos de esquerda, que ficaram desiludidos quando Néstor decidiu disputar a presidência do partido peronista. Mas a verdade é que não havia nenhuma força política articulada e organizada com uma agenda progressista. Existem apenas grupos esquerdistas extremistas que acham que veem sempre o lado ruim de uma política sem fazer avançar nada.

Néstor e Cristina Kirchner tomaram medidas políticas muito audaciosas sem ter uma coalizão social que sustentava esta política. Romperam com o neoliberalismo instalado na Argentina por mais de uma década, acabaram com a relação de subordinação aos Estados Unidos, apostaram numa aliança estratégica com o Brasil, aprofundaram as relações com o Mercosul, participaram na criação da Unasul. São medidas muito importantes. Agora que a reação da direita está chegando, eles não têm mais resposta.

É verdade que Kirchner se encerrou dentro do partido peronista, que não é a força política mais apropriada para mudar o país. Mas se ele tivesse insistido na sua tentativa de criar um partido transversal, talvez o partido peronista tivesse criado problemas políticos similares aos de agora, mas bem mais cedo.

Agora, parece que grupos de esquerda que abandonaram o governo no ano passado começaram a entender o perigo e estão voltando a apoiá-lo. A pergunta é se já não é tarde.

Com Opera Mundi