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Moscou: o granito da estátua de Marx

Funcionários do Comitê de Artes Monumentais de Moscou estão discutindo planos para remover da cidade o único monumento de homenagem a Marx que ali existe, sob os mais variados argumentos.

Por Dmitri Chlapentokh, para o Asia Times Online

O argumento que mais se ouve é que Marx, alemão (1818-1883) – filósofo e teórico de economia política, cujas ideias são consideradas a fonte original do comunismo moderno – jamais pôs os pés em Moscou. Por esse motivo, dizem alguns, o monumento em sua homenagem, na praça em frente ao Teatro Bolshoi, no centro de Moscou, não tem por que permanecer ali.

O monumento é uma escultura de Lev Kerbel – um busto de Marx, esculpido num bloco de granito; e a uma frase do Manifesto Comunista: “Trabalhadores de todos os países, uni-vos”. Está onde está desde 1961.

Para um dos que têm participado dos debates, a estátua deve ser removida porque a presença de Marx em Moscou seria perturbadora por vários motivos, dentre os quais, ficou implícito, um motivo ideológico.

De fato, há em andamento uma guerra aos monumentos em todo o espaço pós-soviético, espaço no qual a história está sendo rearranjada às pressas para melhor atender às demandas do presente.

Em Tallinn, capital da Estônia, uma efígie em bronze de soldados soviéticos foi removida em 2007, porque foi considerada símbolo do opressivo império soviético, de fato, dos russos – asiáticos pervertidos que controlaram a Estônia por algum tempo; logo a Estônia, terra pacífica, habitada por pacíficos europeus.

Além disso, também os ossos de soldados soviéticos sepultados ao pé do monumento foram arrancados de seus túmulos e, monumento junto, foram transferidos para um cemitério distante. A remoção gerou forte protesto diplomático da Rússia e levou às ruas, em protestos, as minorias que falam russo, em Tallinn.

Coisa semelhante aconteceu na Geórgia, depois da guerra de agosto de 2008 contra a Rússia. Joseph Stalin perdeu sua “georgianidade” e passou a ser visto pelo governo como encarnação do imperialismo russo – sob cujo tacão, diz-se hoje, a Geórgia padeceu durante séculos. Uma enorme efígie de Stalin, na cidade ocidental de Gori – sua cidade natal – teve fim inglório, mês passado.

Até há pouco tempo, o fato de Stalin ser seu conterrâneo era tido como motivo de orgulho para os cidadãos de Gori e, de fato, para todos os georgianos. Os georgianos defenderam bravamente seu monumento, quando o ex-presidente Nikita Khrushchev tentou removê-lo, durante o processo de des-stalinização, no início dos anos 1960s. Mas em agosto de 2009, o monumento já era visto como uma mancha na democrática Geórgia, fiel amiga do Ocidente. E lá se foi o monumento, para o ex-Museu Stalin, hoje “Museu da Ocupação Russa”.

Eventos semelhantes também aconteceram em Moscou, no início da era pós-soviética no começo dos anos 90s. As autoridades de Moscou ainda desfiguram a face histórica da cidade, apagando monumentos muito conhecidos – o famoso Hotel Moskva, no centro da cidade, foi uma das vítimas mais recentes –, mas nesse caso o apagamento da história explica-se pela ganância (o metro quadrado muito valorizado), não por motivos ideológicos.

Quem defenda a remoção do busto de Marx bem poderia argumentar que a remoção justifica-se, porque a crise econômica devolveu boa parte da popularidade às ideias de Marx – e há risco de o monumento novamente inspirar as massas e levá-las a repetir a revolução socialista de c. 1905-1917.

As autoridades continuam visivelmente nervosas em relação a esse tema. Prova disso é que, em recente debate pela televisão, quando um dos debatedores atreveu-se a dizer que o povo deveria tomar as ruas para defender seus direitos, o debate foi repentinamente encerrado pelo apresentador. E em Março, quando houve uma greve numa pequena fábrica de alumínio, Pikalevo, perto de São Petersburgo, toda a imprensa nacional deu ampla cobertura ao ‘evento’ e Moscou envolveu-se diretamente na operação de pôr fim à greve.

Se a revolução socialista está reduzida a sonho-delírio de alguns poucos velhos antiquados, do que, afinal, as autoridades têm tanto medo? Por que a imagem de Marx tanto os perturba? O ponto crucial é que, embora o sonho de uma revolução socialista pareça estar praticamente morto, o mesmo não se pode dizer do projeto ideológico que é a menina dos olhos das autoridades russas – em andamento desde o primeiro dia de governo do ex-presidente Vladimir Putin –, de “pôr em pé” um Estado russo forte.

Uma Rússia unificada, de Estado centralizado, é questão irrelevante para o povo das províncias – tanto para as massas quanto para as elites. A completa desintegração do país, de direito ou só de fato, seria aceita sem protestos e talvez, por alguns, até com júbilo.

Em recente viagem de trem pelo nordeste da Rússia, conheci um ex-oficial do Exército Vermelho, hoje transformado em aposentado pobre. Observamos juntos a paisagem, que bem poderia servir de cenário para o seriado “A Terra depois do homem”, muito popular na televisão norte-americana, sobre como será o planeta depois de extinta a humanidade. Aquela parte do interior do território russo, com campos abandonados e cobertos de mato, casas em ruínas e construções paralisadas já também em ruínas, bem poderia servir como locação para aquele seriado.

Vendo tudo aquilo, o oficial contou-me que vivera profunda angústia pessoal quando do colapso da União Soviética; e que, naquele momento, chegou a desejar que os ex-presidentes Mikhail Gorbachev e Boris Yeltsin fossem executados por crime de alta traição. Mas que hoje já pouco se incomoda com o que aconteça ao Estado russo; e acha que a maioria da população aceitaria sem problemas a desintegração.

E não são só os pobres a despreocupar-se com o destino do Estado russo. Comerciantes e empresários bem-sucedidos da província de Krasnoiarsk, no leste da Sibéria, apoiaram com euforia a ideia da independência de Krasnoiarsk, que começa a circular na região. A população das províncias jamais manifestou qualquer amor especial por Moscou; em muitos casos preferem Estados estrangeiros. Nos protestos do ano passado em Vladivostok, contra tarifas impostas por Moscou para a importação de carros japoneses, muitos carregavam bandeirolas japonesas.

Moscou entende bem o profundo vácuo espiritual, a fragilidade, nem tanto do tipo peculiar de capitalismo à moda russa, mas do próprio Estado. E é esse sentimento da fragilidade do Estado que leva Moscou a tentar derrubar, pelo menos, que seja, a estátua de Marx.

Enquanto as autoridades estudam o melhor meio para remover do centro de Moscou o gigantesco bloco de granito, reintroduzem praticamente na mesma praça central outro ídolo caído do período revolucionário: Stálin.

Questão interessante a resolver é descobrir por que Stálin tornou-se mais recomendável que Marx, aos olhos dos funcionários russos. Há inúmeros aspectos do stalinismo que jamais seduziram a elite russa; essa, aliás, é a razão pela qual excertos de O Arquipélago Gulag, de Alexander Solzhenitsyn [orig. 1947, publicado no ocidente quase 30 anos depois], tornaram-se leitura obrigatória nos ginásios russos.

Seja como for, o stalinismo tem pelo menos um traço que as autoridades russas estimam como patrimônio ideológico de alto valor – o culto da “verticalidade do poder”, o culto do Estado. E essa é uma das principais razões pelas quais o nome de Stalin reapareceu num slogan na parede de uma estação do metrô de Moscou, recentemente reformada. O apelo patriótico e a nostalgia imperial desse stalinismo redefinido nada diz às populações das províncias – nem às massas nem às elites –, mas não se deve esquecer que os protestos são fracos e que as autoridades podem facilmente ignorá-los. O problema é que, por mais fracas que sejam as pressões que venham das ruas, o Estado sempre pode ser ainda mais fraco.

Durante os protestos em Vladivostok, Moscou enfrentou uma rara solidariedade entre os moradores, a elite local e a Polícia – que se recusou a reprimir as manifestações. Moscou foi obrigada a deslocar para lá batalhões da força central de controle de tumultos. Mas se o mesmo tipo de protesto emergir simultaneamente em vários pontos do país, Moscou não terá como mobilizar soldados suficientes para controlar todos os tumultos.

Se não houver cataclismos, a ordem atualmente vigente pode manter-se, de fato, por várias gerações; mas se houver problemas, há risco de o Estado ruir bem rapidamente. É esse temor subconsciente de que o Estado russo pós-soviético seja muito frágil, que torna tão insuportável, para as autoridades russas, o granito da estátua de Marx.

*Dmitri Chlapentokh, PhD, é professor associado de história do College of Liberal Arts and Sciences, da Indiana University South Bend. É autor de "East Against West: The First Encounter. The Life of Themistocles", 2005.

Original em http://www.atimes.com/atimes/Central_Asia/KI30Ag03.html.
Fonte: Vi O Mundo