Música brasileira invade a telona
Se você quiser saber mais sobre Arnaldo Baptista, Bezerra da Silva, Paulo Vanzolini, Herbert Vianna, Simonal e Titãs – e ao mesmo tempo entender fragmentos da nossa história –, talvez não encontre nos livros, mas no cinema.
Por Tom Cardoso, em Revista do Brasil
Publicado 09/09/2009 18:28
Há uma febre de documentários sobre música brasileira. Nada de roteiros preguiçosos, com longos depoimentos, intercalando imagens de shows e videoclipes. Os diretores têm feito cinejornalismo de primeira linha.
“Uma vez eu vi uma declaração do produtor Roberto Evan em que ele dizia: ‘Uma verdade tem sempre três lados, o meu, o seu e o que realmente aconteceu’”, diz Paulo Fontenelle, diretor de Loki, filme que faz justiça a Arnaldo Baptista, o ex-Mutante, um dos nomes mais importantes do rock brasileiro. “Acho que a função do documentário é justamente mostrar esses diferentes pontos de vista sem julgamento. Somente ouvindo todos os lados o espectador poderá concluir sobre o objeto retratado”, completa.
“Apareceu a Margarida!” é a expressão usada por Lucinha Barbosa, mulher e figura fundamental na recuperação de Arnaldo, para saudar a exibição de Loki. “O Arnaldo sempre foi desprezado pela mídia. Inventaram um personagem, um estereótipo: o homem recluso, o excêntrico, o ermitão. Pergunte para o pessoal do Canal Brasil (canal de TV pago responsável pela produção do longa) se houve algum tipo de dificuldade em encontrá-lo aqui no sítio em Juiz de Fora?”, indaga Lucinha.
“O documentário do Paulo foi fundamental para desfazer o mito. Conta uma história sem ser sensacionalista, sem tender para a fofoca, características que, na minha opinião, norteiam o livro A Divina Comédia dos Mutantes (Editora 34), escrito pelo Carlos Calado”, afirma.
Para Fontenelle, durante muito tempo a imprensa explorou demais a questão da loucura, das drogas na vida de Arnaldo, reduzindo seu valor. Quando surgiu a oportunidade de fazer o filme, o diretor já tinha uma clara noção de quem era Arnaldo e toda a sua trajetória de vida, marcada pelo amor, pela tragédia, pela morte e pelo renascimento, do homem e do artista.
“Procurei contar essa história com respeito, e sem recorrer ao paternalismo”, diz Fontenelle. “Quem assistir ao filme verá um retrato de um homem com suas contradições, seus erros, sua poesia, mas acima de tudo a história de alguém que fez do amor e da arte razão de viver.”
O próprio Arnaldo, sempre minimalista em seus comentários, porém sábio, traduz numa frase o que significou para ele o lançamento de Loki, título de um dos mais importantes discos da música brasileira: “Estou sendo julgado pela forma com que eu julgo as coisas da vida”. Em cartaz pelo país, o documentário será lançado em Nova York, em Israel e no Chile. No dia 18 de setembro, o Canal Brasil o exibe como parte das comemorações de seu aniversário. No fim do ano, sai o DVD.
Reconhece a queda
Quando começou a pensar no roteiro de Um Homem de Moral, sobre Paulo Vanzolini, o cineasta Ricardo Dias listou possíveis entrevistados para intercalar com as imagens do show Acerto de Contas, que também dá nome à coletânea de discos lançada em homenagem ao compositor de samba paulistano. O diretor lembrou de todos os fãs e admiradores de Vanzolini: Chico Buarque, Miúcha, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Martinho da Vila, Carlinhos Vergueiro. Não precisou marcar com ninguém.
“O Djalma Baptista, meu amigo e também cineasta, que conhece o Vanzolini desde criança, deu uma grande dica que acabou mudando completamente a estrutura do filme: o cara que melhor fala sobre Paulo Vanzolini é ele mesmo”, conta o cineasta.
De fato, o sambista, autor de frases como “do povo, de cada um pessoalmente, eu não gosto, mas do povo em geral eu gosto muito”, é também sincero e irônico quando fala de si mesmo. E é justamente o monólogo de Vanzolini, intercalado com interpretações do Acerto de Contas, que faz de Um Homem de Moral um documentário interessante, que dá caras às suas canções e dá trilha sonora às caras de São Paulo.
A edição e a montagem são estruturadas e inspiradas no filme Woodstock. O registro dos lendários shows de 1969, dirigido por Michael Wadleigh e montado por Thelma Schoonmaker e Martin Scorsese, inovou ao dividir imagens em quatro partes na tela, em vez de ficar cortando as cenas toda hora. “Eu jamais gostei da maneira com que a televisão edita os musicais, cortando de personagem para personagem, em função do corte, nunca da música. Seria um desperdício levar esse vício de edição para o cinema e uma falta de sensibilidade com os músicos que Vanzolini preza tanto”, afirma Dias.
Para ele, é louvável que o cinema nacional entre na luta para recuperar personagens da música brasileira, desde que os documentários atinjam a massa, e não apenas um público restrito. “Quem pode pagar R$ 200 por mês para ver o Canal Brasil, por exemplo? Ou pagar R$ 30 para ir ao cinema toda semana?”, critica. “Há um enorme desperdício audiovisual. São 43 milhões de pessoas assistindo às maiores bobagens pela antena parabólica, de leilão de vaca a programa de auditórios gerados de Miami. Seria maravilhoso que pudessem ter acesso aos documentários que estão aí.” O DVD de Um Homem de Moral chega no fim do ano.
A reportagem da Revista do Brasil seguiu a recomendação e ligou para a casa do sujeito que melhor fala sobre Paulo Vanzolini. O autor de Ronda e Volta por Cima fala pouco, é meio rabugento, mas cada frase vale um livro inteiro. Pergunto se ele é realmente antiquado, tradicionalista, ou é apenas charme.
“Eu sou lá homem de fazer charme, rapaz?”, diz, sem paciência. “Eu sou puritano mesmo. Eu tenho 60 sambas e nunca usei a palavra ‘malandro’.” E o que achou do filme? “Sempre confiei no Ricardo. Se não confiasse, não faria. E ele soube valorizar os músicos, e isso sempre foi o mais importante para mim.” Ponto final. Um homem de moral.
Verdadeiros autores
O que não falta nas músicas de Bezerra da Silva (1927-2005) é a palavra malandro. Ele era o próprio. Mas há algo em comum entre Bezerra e Vanzolini: a valorização dos músicos, dos compositores. O sambista carioca prezava tanto os compositores que chegava a dar pito no ar em radialistas que creditavam os seus sambas a ele, e não aos verdadeiros autores. Nomes como Adelzonilton, Walmir da Purificação, Roxinho, 1000tinho, Moacir Bombeiro, eletricistas, trocadores de ônibus, mecânicos, presidiários, bombeiros – que alimentaram por décadas o repertório de Bezerra.
O documentário Onde a Coruja Dorme, de Márcia Derraik e Simplício Neto, originalmente um curta, não é um longa-metragem sobre Bezerra da Silva, e sim sobre os compositores de Bezerra da Silva. “Ele avisou: ‘Tô fora’, caso o filme não homenageasse os compositores”, conta Márcia. O sambista renderia um filme épico. Aos 14 anos, deixou Recife e viajou, clandestino, em um navio para o Rio. Foi descoberto e o capitão ameaçou jogá-lo ao mar. “Pode jogar. Pior que está não vai ficar”, devolveu.
Mas é possível também contar a vida de Bezerra por meio de seus compositores preferidos. Essa é a grande sacada do documentário, que deve estrear no começo do ano que vem. “O Bezerra é o narrador, o condutor. E o processo de escolha do repertório era muito interessante: ele ia até o subúrbio ver o que os amigos tinham produzido. Levava um gravador e registrava tudo. Depois escolhia o repertório”, conta Márcia.
Também estreia em breve, em outubro, Herbert de Perto, sobre a trajetória do líder dos Paralamas e um dos nomes mais importantes do rock brasileiro. O documentário, dirigido por Roberto Berliner e Pedro Bonz, começou a nascer em 1982, junto com a banda, quando Berliner gravou os primeiros depoimentos do vocalista no Circo Voador, a lendária casa de shows do Rio.
O diretor também acompanhou de perto a recuperação de Herbert Vianna depois do acidente de ultraleve em 2001, que vitimou sua mulher Lucy e o deixou paraplégico. Berliner, em férias, falou rapidamente à Revista do Brasil: “O Herbert fez apenas um pedido: que a gente não fizesse uma direção ‘telenovelística’ da vida dele. Acho que conseguimos. Contamos um drama pessoal sem cair nas armadilhas sentimentaloides”.
O filme Titãs – A Vida até Parece uma Festa, dirigido por Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves, não obedece a uma estrutura narrativa nem a uma ordem cronológica, mas se destaca pela colagem de imagens captadas por Branco ao longo das duas décadas de existência da banda.
“A gente preferiu mostrar a história, em vez de contar a história”, diz Branco. “Era melhor solução aproveitar as 300 horas de gravação do que ficar filmando pessoas falando da gente em lugares bonitinhos”, completa o roqueiro. O filme não está mais em cartaz, mas o DVD vem aí, em setembro, recheado de extras. “São mais de 10 minutos de cenas inéditas. E terá 45 partituras e cifras das nossas músicas, que podem ser baixadas, assim como seis clipes”, adianta Branco.
Sobe e desce
Poucos documentários provocam tanta polêmica quanto Simonal – Ninguém Sabe o Duro Que Dei, dirigido por Cláudio Manoel, Calvito Leal e Micael Langer. Resgata-se a história de um dos maiores nomes da música brasileira, que caiu no ostracismo depois de ser acusado de delatar músicos em pleno regime militar, inclusive de mandar para o Dops o seu contador, de quem suspeitava ter-lhe dado desfalques. O documentário tem clima hitchcockiano – os diretores, depois de muita investigação, conseguiram achar o tal contador, que desde a época de sua prisão não havia se pronunciado sobre o caso.
Para alguns, é uma aula de jornalismo, ao ouvir os dois lados, a versão do contador, a versão de amigos e parentes de Wilson Simonal, de gente que o admirava, de quem não gostava dele e de quem via a história com neutralidade. Para outros, o filme peca ao insistir em que a derrocada do cantor se deu pelo seu envolvimento com os militares e o boicote da classe artística, e não por um processo de decadência similar ao de muitos músicos de sua geração.
Com a palavra, Calvite Leal, um dos diretores. “É, eu acho que essa crítica faz sentido. Faltou abordar a questão com maior profundidade, mas não fizemos isso por achar que o filme se tornaria cansativo, perderia ritmo, em meio a tantas questões polêmicas”, diz. “O que eu posso assegurar é que o Simonal, ao contrário de muitos outros artistas que também passaram por período de pouco sucesso, nunca teve a oportunidade de se reerguer profissionalmente.” O trio que fez Simonal já tem um novo personagem na manga: Carlos Imperial. Bom para o cinema, e para história.