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China, 60 anos depois: qual o sentido do “socialismo de mercado”? 2

"Na filosofia clássica chinesa, quando uma pessoa chega aos 60 anos recebe um sinal que indica maturidade na vida terrena. Neste sentido, é pertinente a busca por respostas menos superficiais e capazes de ajudar-nos em algo que também buscamos ao trilhar o caminho brasileiro de transição ao socialismo. Tendo a transição como uma categoria filosófica a ser cada vez mais degustada e trabalhada, tentarei mapear o caminho do sucesso inerente ao 'socialismo de mercado' na China".

Por Elias Jabbour*

Continuação do texto "China, 60 anos depois: qual o sentido do “socialismo de mercado”?"

Sempre gosto de sublinhar que diferenciar a experiência soviética da chinesa demanda, em primeiro lugar, pontuar as diferenças entre as diferentes subjetividades camponesas. O camponês russo, servo desde sempre e cristão ortodoxo. O camponês chinês, ao contrário: um taoísta, rebelde e agricultor livre. Não é de se menosprezar o fato para quem uma das mais ferozes reações às transformações na China nos últimos anos veio das amplas massa

s camponesas, irritadas com a poluição da água e o avanço de estradas e ferrovias em outrora áreas de cultivo e também com a corrupção. O governo chinês, com Hu Jintao a sua testa e com a história como lição percebeu prontamente o explosividade do momento. Eis um ponto nodal entre as experiências soviética e chinesa.

A política e as escolhas

Importante frisar que neste ínterim de contradições, segundo o Banco Mundial, cerca de 400 milhões de chineses saíram da linha da pobreza. Um feito inimaginável há pelo menos 100 anos atrás e inimaginável para um país capitalista – a gloriosa Índia de Gandhi e Nehru – decantado pelo mundo afora (como forma de contrapor o “modelo” chinês) por ser “a maior democracia do mundo”. País este, que apesar de ostentar volumosos índices de crescimento, ainda convive com 35% de sua população sob a “democrática” condição de analfabetos.
Retornando, porém, centrando-se um pouco nas contradições chinesas, cabe uma pergunta:
As escolhas feitas pela governança chinesa desde 1978, foram corretas? Poderia ser diferente?

Em princípio e no geral, digo que sim. Em uma conjuntura de crescente assimetria econômica para com seus vizinhos asiáticos e para com Hong-Kong e Taiwan, além das represadas demandas camponesas e em meio à plena decadência do socialismo no mundo, digo que sim: essas era as escolhas a serem feitas. Foram feitas e executadas. Nunca podemos de nos esquecer que as reformas chinesas foram precedidas de uma avalanche esquerdista de grandiosas proporções (Revolução Cultural), logo o povo chinês queria algo muito diferente daquilo: queria chance para ganhar a vida, para acumular riqueza e levar a vida de acordo com suas vontades e não viver embriagado de discussões políticas por toda parte. Aspirações legítimas e que qualquer socialismo que se preze deve usar a seu fazer, e não reprimi-las em nome de cânones paridos não se sabe onde (de Marx que não foi). Até porque ninguém faz revolução para viver pior que o vizinho, principalmente se ele for japonês.

Do ponto de vista, da estratégia socialista, sempre gosto de partir do princípio para quem o socialismo tem como tarefa principal a superação da divisão social do trabalho. Logo,a cientificidade do socialismo só pode encontrar eco nos marcos da urbanização. Longe disse, o que sobra são discursos semelhantes aos dos intelectuais oriundos da classe média urbana francesa (pós-Revolução de 1789) acerca dos “bons tempos” das terras comunais e igualitárias, muito frequente no Brasil por expressões contemporâneas do “populismo” russo, devidamente debulhados e liquidados por Lênin em seu tempo.

A China enfrentou esse desafio ao transformar o seu litoral num verdadeiro “imã” de capital e tecnologia estrangeiros, além de plataforma de exportações. O custo desta política foi a abertura de um verdadeiro fosso entre litoral rico e interior pobre. Para ilustrar a formação deste fosso, é importante expor que, segundo a Agência Nacional de Estatísticas, entre 1979 e 2008, enquanto a renda das cidades chinesas cresceram em média 13,1% ao ano, no interior esse índice não alcançou 8%. Mas, é louvável saber que descontada a inflação do período, os aumentos médios de salários ficara acima da média de crescimento do período.

A opção foi correta, e pode ser medida pelo seu planejamento: em 1982 quatro ZEE`s foram instaladas próximas de Hong-Kong, Taiwan, da Coréia do Sul e em Fuzhou, claramente com o intuito de formar uma zona de convergência econômica entre a China e “territórios em aberto” como Hong-Kong, Macau Taiwan. Seria impossível o retorno de tais territórios à China (Taiwan está em processo) dentro de parâmetros altamente assimétricos de renda entre o continente e os locais citados. O programa de 1949 que previa a unificação territorial deveria ser executado,ao preço, de segundo Deng Xiaoping, em uma dura negociação com Margareth Thatcher ter dito, em 1984: “o PCCh deverá se retirar da cena política, pois aos olhos do povo seríamos tão fracassados quanto a Dinastia Qing”. Assim sob essas condições surgiu a genial proposta de “um país, dois sistemas”.

A integração da China à economia internacional se completa com a instalação, em 1984 de mais 14 ZEE´s. Em 1987 todo o litoral do país passou a mesma condição; em 1992, idém a todas as capitais de províncias, regiões autônomas e cerca de 50 cidades de fronteiras. Em 1997, a cidade de Chongqing,no meio-oeste chinês alcança o status de municipalidade diretamente subordinada ao governo central. Talvez somente Lênin tinha uma visão tão estratégica das possibilidades de planejamento territorial abertas por um poder de novo tipo como o chinês. Trata-se da altíssima política no comando do processo.

A inversão de prioridades é caracterizada pelo lançamento do Programa de Desenvolvimento do Oeste em 1999. Desde então, num jogo onde o litoral transfere capital e tecnologia ao oeste e troca de matérias, foram investidos cerca de US$ 1 trilhão, sem contar o atual pacote anti-cíclico de quase US$ 700 bilhões, com mais de 65% destinados ao oeste do país. Trata-se da maior transferência de renda territorial da história da humanidade. Algo somente vislumbrado por Lênin em suas elucubrações sobre o desenvolvimento do capitalismo norte-americano, seu go west e o desejo de transformar sua URSS numa versão socialista dos EUA.

Trata-se da anatomia humana servindo para desvendar a anatomia do macaco, demonstrando socialmente qual formação social deverá ser uma referência de futuro. Não é de somenos que, leninisticamente, os chineses “copiam” a receita americana de expansão ao oeste, no intuito de em meados do presente século uma economia nacional unificada se transforme na versão socialista da unificação territorial norte-americana na segunda metade do século XIX, abrindo caminho e dando novo fôlego à transição capitalismo-socialismo em âmbito mundial iniciada com a Revolução Russa de 1917.

Esta política foi acertada, pois criou as condições a saltos qualitativos gigantescos, conforme afirmei em artigo alusivo aos 30 anos do início da política de Reforma e Abertura (revista Princípios nº 98):

“Não se trata de mais uma repetição atualizada de conjunturas como a de 1949, em que a necessidade de industrialização rápida e acelerada contava com pífios recursos, nem como a de 1978, quando os requerimentos da modernização, em larga medida, assentavam-se numa grande inflexão externa do regime, dada sua não-autonomia financeira e tecnológica. O que a China e seu projeto têm a favor na atual contenda é o fato de suas soluções estarem ao alcance de uma economia já calcada em bases industriais sólidas, com uma política ativa em ciência e tecnologia e, o principal, nos marcos de uma solidez financeira jamais sonhada pelas antigas gerações.”

Está aí o sentido econômico e histórico da Revolução Nacional/Popular de 1949 e sua atual expressão num vigoroso socialismo de mercado e com características chinesas.

*Elias Jabbour, Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, do Conselho Editorial da Revista Princípios e pesquisador da Fundação Maurício Grabois.