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Lula no Financial Times: "Sou um patriota econômico"

"Eu sou um patriota, um patriota econômico. Isso é um termo que eu gosto. Sim, gosto disso. Isso me agrada. Você tem que pensar no futuro do país", enfatiza o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na entrevista publicada nesta terça-feira (10) no Financial Times. "Não estamos cometendo nenhum pecado", agrega Lula com ironia, para a visível contrariedade dos jornalistas do diário britânico, que é uma das bíblias do capital financeiro. Confira.


A análise que acompanha a longa entrevista, intinulada A verdadeira recompensa, relata que "Luiz Inácio Lula da Silva está a todo vapor. Com um largo sorriso, o presidente do Brasil relata com gosto o dia em que disse 'não' ao Fundo Monetário Internacional. 'Chamei [Rodrigo] de Rato [o diretor-executivo], do FMI, e disse a ele que não queria o seu dinheiro. Ele ficou realmente perturbado', ri."

"Para Lula e seus 190 milhões de conterrâneos, a memória do país comparecendo regularmente diante do Fundo de chapéu na mão ainda machuca. Apenas uma década atrás, nas crises financeiras da Ásia e da Rússia, o Brasil foi forçado a desvalorizar sua moeda, o real, e pedir créditos de emergência ao FMI. Porém agora as coisas se inverteram. 'Fomos um dos últimos países a entrar na crise global e um dos primeiros a sair', diz o ex-torneiro mecânico"

Lula falou a Lionel Barber, editor, e Jonathan Wheatley, correspondente do Financial Times, no dia 4, durante a sua recente estadia em Londres. Veja a transcrição da entrevista.

Financial Times: Sr. Presidente, me diga, como é que o Brasil saiu da crise financeira e econômica global tão rapidamente?

Presidente Lula: Bom, primeiro de tudo, eu acredito que é importante para você entender o que aconteceu no Brasil antes da crise. Estávamos determinados a acabar com a paralisia que o Brasil sofreu durante os anos 80 e 90. O Brasil teve de voltar ao caminho do crescimento e investir em infra-estrutura como condição para o sucesso nas décadas futuras. Uma coisa importante é que muitas das medidas que alguns países tomaram só após a crise, o Brasil já as havia feito em janeiro de 2007.

Deixe-me dizer algo que vai soar como uma ironia do destino. Eu tinha medo de concorrer a um segundo mandato. Não estava satisfeito com a idéia de concorrer novamente.

Por quê? Porque eu tinha a impressão de que um segundo mandato, poderia ser apenas mais do mesmo. Teria falta de motivação se as coisas não fossem bem, e tudo que tínhamos conseguido fazer no primeiro mandato não seria suficientemente bom para sustentar um segundo mandato. Eu ainda tinha muito vivo em minha mente os erros de Fernando Henrique [Fernando Henrique Cardoso, seu antecessor] em seu segundo mandato. O fracasso dele ainda estava em minha mente.

Muito bem, em 2006, discutindo o segundo mandato, disse aos meus colegas que era necessário começar 2007 com um programa de investimento que iria nos ocupar completamente nos próximos quatro anos. E nós preparamos o PAC. O PAC é o programa de crescimento acelerado. O PAC iria ser lançado em 2006. Mas um dos meus conselheiros em comunicação aconselhou-me não lançá-lo em 2006, porque seria visto como parte da campanha política durante as eleições, e poderia perder credibilidade com a população.

E os meus assessores disseram – "Você não precisa do programa de aceleração do crescimento para ganhar esta eleição" – as eleições presidenciais de 2006. Então, o PAC foi lançado somente após as eleições, e é isso que nós fizemos em 22 de janeiro de 2007. E o PAC foi uma das principais razões da crise ter chegado tarde ao Brasil e é uma das razões do Brasil ter saído da crise em primeiro lugar, porque para um país desenvolvido, US$ 300 bilhões de investimentos não é nada, mas para um país do tamanho do Brasil que não estava acostumado a fazer tais investimentos, investimentos públicos, um programa de investimentos do governo de quatro anos e US $ 300 bilhões era um desafio extraordinário.

Então o que aconteceu realmente foi que, quando veio a crise, o Brasil já estava fazendo muitos investimentos, coisa que outros países só começam a discutir hoje. O Brasil já estava fazendo investimentos pesados. As coisas já estavam em curso e, em uma reunião com o meu ministro da Fazenda, com o presidente do Banco Central, com o ministro do Planejamento, disse a eles, "temos agora de tratar a economia como se estivéssemos em guerra".

Não podíamos perder tempo em reuniões e ouvindo um monte de pessoas. As medidas anticíclicas tinham que ser implementadas imediatamente. E nós tivemos a participação do Congresso. Isso foi muito importante, porque todas as medidas, todos os projetos que nós mandamos para o Congresso para enfrentar a crise, o Congresso aprovou muito rapidamente. Mesmo a oposição passou nossas medidas muito rapidamente, em uma demonstração clara de que todos estavam muito preocupados com os efeitos da crise no nosso país.

É importante lembrar que em 22 de dezembro de 2008, eu fiz algo que nunca imaginei que faria. Houve um grande pânico provocado na imprensa e na mídia sobre os E.U.A, o que estava acontecendo na Grã-Bretanha, na Europa, uma crise mundial, e toda a imprensa dizendo que o consumo iria cair. Então eu fiz uma declaração em cadeia de TV, uma declaração de nove minutos, para chamar o povo brasileiro a comprar mais, consumir mais, de uma forma responsável.

Havia uma idéia de que os trabalhadores não estavam comprando mais nada porque estavam com medo de perder seus empregos, e não conseguirem pagar suas prestações, suas contas. Fui à televisão para dizer que era compreensível esse medo de perder o emprego, mas que eu tinha certeza que eles iriam perder seus empregos se não comprassem nada. Portanto, era necessário que, dentro do orçamento de cada um, comprássemos tudo que tivéssemos interesse em comprar.

Ao mesmo tempo concedemos incentivos fiscais para a indústria automobilística, para produtos de linha branca, geladeiras, máquinas de lavar, fogões, e materiais de construção. E, por último, mas não menos importante, anunciamos um programa de construção de um milhão de casas para a população de baixa renda, das quais metade para a faixa de renda muito baixa, que é de zero a três salários mínimos. E colocamos R$ 100 bilhões, o equivalente a US$ 50 bilhões mais ou menos, no banco de desenvolvimento nacional, um banco estatal, para ele poder financiar projetos de desenvolvimento.

Lançamos no mercado mais R$ 100 bilhões dos depósitos compulsórios que os bancos têm de manter no Banco Central, para abrir os fluxos de crédito. Fizemos os bancos públicos comprarem as carteiras de bancos pequenos usadas para financiar compras de carros usados e tomamos a iniciativa de comprar dois bancos importantes; a Caixa Econômica do Estado de São Paulo e 50% do Banco Votorantim. Este é um banco privado.

Por que fazemos isso? Porque o mercado de carros usados ficou paralisado, completamente sem vendas. Se você não vende seu carro usado, você não compra um carro novo, e Banco do Brasil, que é um banco estatal, não tinha experiência neste domínio, no financiamento de veículos usados; assim, ao invés de ensinar o seu pessoal a aprender sobre financiamento de carros usados, compramos um banco que tinha grande experiência no mercado de carros usados; o governo comprou 50% desse banco.

E hoje, graças a Deus, o mercado se normalizou e a indústria automobilística no Brasil está vendendo os carros novos.

E então, nós também enfrentamos um problema muito sério de venda de caminhões. Nós queríamos renovar a frota de caminhões no Brasil. E agora desenvolvemos um programa de financiamento para permitir que as pessoas possam comprar caminhões novos, em condições altamente vantajosas. Assim, o autônomo, motorista free-lance poderia comprar seu próprio caminhão.

Em julho do ano passado, lançamos um outro programa chamado Mais e Melhor Alimentação, e que financiou a compra de 60.000 tratores e 300.000 máquinas agrícolas para a agricultura familiar.

FT: Senhor presidente, há opouco o senhor disse que estava preocupado com o seu segundo mandato. Muitos financistas internacionais e os mercados e Wall Street estavam preocupados antes e durante o seu primeiro mandato. Será que eles erraram a leitura? Que tipo de socialista o senhor é?

Lula: Primeiro de tudo, eles erraram a leitura, mesmo. Se as pessoas tivessem lido minha biografia, perceberiam a forma sempre muito responsável com que conduzimos nossa atividade junto ao movimento sindical no Brasil, e se essas pessoas levassem em conta o fato de que tínhamos perdido três eleições anteriores, e que havíamos esperado por 12 anos, tempo suficiente para o partido amadurecer e para um candidato a amadurecer.

E eu era o único candidato no Brasil que não poderia falhar. Eu não podia me dar ao luxo de cometer erros. Eu não poderia proceder do mesmo modo que [Lech] Walesa fez na Polonia, ou nenhum trabalhador jamais seria eleito presidente novamente. Eu trabalhava com a idéia de que precisava ter sucesso, para que outros trabalhadores pudessem ter os mesmos sonhos que tive, e concorrer também à Presidência. Então, eu estava trabalhando obsessivamente com a convicção de que não podia cometer erros.

Assim, no plano internacional, acredito que eles fizeram uma análise sociológica apressada. Eles me julgaram erradamente, a mim próprio, ao meu partido e as possibilidades. Os melhores intelectuais no Brasil estavam nos apoiando.Tínhamos ao nosso lado a maioria dos movimentos sociais. Tínhamos o apoio da maioria do movimento operário. Tínhamos uma grande parte da esquerda política no Brasil. Também tivemos ao nosso lado o que me faltara para vencer as eleições anteriores, e que foi um grande empresário como meu vice-presidente; ter alguém da classe empresarial para ser meu vice, isso foi o caminho para eu conquistar os 20% de votos que faltavam em todas as eleições anteriores.

Então eu trouxe para ser vice-presidente uma pessoa que considero ser o melhor vice-presidente do mundo, um homem do mundo empresarial, que tem hoje a maior empresa têxtil no mundo. Ele foi meu vice-presidente e ajudou a quebrar tabus e preconceitos no mundo empresarial. Este foi um passo importante que só depois das eleições alguns setores empresariais começaram a compreender, e aqui eu quero dizer publicamente, que [o primeiro ministro britânico] Gordon Brown foi alguém muito importante, porque eme todo esse tempo ele confiou no Brasil e sempre falou bem do meu governo. E o diretor-executivo do FMI, eu me lembro de uma reunião em Paris, em 2003, quando eu estava conversando com [Horst] Köhler sobre o Brasil, sobre a minha vida. Isso foi quando eu estava com pouco menos de um mês no cargo. E, de repente, estávamos nos abraçando e chorandor.

FT: O quê, Köhler?

Lula: Sim, em Paris, 2003; janeiro de 2003. Então havia muita compreensão de alguns líderes internacionais, apoiando as nossas políticas, diferentemente de outros períodos. Todo mundo que veio nos visitar sabia dos esforços que estávamos fazendo, e então eles começaram a falar bem do Brasil pelo mundo. Assim, os mercados tornaram-se um pouco menos preconceituosos, e [Jacques] Chirac foi uma figura muito importante que me apoiou. Olha, eu estou falando sobre gente de direita.

FT: O senhor persuadiu [George W] Bush?

Lula: Sim. Sou muito grato ao presidente Bush. Lembro muito bem, como se fosse hoje. Em 10 de dezembro de 2002, antes da posse, fui à Casa Branca para falar com o presidente Bush. Bush estava falando sobre a Guerra do Iraque, o futuro da Guerra do Iraque, de uma forma muito obsessiva, dizendo que estava lutando contra o terrorismo …

Ele falou muito francamente. Após 40 minutos eu disse ao presidente Bush: "Presidente Bush, o Iraque fica a 14.000 quilômetros de distância do meu país. Não tenho nada contra o Iraque, mas tenho uma outra guerra no Brasil. Essa é a guerra para acabar com a fome no meu país. Esta é a minha prioridade. Assim, daí em diante, nós estabelecemos uma amizade muito boa. Tornei-me um amigo de Bush.

FT: Senhor presidente, quero fazer outra pergunta sobre a economia, mas muito brevemente, o senhor se referiu à sua formidável coligação que o ajudou a ganhar o primeiro mandato. Essa coligação pode se manter unida quando deixar o poder?

Lula: Sim

FT: Por quê?

Lula: Sim, e estamos sempre construindo esta coligação. Primeiro de tudo, porque sei que quem vai ser o futuro presidente não será capaz de mudar todas as conquistas que vêm beneficiando a sociedade brasileira. Em segundo lugar, porque eu tenho uma candidata muito boa, muito competente, que conhece o Brasil muito bem. Pouquíssimas pessoas conhecem o Brasil como ela, é a grande gestora do sucesso do nosso governo.

FT: Mas ela não tem o seu carisma, senhor presidente.

Lula: Ela vai ter que construir. Uma coisa que eu acredito que é importante é que se eu conseguir eleger Dilma, minha grande contribuição será para permitir que ela desenvolva seu próprio estilo, sua própria maneira de fazer as coisas.

FT: Alguma vez o senhor pensou em um terceiro mandato? Pergunto porque acabo de passar uma hora e meia com o presidente [da Colômbia, Álvaro] Uribe.

Lula: Eu comecei a entrevista dizendo que estava com medo do meu segundo mandato. Acredito que o sucessor que consiga vencer uma eleição não tem o direito de pensar num terceiro mandato, porque o sucessor, uma vez eleito, tem direito apenas a um segundo mandato.

FT: Vamos voltar para a economia. Esse crescimento atual é sustentável? É excessivamente dependente de commodities?

Lula: Não, não é dependente de commodities. O crescimento é sustentável porque envolve diversos setores. Commodities sim, são importantes. O setor industrial é importante. As exportações são importantes. A indústria de construção naval e da indústria da construção são importantes. A indústria petroquímica é importante. Ou seja, nós tomamos a decisão de tornar o Brasil uma economia grande e verdadeira, e Deus ajudou-nos de duas formas, basicamente.

Antes de mais nada, porque o mundo vai continuar a precisar de comida, e o Brasil tem todas as condições adequadas para produzir parte dessa comida. Em segundo lugar, porque descobrimos uma enorme reserva de petróleo, e nós não queremos usar o petróleo como tradicionalmente os países produtores têm usado , para serem meros exportadores de óleo cru, e óleo cru não combina com desenvolvimento nacional. Portanto, estamos desenvolvendo um fundo dentro do novo marco regulatório da indústria do petróleo só para cuidar especificamente …

FT: Não o preocupa um excessivo peso da mão do Estado?

Lula:
Não, não estou. Estamos desenvolvendo um fundo com o objetivo de investir em educação, ciência e tecnologia, saúde, cultura e meio ambiente. Estas são as prioridades. É um fundo que será investido nos mercados, e vamos repassar todos os investimentos que tivermos neste fundo. Nós não vamos gastar o dinheiro do fundo. Queremos ser exportadores de derivados de petróleo, e não exportadores de óleo cru, porque queremos desenvolver uma forte indústria petrolífera e uma indústria naval forte também. Queremos fabricar nossas plataformas de perfuração, nossas próprias plataformas offshore, e os nossos próprios navios. E nós queremos desenvolver uma forte indústria petroquímica. Já estamos trabalhando nisso.

FT: A Petrobras é uma empresa de classe mundial. Sabemos disso. Mas o senhor vai precisar de alguma tecnologia estrangeira.

Lula: Sim, e nós queremos isso, e queremos partilhar o nosso conhecimento com estrangeiros também. Então, é por isso que estamos fazendo todos os esforços para incentivar as empresas de petróleo de todo o mundo a desenvolver parcerias conosco na construção de estaleiros com docas secas, para que possamos fazer as coisas no Brasil.

FT: Muitas pessoas que criticam seu governo, mas também pessoas que não são tão críticas, disseram que há aqui uma expansão da mão do Estado. Houve pressão sobre a Vale, por exemplo, para investir na produção de aço. Como vê a relação entre os setores público e privado no futuro governo?

Lula:
Eu acredito que, se você analisar as coisas corretamente, duvido que em qualquer momento da história do Brasil o setor privado tenha tido mais respeito do Estado do que tem hoje. Duvido que eles não tenham gozado de tanto respeito, ou que tenham ganho tanto dinheiro. O que peço a Vale é que transforme o minério de ferro em aço no Brasil e, ao mesmo tempo, compre o maquinário e os navios de que precisa no Brasil, porque é assim que você trazer a tecnologia para o país.

Agora, se você não fizer isso, o que acontece? Nós vamos vender o nosso minério de ferro para a China. A China vai construir os grandes navios. AChina produz 540 milhões de toneladas de aço, eo Brasil só fabrica 35 milhões de toneladas de aço. E também precisamos exportar um pouco de bens com valor agregado.

FT: Senhor presidente, o senhor é um patriota econômico, então? Ou é um nacionalista econômico?

Lula: Eu sou um patriota, um patriota econômico. Isso é um termo que eu gosto. Sim, gosto disso. Isso me agrada. Você tem que pensar no futuro do país. O minério de ferro e o petróleo, isso são coisas que funcionam para fora, por isso, se você não tiver cuidado, logo você esgotará a oferta, e ficará órfão. Então o que precisamos fazer? Temos que aproveitar este momento e construir uma base industrial mais sólida no Brasil. Não estamos cometendo nenhum pecado. Queremos ser um país mais industrializado.

FT: Não é um pecado, mas as pessoas querem entender qual forma de Estado vai haver no futuro. Qual o tamanho do papel do Estado na determinação do futuro da economia do Brasil?

Lula:
A minha visão do Estado é que esta discussão… na minha opinião, a discussão usual sobre o papel do Estado terminou com o resultado da crise global. Por um longo tempo, em todo o mundo, inclusive no Brasil, as pessoas disseram que o Estado falhara e os mercados governariam tudo. No Brasil, você sabe, eles pensaram que o mercado devia regular até a educação , o que é uma ideia absurda.

Então, primeiro de tudo, quero deixar isto bem claro aqui, eu sou contra o Estado ser o gestor da economia. Eu sou contra essa ideia. O Estado tem que ser forte, mas como um catalisador do desenvolvimento, uma entidade que impulsiona o desenvolvimento em nível regional no nosso país, e o Estado ao mesmo tempo, deve exercer a supervisão das boas práticas, econômicas e políticas. E podemos dar-lhe um exemplo: por que o sistema financeiro no Brasil não quebrou na crise? Porque ele é fortemente regulamentado.

FT: Porque lá o senhor não tem muitos loiros de olhos azuis…

Lula: É importante esclarecer isso, porque quando falei sobre cabelos louros eolhos azuis, quando a crise cresceu, eu estava reagindo aos comentários de pessoas que colocavam a culpa da crise nos migrantes e imigrantes. A gente pobre da África e do mundo está tendo de pagar a crise e não foram eles que a causaram. Então é por isso que eu disse, esta crise não é uma crise dos pobres, não vem dos pobres, ou latino-americanos, ou de africanos. Essa crise é vem dos ricos com olhos azuis. E eu disse isso com o Gordon Brown no meu palácio, no Palácio do presidente.

Você sabe o que fizemos no Brasil há dois meses? Legalizamos todos [os estrangeiros] que estavam em situação irregular no Brasil, todos eles, para dar uma demonstração clara aos países ricos de que não temos de perseguir os pobres por causa de uma crise econômica que não é culpa deles.

Agora, por favor, preste atenção numa coisa. Você pode imaginar como seria se todos os países ricos gastassem 10% do dinheiro que eles gastaram na crise global ,para salvar o sistema financeiro, numa política de ajuda aos países mais pobres do mundo? Os países ricos dizem que não podem arcar com o financiamento da redução da pobreza nos países pobres. Mas, para salvar seus bancos, eles encontraram trilhões e trilhões. Se tivessem dado parte disso aos países pobres, o mundo seria um lugar melhor. O dinheiro que eles não tinham para ajudar os países pobres, de repente apareceu. Trilhões e trilhões de dólares apareceram para socorrer um sistema financeiro que tinha sido quebrado de uma forma irresponsável.

Então, eu acredito que isso deve nos servir de advertência. O Estado não pode controlar tudo ou intrometer-se em todos os assuntos, mas você também não pode manter o Estado longe de tudo, como era nos anos 80 e 90.

FT:
Senhor presidente, perdoe a pequena brincadeira, mas eu gostaria de citar uma outras palavras suas, voltando às relações exteriores. O que eu pensei que era um pouco ideal: o senhor disse que quando começou como sindicalista, se havia um problema no Brasil, culpava o governo. Então, quando o senhor disputava a presidência como candidato da oposição, se havia um problema, culpava o governo. Mas quando o senhor se tornou presidente do Brasil, havendo um problema em seu país, o senhor culparia os Estados Unidos…

Lula: Não, não vou para o inferno por este pecado. Nunca transferi minhas responsabilidades para os outros. Quando eu era um líder trabalhista, eu culpava menos o governo, porque era um líder dos metalúrgicos. Isso não tinha nada a ver diretamente com o governo; era diretamente com a classe empresarial. Quando eu combatia o governo era porque eles não forneciam informações sobre as taxas de inflação. Eles ocultavam essa informação, ou mentiam, ou quando o governo proibiu as manifestações dos trabalhadores ou que se chegasse a um acordo. Eles intervinham na mesa de negociação. Mas a minha luta naqueles dias era contra os empregadores, e não contra o governo.

É verdade, sim, que todo mundo que é oposição põe a culpa no governo. É verdade. Eu fiz isso também. O meu partido fez isso também. Mas, por favor, eu nunca coloquei a culpa seja no imperialismo ianque, e menos ainda nos outros países ricos, porque a culpa, do Brasil ser o que é, a culpa deve recair na elite brasileira, a elite econômica e política. Esses são os que devem ser culpados. Gente que não tem a mentalidade para pensar nas questões sociais… Eles não pensam no país como um todo e, durante séculos, ficaram subordinados a outros interesses, subservientes.

Tenho dito para muitos líderes, os líderes políticos da América Latina, que parem de culpar os outros. Olhem para dentro de seu país, o que acontece dentro de seu país. O que acontece com a classe política em seu país, olhe para ela. Como é que o setor empresarial se comporta em seu país? É muito fácil você transferir as responsabilidades para outros, culpar os outros.

FT: O senhor mantém boas relações com outros países da América Latina que seguem políticas diferentes das suas, e têm ideias diferentes das suas.

Lula: Bem, eu carrego comigo uma lição que eu aprendi: penso em quando o presidente Nixon, em 1973, decidiu fazer da China um parceiro comercial preferencial. Acredito em convivência com a diversidade. Nós não temos o direito de pensar que outros povos devem pensar como nós. Temos de trabalhar muito e ademocracia permite haja relações pacíficas entre os diferentes países.

E olhe como isso é extraordinário. Temos excelentes relações com a Colômbia e o Peru, temos excelentes relações com Venezuela e Bolívia. Por que eu faço isso? Porque para mim, as diferenças entre nós são muitas vezes históricas. Nós ainda temos na América Latina muitos problemas que herdamos do século 19; fronteiras, questões de fronteiras terrestres, questões marítimas.

Então, qual é o papel de um país que tem a maior economia, a maior da população e muito mais tecnologia? Qual é o papel que o Brasil deveria jogar? Não é o de estabelecer uma política hegemônica para com os outros países. Ele deve estabelecer uma relação democrática, para que as pessoas possam ver que não estamos interferindo intrometendo-nos na política interna, em sua soberania, na sua política soberana.

Você não pode encurralar as pessoas. É muito importante entender que… Eu sempre digo que o Brasil não deve trabalhar por hegemonia, mas apenas para construir parcerias, porque durante o século 20, ou pelo menos, dois terços do século 20, a política de Estado dos EUA foi no sentido de convencer países sul-americanos de que o grande império era o Brasil.

Então olhe para este paradoxo. Os empresários bolivianos tinham medo dos empresários brasileiros, mas não tinham medo dos americanos. Os empresários mexicanos tinham medo dos empresários brasileiros, mas não dos americanos. Chávez era professor na Academia Militar, e dizia isso publicamente em suas aulas, que os militares venezuelanos deviam estar muito alertas contra o império brasileiro. Na política você só aprende a teoria maquiavélica: dividir para conquistar. No Brasil, no meu governo, começamos a reconstruir a confiança na América do Sul, porque você não pode desenvolver políticas sem confiança. E graças a Deus, estamos conseguindo fazer isso.

FT: Os Bric são quatro os países [Brasil, Rússia, Índia e China] com interesses próprios, divergentes. Pensa que é um grupo significativo?

Lula: Sim, é. O maior exemplo que posso lhe dar é a União Europeia. Parecia impossível, há 30 anos, imaginar que a União Europeia seria o que é hoje. Por quantos anos a França foi bombardeada pela Alemanha? Então, de repente, todos esses países estão juntos, e agora ainda decidiram eleger um presidente da União Europeia e um ministro das relações exteriores. Isso é algo fantástico. Quem poderia imaginar que a Alemanha iria eleger uma mulher da Alemanha Oriental para chanceler?

Então, é para essas coisas positivas que temos de trabalhar. É como quando você encontra uma nova namorada. Se você olhar apenas defeitos e falhas, não vai a lugar nenhum. Mas se você olhar pelo lado positivo, pode acabar se casando. Na política, temos de saber que existem divergências entre os Bric, e colocá-las de lado. Colocar as divergências de lado e começar a trabalhar os pontos que podemos construir juntos, e é assim que vamos construir uma aliança forte entre os Bric.

Não se trata de exigir que alguém faça concessões sobre as coisas que eles não acreditam. Queremos desenvolver objetivos que possam ser perseguidos por todos. Deixe-me dar um exemplo. Sugeri na reunião passada dos Bric, que foi em Yekaterinburg, que devemos começar a comerciar com nossas próprias moedas. Nós não precisamos do dólar. Podemos comerciar com a nossas próprias moedas doméstivcas.

Isso ajudaria sobretudo as pequenas e médias empresas a ter acesso a nossos mercados domésticos, e os bancos centrais forneceriam a garantia. Qual é o problema? Não há problema. É apenas uma questão cultural, porque estamos acostumados com o dólar, mas isso pode mudar. E esta é uma mudança extraordinária para esses países que têm de comprar dólares. Agora, nesta crise, tivemos que colocar dinheiro de nossas reservas para garantir os nossos exportadores, devido ao arrocho do crédito.

FT: Ninguém poderia imaginar… Vocês estavam mesmo emprestando dinheiro ao FMI. Há aí uma ironia histórica.

Lula: A ironia foi quando eu chamei de Rato, do FMI, e disse a ele que não queria o seu dinheiro. Disse, 'não, nós precisamos emprestar dinheiro ao Brasil. O Brasil precisa tomar. O Brasil deve manter seus empréstimos com o FMI. É muito importante para mim, para mostrar que o Brasil'… Eu disse: 'não, eu não quero seu dinheiro'. Ele ficou realmente perturbado quando recebeu de volta os US$ 16 bilhões que nós emprestou. E ainda trabalho com a ideia de que vamos chegar ao final do meu mandato com uma taxa de inflação de 4%. Não muito tempo atrás eu costumava sonhar em acumular US$ 100 bilhões em reservas cambiais. Em breve teremos 300 bilhões.

FT:
Falemos de Copenhague. O Brasil está em uma posição incomum. Tem uma matriz energética limpa e pode cortar suas emissões de CO2 reduzindo o desmatamento. Mas isso é muito difícil para os outros países emergentes? O que o Brasil pode oferecer em termos de liderança?

Lula: O Brasil irá a Copenhague com muito cuidado e grande responsabilidade. Em primeiro lugar, já assumimos o compromisso, em setembro do ano passado na ONU, de estabelecer uma meta, um alvo, de reduzir o desmatamento em 80% até 2020. E o Brasil tem outras coisas que pretende fazer. Primeiro, porque 85% da nossa energia elétrica é limpa. E de nossa matriz energética total, 47% é limpa. Nenhum outro país tem tanta energia limpa. O Reino Unido tem só 2% de energia limpa.

Agora, o Brasil compreende a realidade de cada país; e o Brasil não vai fazer um discurso fácil de fazer exigências aos outros. Não, vamos mostrar em Copenhague qual é a meta para o Brasil e não vamos querer obrigar os outros países a adotar a meta brasileira.

Objetivos no Brasil são objetivos do Brasil, mas vamos trabalhar para que possamos construir um acordo que possa ser viável para outros países. Creio que algo importante já está ocorrendo. Todo mundo percebe que todos nós temos que fazer algo. E eu acredito que com todos fazendo um pouco de sua parte, podemos evitar a morte do planeta.

Temos um processo de aquecimento de 2 graus nos últimos 30 anos. Nós estamos tentando trabalhar com a ideia, juntamente com outros países e, certamente, a minha conversa com o primeiro-ministro Gordon Brown noite será na questão ambiental. Nós já conversamos com os EUA, com a França e com a Alemanha. Em 26 de novembro, vamos ter uma reunião com os países da Amazônia, em Manaus, a capital do Amazonas. Já temos o mapeamento do zoneamento agroecológico da cana para a floresta, e agora estamos fazendo um levantamento de como podemos recuperar as terras degradadas no Brasil, e estamos fortalecendo nossa política de biodiesel. Acabamos de aprovar para 1 de janeiro o diesel B5. Para o próximo ano vamos ter uma mistura de 5% de biodiesel no óleo diesel.

FT: O que vai pedir de Gordon Brown?

Lula: O Brasil não está pedindo nada.

FT: E o que Gordon Brown vai pedir ao Brasil?

Lula: O Reino Unido sempre foi será um ator internacional. Eu acredito que o Reino Unido deve trabalhar com a ideia da Europa, para avançar um pouco mais, inclusive em termos de biodiesel no óleo diesel e também em termos de redução do aquecimento global. Deverá haver um fundo para financiar os países mais pobres. A UE desenvolverá um trabalho extraordinário de sequestro, sequestro de carbono.

FT: Teria que ser como o Fundo Amazônia do Brasil?

Lula: Pode ser algo semelhante ao Fundo Amazônia. Estamos indo à reunião com a mente aberta, de modo que outras propostas poderiam ser benvindas. Acho que não é hora de radicalizar. O bom senso deve prevalecer. Se quiséssemos apenas fazer um discurso ideológico, um discurso fácil, poderíamos ganhar alguns aplausos, mas não teríamos nenhum resultado. E agora não é o momento de jogar a culpa em ninguém. Agora é a hora de encontrar uma saída.

FT:
Senhor presidente, muito obrigado.