Geraldo Elísio: Um edifício chamado Maletta 

 “Guardadas as proporções, o Maletta é para Beagá o que Ipanema significa para o Rio de Janeiro.” – G. Elísio.

Onde existiu o Grande Hotel, reduto de intelectuais como Carlos Drummond de Andrade e Emílio Moura, do qual, de uma das sacadas, Mário de Andrade escreveu “Noturno de Belo Horizonte”, – relata Pedro Nava, também integrante do grupo -, há 50 anos o incorporador Alair Couto ergueu o edifício Arcângelo Maletta, esquina de Rua da Bahia com Avenida Augusto de Lima.

Maletta

Primeiro edifício de BH a possuir escada rolante (hoje paralisada), no início atraindo famílias de curiosos, os blocos de galerias comerciais, escritórios e apartamentos residenciais argamassados com o sangue de dois bombeiros que perderam a vida no combate a um incêndio, sequenciou a trajetória de cultura; e de política e ideológia pós-64. O Maletta modificou hábitos comportamentais e socioculturais em Belo Horizonte.

Principalmente na Cantina do Lucas (Clênio e agora Edmar Roque cuidando da administração) e do Lua Nova, com trânsito livre entre as instituições da boêmia cultural que tem marco inicial no quadrante com o jornalista Ângelo Prazeres e o arquiteto Álvaro (Veveco) Hardy. No Maletta, pela primeira vez mulheres desacompanhadas puderam entrar, solicitar cerveja e cigarro e, ao sair, não eram vistas como prostitutas. O tempo acabou com o preconceito remanescente contra as “maleteiras”.

Escritores como José Nava, Murilo Rubião, José Bento Teixeira de Salles, Oswaldo França Júnior, Roberto Drummond, Wander Pirolli e Carlos Herculano Lopes (entre outros), ao lado de poetas como Fritz Teixeira de Salles, Adão Ventura, Ronald Clever, Henry Corrêa de Araújo, Elza Beatriz Von Dollinger, Paulinho Assunção, Marcelo Dolabela, Márcio Almeida, Libério Neves, Alzira Francisca, Ricardo Teixeira de Salles e Suzana Nunes de Morais (também entre muitos) e ensaístas como Isaias Golgher e Fábio Lucas, estão incorporados à vida literária do Maletta. E os “udigrudi” mor Leão e Micitaus do Issás, ou Macarius, bem como Evaldo, “O poeta das ruas”, e Isaias do Maranhão, que desceu de helicóptero na rua, vestido de anjo, para divulgar poesia.

Entre os cineastas, Helvécio Ratton, Harley Carneiro, Geraldo Magalhães e Schubert Magalhães (fulminado por infarto, tombando sobre um prato de “peixe ao comodoro”, na Cantina), representam os demais. Da mesma forma, nas artes plásticas, Petrônio Bax, Yara Tupinambá, Chanina, Regina Costa Val, Álvaro Apocalypse, Terezinha Veloso, Rodelnégio, Quintão e Herculano, são amostragens da “República Livre”, guardada pelo garçom-símbolo, Olympio Perez Munhoz, “O anjo anarquista”, que chegou a servir Dan Mitrione, agente da CIA pré-64, morto pelos “tupamaros“ em Montevideo.

Maletta com sua musa oficial carregada pela turma, a ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais, Dinorah Carmo, e musas em particular de cada um. Maletta do teatro de Pontes de Paula Lima, Cleide Gosling, João Etienne, Magda Lenard, J. D’Ângelo, Mamélia Dornelles, Ronaldor, Pedro Paulo Cava, as duas Vilmas, Patrícia e Henrique, Yara de Novaes, Fernando Couto, Eloisa Duarte “A Loura”, Carl Schumacher, Cássio Pinheiro, Priscila Freire, Geraldo Carrato, Aidê Bittencourt, Paulo César Bicalho, Cristiana Antunha, Ronaldo Brandão, Madalena Rodrigues e Helvécio Guimarães. Contando Geraldo “Capeta”, a bunda masculina mais famosa depois da minissérie “Memorial de Maria Moura”. Espaço pequeno, difícil citar tanta história.

Em termos de música o Clube da Esquina, com direito a “Bituca”, Milton Nascimento, tocando baixo acústico. Marilton Borges, hoje refugiado em seu Marilton’s Bar, em Santa Tereza, e seu irmão Lô Borges, Nivaldo Ornelas, os poetas-letristas Fernando Brant e Marcinho Borges, Jodry “Vermelho”, do 14 Bis, e até pouco tempo o maestro Túlio Silva, em mesa de fundo do Lucas, namorando e rolando dadinhos. Maletta dos ingênuos “inferninhos”, boates com iluminação indireta onde o máximo que rolava era uma “bolina” e beijos na boca. Gervásio Horta, que fez comigo (melodia dele e poesia minha) um samba em homenagem ao Olympio, gravado na voz de Bira Favela, Rômulo Paes e agora dona Jandira.

Professores Moacir Laterza, Baesse, Amelinha da “Medicina”, Dalmir Francisco e Fábio Martins, Carlos Alberto Reis e Alzira com Mariana; “faficheiros (as)”; psicólogos (as), a exemplo de Jô Horta, com Deus e através dela me dando Janaína, o mais lindo presente da vida, que não abre mão do talharim à parisiense, por vezes optando pelo filé a Olympio do Lucas; filósofos (as), César Bicalho com a Bandeira Branca e Borduna Filosófica, jornais que irritavam as esquerdas, mesmo ele sendo esquerdista; advogados (as), Márcio Santiago reinando e Cretildo Crepaldi com a pilha de jornais; guerrilheiros (as) entrincheirados em tulipas de chopp, quem pegou em armas mesmo na guerrilha rural ou urbana e não voltou; Inês Etienne Romeu – “seo” Olympio dizia: “É a Passionária brasileira” -; José Ronaldo Procópio, o frasista; anistiados, guerrilheiros que escaparam. Gilberto (Tuareg) com lutas na Ribeira, Bolívia e Angola; bancários (as); repressão; cidadãos (as) desconhecidos (as); vendedores de amendoim; o jornaleiro “Tostão” ou o “Sapo”, apregoando manchetes, reais ou inventadas: “Santa Ceia adiada pela crise do óleo de soja.”; doutor “Vicentão”, promotor de Justiça que enfrentou Thacyr Cia, homem do DOPS e da ditadura; Cyro Siqueira; Yara Castanho, poetisa que vendeu quase 100 mil livros de mão em mão; o juiz de direito e da direita José Augusto Branco, que convivia em paz, como deve ser na “República Livre”, inclusive a “Raposa”, o “Coelho”, o “Galo” e o “Leão” de Nova Lima.

No capítulo político, José Machado, da Arena light e nacionalista; a deputada federal Jô Moraes do PCdoB; Dimas Perrin do PCB, com Aldo Sagaz e José Adão; o ex-prefeito de Belo Horizonte, Patrus Ananias, hoje ministro de Lula; de passagens eventuais “O cara”; Luiz Dulci, também ministro; Roberto Carvalho, vice-prefeito de Belo Horizonte; Amilcar Martins, ex-deputado e secretário de Estado e o deputado federal Virgílio Guimarães. Mais os vereadores Carlão e Arnaldo Godoy, que transformou o Lucas em Patrimônio Cultural de Beagá; Arthur Viana, Marcelo Caetano e Chico Lu.

Todo o time de garçons: Deco, Valmir e André, Eli, Gentil e Vanusa, Geraldo, Carlinhos e Alisson, a alimentar fomes e aplacar sedes. No Lucas, comandados por Circeia e Mourão. Nô, Piazza e Geraldinho que saíram. Se esqueci alguém, perdão. No Pelicano, de frente para a Augusto de Lima, os proprietários Massimo Marcenaro e a esposa Edilene dos Santos com os filhos Luiz Felipe e Giovanna, os dois últimos ítalo-brasileiros “Tutta buona gente”. Massimo, de Savona, filho de “partigiano” e contra Berlusconni. Giovanna, a minha mais nova amiga, que ainda não completou nem um ano. E os veteranos Miltinho e Custódio. Vale conferir o sanduíche de filé com queijo. Antes, o Zé Maria, no Bar do Zé. No Xox Xoc, o garçom Marcelo (que me serve pé de porco) e o Neném, no Portuense. Para muitos que gostam, a Pastelaria Chinesa.

A menina que vendia flor e balas. O garoto do “vai um brilho aí no sapato, doutor?”. Wilson Frade, colunista social e gente que nunca foi socialite. O caricaturista argentino (a sua é fácil senhor). Sumiu! E o fotógrafo “instantâneo, colorido sai na hora”. Jornalistas em profusão. José Maurício Vidal Gomes, as Bete’s – Cataldo e Fleury – Mauro Santayana, José Maria Rabelo e Edmur Fonseca com as famílias depois do exílio. Tatá Madureira – que escreveu com Brenda Silveira “Histórias da Rua da Bahia e da Cantina do Lucas” – Ronaldo Solha, Ângela Carrato (acompanhada da irmã Sofia, direto da “vetusta casa da augusta praça – leia-se Escola de Engenharia), Bley Barbosa (teatrólogo que escreveu “O Filho do Boi Coringa”), Celius Aulicus, o “General da Banda”. Evoé Baco.

O manifesto contra a censura escrito por Jeferson Andrade, assinado por intelectuais do Brasil. Paulo Autran, Clara Nunes, Henfil, o cartunista, acompanhado de Nilson Azevedo (irmão de fé), Zezé Mota, Betinho, José Mayer, Mercedes Sosa (La Negra), Darcy Ribeiro, Tarancón, Antônio Grassi, Chico Buarque e Raíces de América. Não havia Mercosul. A liberdade unia todos. Many Catão (com a cadelinha que falava francês) e Lucy Panicalli. Júlio Gomes e sua gargalhada inconfundível e o xará dele Júlio Varela.

Grandes livros, long plays, Cinema Novo, Bossa Nova, Tropicália, jornais alternativos, com o ícone “O Pasquim”. Jorge Luis Borges, Nélida Piñon, Jorge Amado, Guimarães Rosa e Cecília Meireles, “hour concurs” Drummond e Pablo Neruda.

Marlon Brando, Glauber Rocha, Fellini, Leila Diniz, Marcelo Mastroiani, Marilyn Monroe e Brigitte Bardot. Presley e os Beatles. Caetano, Gonzaguinha, Rita Lee, Elis Regina, Gilberto Gil, Gal e Vandré, porque “quem sabe faz a hora não espera acontecer”. E mesmo o Waldick Soriano. Tempo em que eu era novo e sem ser o filme “O vento levou”.

Espetáculos que foram sucesso. Sonhos que não saíram das mesas dos bares. O mesmo podendo se dizer de filmes e outros sonhos sonhados. A “Boca molhada de paixão calada”. Talvez na “Casa de Bernarda Alba”. “Verde que te quero verde”, como dizia Lorca. E os 15 minutos de fama de McLuhan. Guerra Fria e do Vietnã. Pausa para o Festival de Inverno em Ouro Preto.

Muitos que partiram. Muitos que chegaram. Os poetas e poetisas Pedro Pizzeli, Milton César Pontes, Luciene (filosofa e bailarina) e Mima Carfe; Roberta e Daninho, socióloga e antropólogo, ela com mais possibilidades de ser presidente da República. Raíssa que foi para a Irlanda. Karina que virou música feita por uma xará, arranjada (a música) por Alexandre Az e Alexandre Lopes. Não sei onde ela se encontra. Antônio Hezir; Wander barítono, cantando em São Paulo; o maestro Wallace Armani, de malas prontas para Moscou; Marcelo e Ludmila; Priscila; Gabriel; Mariana e Daniel e a pequena Mabel (a pequenininha de vez em quando); Gilson ilustrador; Regis D’Almeida e Biné Zimmer, compositores, instrumentistas e compositores (bons parceiros da gente); Poliana e Felipe; Fernando Maísto, turma que continua a história, além de tantos outros. Estudantes de Ângola, Moçambique, bolsistas trocando experiências. Saudades deixando e, acredito, saudades levando.

O Maletta com suas lan houses e executivos nas mesas com laptops ou notebooks. Punks, góticos, memórias de hippies (geralmente artesões), metaleiros, emos, patricinhas, mauricinhos, roqueiros, cults. As modernas tribos representadas.

Yull Taymam, que não sabe nadar ou flechar, mas é xavante mesmo, embora digam que “made in Paraguai”. E quem ficou pra assistir o cinqeentenário.

As meninas de vida fácil que moravam lá e por lá não exerciam a mais antiga das profissões, exercendo sim, severa austeridade “naquilo que se chama um lar”. Porque “maleteiros” somos todos, de Belo Horizonte e quem aporta aqui. E quem não é tem vontade de ser.

Este espaço é permanentemente aberto ao democrático direito de resposta a todas as pessoas e instituições aqui citadas.

Publicado no novojornal.com
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