Cidadão Boilesen discute punição aos torturadores da ditadura

Em agosto deste ano, completaram-se 30 anos da Lei de Anistia. No entanto, para o cineasta Chaim Litewski, muita coisa ainda precisa ser discutida. "Os torturadores estão sendo julgados em diversos países da América Latina, e não no Brasil. É preciso levantar essa discussão. O que não se pode é fingir que o assunto não existe", disse ao UOL Cinema. Se a questão precisa ser discutida, um valioso argumento está nos cinemas: o documentário "Cidadão Boilesen", assinado pelo próprio Litewski.

O filme, que ganhou o festival de documentários É Tudo Verdade, em abril passado, é um retrato de um personagem controverso da história recente do país: Henning Albert Boilesen, um empresário dinamarquês que se radicou no Brasil e se envolveu com o governo militar e, quando presidente do Grupo Ultra, ajudou a financiar a Operação Bandeirantes (Oban) – que prendia e torturava suspeitos – e acabou assassinado pela guerrilha em São Paulo, em 1971. "Ele é uma figura que a historiografia oficial tenta varrer para debaixo do tapete, mas é importante que essa ligação entre empresários e militares também não seja esquecida", assinala o cineasta.

Litewski começou a se interessar por Boilesen quando ainda era adolescente nos subúrbios cariocas. "Eu o via na televisão, sempre ao lado de militares. Depois do assassinato, eu comecei a guardar recortes de jornais e a pesquisar ainda mais sobre ele. Queria fazer um livro". O livro acabou não se concretizando. Em 1993, quando morava nos Estados Unidos, o diretor ganhou um aliado num um amigo dinamarquês que havia coberto a morte de Boilesen para publicações de seu país. "Depois eu acabei tendo de tocar o projeto sozinho. Foram 15 anos fazendo entrevistas, pesquisando e depois montando o filme".

O filme traz depoimentos tanto de guerrilheiros como militares, além do filho de Boilesen, Henning Albert Boilesen Jr. "Eu tive certeza de que o filme realmente seria feito quando consegui o depoimento de Carlos Eugenio Paz, que, como ele conta no documentário, foi o responsável pelo tiro de misericórdia dado em Boilesen. Depois gravamos uma entrevista com o filho dele. Eram os dois depoimentos mais importantes".

Para conseguir esses e outros depoimentos – incluindo entrevistas com militares como os coronéis Brilhante Ustra e Erasmo Dias e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso – Litewski conta que foi necessária muita negociação com seus entrevistados. "Era preciso que eles ganhassem minha confiança, soubessem que estava fazendo um filme idôneo. Eu queria dar voz aos dois lados, não tomar partido. Embora o que eu pense fique claro nas entrelinhas".

Boilesen Jr, por exemplo, levou cerca de três anos para aceitar participar do filme e deu um depoimento de 3 horas. Entre outras coisas, diz que, até hoje, não consegue entender por que o pai foi assassinado. "Quando o filme ficou pronto, ele foi a primeira pessoa para quem mandei uma cópia em DVD. Acredito que ele deva ter visto, mas até hoje não sei o que ele achou". Já o coronel Brilhante Ustra, ex-comandante do DOI-CODI, órgão central na repressão política, pediu as perguntas previamente antes de dar seu depoimento. "Passamos para ele tudo o que queríamos perguntar, e ele escreveu todas as resposta e as lê na frente da câmera. E eu faço questão de deixar isso bem claro no filme."

Para transformar num documentário de cerca de 90 minutos as 200 horas de material bruto, Litewski contou com a ajuda do montador Pedro Asberg. Como parâmetro, o diretor tinha em mente que, para ele, 'história é tudo aquilo de que você se lembra'. A dupla levou mais de dois anos e meio para finalizar a montagem. "Foi um processo de submersão muito grande. Conhecíamos todos os depoimentos em detalhes", conta Asberg, que nesse período foi a Nova York três vezes, onde mora o diretor, para trabalharem juntos.

Nesse meio tempo, "Cidadão Boilesen" participou do festival de documentários É Tudo Verdade, onde se consagrou o vencedor. "Foi uma grande surpresa para mim. Achava que o filme passaria apenas em universidades, mostras, cineclubes. E agora, depois do prêmio e tudo mais, vai ser lançado nos cinemas". O dinheiro ganho no festival – R$ 100.000,00 – foi investido na pós-produção do filme, embora o diretor esclareça que a montagem não sofreu nenhuma alteração.

Fatos e ficções

Aparentemente, Litewski não foi a única pessoa interessada na figura de Boilesen. O dramaturgo e produtor cultural Roberto Elisabetsky estava passando pelo local quando o empresário foi assassinado, numa rua da região dos Jardins, em São Paulo. Isso foi tão marcante para ele que, anos mais tarde, escreveu uma peça, "Sonata Tropical", cuja temática é o envolvimento de empresários com os militares para tentar deter as lutas armadas na época da ditadura.

"Acho que para o Elizabetsky, o assassinato do Boilesen foi tão marcante quanto para mim", conta Litewski. Quando soube da peça, o diretor entrou em contato com o dramaturgo e conseguiu uma leitura dramática do texto, que conta com a presença dos atores Paulo Betti e Tuna Dwek, nos papéis de um empresário e uma socióloga francesa.

"Para ele, assim como para mim, a peça e o filme foram um exorcismo de um grande fantasma", descreve o diretor. Aliás, o exorcismo não parece ter sido apenas para eles. "Depois da sessão no É Tudo Verdade, muita gente veio me abraçar, muita gente chorando." Agora, com o filme concluído, prestes a chegar aos cinemas, o diretor diz sentir não apenas orgulho, mas também um alívio. "É uma sensação de dever cumprido. Eu podia ter desistido abandonado, mas fui até o fim. Paguei o filme do meu próprio bolso. Nem sei quanto gastei, mas tenho certeza de que foi mais do que eu deveria ter gasto", conta o diretor que trabalha no departamento de televisão da ONU, como produtor e diretor de programas de notícias, documentários e reportagens.

Como ele mesmo define, o filme não tem intuito de ser revanchista. "Eu creio que a sociedade está pronta para discutir as questões que não foram esclarecidas do passado, como a tortura. Meu filme aborda alguns pontos, mas ainda existem muitas coisas a serem investigadas".

Fonte: UOL