Bate papo com Jairzinho, o Furação de 70

O Furacão da Copa de 1970, Jairzinho, passeia pela sua história de vida com a agilidade com que deixava os marcadores adversários para trás. Também pudera, somente um verdadeiro furacão para reunir tantas experiências em uma única existência. Relatos de superação, tragédias, sonhos e glórias. Muitas glórias…

Noite de Natal. A casa humilde se enche de alegria com a chegada do menino Jair. No ano de 1944 a residência dos Ventura respirava euforia. O casamento ia bem, a guerra já dava sinais de um fim iminente e agora tudo se via coroado com a chegada do primeiro filho. Que recebeu o mesmo nome do pai, Jair Ventura, mas acrescido de um Filho no sobrenome. Foi a senha para que o nome que seria imortalizado no mundo do futebol ganhasse forma ainda no berço: Jairzinho.

Mas a estrela cadente típica do cenário natalino rodopiou. O pai faleceu ainda quando ele era bebê e a mãe, com o filho único a tiracolo, resolveu deixar o subúrbio de Duque de Caxias em direção à Zona Sul carioca. Foi em Botafogo que Jairzinho despontou para a vida e, com a mítica camisa alvinegra, substituindo ninguém menos do que o inigualável Mané Garrincha, se fez conhecido em todo o Brasil. Mas o futebol dele pedia mais. E foi vestindo verde e amarelo que Jair levantou o tricampeonato mundial pela seleção brasileira em 1970, no México. Sua performance avassaladora & marcou gols em todos os jogos, sendo sete gols ao todo & rendeu, além do título, o apelido que acompanha qualquer relato biográfico do ex-atleta, Furacão da Copa.

Jairzinho esteve em Fortaleza no início de dezembro para receber uma homenagem na 38ª Noite das Personalidades do Esporte e conversou o jornalista Ciro Cãmara, do jornal  O POVO. Durante o bate-bola, Jair viaja pelo tempo. Das peladas em General Severiano ao profissional do Botafogo, as passagens pela seleção brasileira e, lógico, o tricampeonato mundial na Copa do Mundo do México. Tudo relatado com a volúpia de um furacão e a empolgação de um juvenil prestes a estrear como profissional.

Como o futebol surgiu na sua vida?

Dizia a minha mãe, que não está mais presente entre nós, que, quando ela estava grávida eu já dava os meus chutes. Logo que eu nasci, já com meus sete anos, já apresentava um conhecimento dos fundamentos do futebol mais avançado do que uma criança dessa idade. E eu fui seguindo. A minha mãe foi muito importante porque eu perdi meu pai (Jair Ventura) com dois anos e ela foi pai, mãe, irmão e me ajudou muito na carreira.

Sua família se mudou logo após o seu nascimento de Duque de Caxias para o bairro Botafogo, para a rua General Severiano. Essa sua proximidade com um clube grande como o Botafogo foi importante para o seu início no futebol?

Foi demais. Eu morava do lado do campo do Botafogo e torcia pelo clube. Eu queria entrar no Botafogo e tive a oportunidade depois de um jogo contra um jogador do Botafogo, o Lucas (eterno reserva de Nilton Santos na lateral-esquerda), que namorava uma amiga nossa lá da rua. Ele jogava peladas nas ruas com a gente mas nunca tinha nos visto jogar calçado. E um dia fomos jogar calçados, contra um adversário que ele jogava, uma pelada, e eu fiz dois gols. Daí ele me convidou para eu fazer um teste na categoria de juvenil do Botafogo (em 1960).

Você foi formado no Botafogo para ser o ponta-direita que substituiria o Garrincha. Você tinha consciência dessa importância futura? E como tratou a pressão por tanta cobrança?

Olha, quando eu voltei do Campeonato Pan-Americano (de 1963, em São Paulo, em que o Brasil levou o ouro) eu tive um estalo. Eu falei: “Poxa, Jair, você tem que tomar uma atitude benéfica pra você. Você não pode continuar sendo ponta-direita. Assim você não vai jogar nunca no time principal do Botafogo, porque tem o Garrincha lá“. E eu tomei a decisão de sair um pouco da ponta-direita. E, na época, o treinador era o Zoulo Rabelo e ele havia pedido ao Paraguaio, que era o treinador do juvenil, para que todos os campeões do Pan-Americano passassem a treinar com os profissionais. E eu fui. No primeiro dia de coletivo eu falei pro Seu Zoulo: “Seu Zoulo, eu queria informar pro senhor uma situação. Eu não jogo só de ponta-direita, eu jogo de ponta-de-lança (meia-atacante, atualmente) e centroavante“. E ele adorou. Na cabeça dele o Quarentinha (maior artilheiro da história do Botafogo, com 313 gols) já estava em decadência. E ele, em um certo coletivo, me botou pra treinar, eu lembro como se fosse hoje, no lugar do Quarentinha, no segundo tempo. Isso é interessante. Aí o Didi me chamou rapidinho e disse: “O garoto, vem cá. Eu já conheço você, conheço a sua característica. Pode ficar tranquilo que todas as bolas que eu pegar eu vou botar você na cara do Manga“. O Manga era o goleiro titular mas treinava no reserva pra pegar (jogar contra) a linha de frente. Daí começou o treinamento e com uns 15 minutos eu já tinha feito dois gols. E o que me marcou foi que o ataque era Garrinha, Didi, Jairzinho, Amarildo e Zagalo. 

Então você iniciou como ponta-de-lança?

Jairzinho – No profissional foi. Depois que o Garrincha parou aí eu passei pra direita, mas acho que joguei mais no Botafogo foi como ponta-de-lança mesmo, eu tava mais habituado.

Para muito conhecer de futebol a Copa de 1966, na Inglaterra, deveria ter sido a Copa em que você explodiria, como aconteceu em 1970. Você considera isso mesmo; não estaria precoce?
 
Total! O que aconteceu foi uma desorganização nível A (em 1966). Você convocar 44 jogadores, a maioria já passado da idade, foi uma confusão imensa. Tudo isso tirou o que nós (ele) colocamos de muita importância, que é a harmonia. Foi horrível. E eu joguei 66 e, ao lado do Pelé, fomos os únicos que jogamos as três partidas (o meia santista Lima também jogou). E eu joguei de ponta-esquerda as duas primeiras partidas. Logo eu que nunca treinei de ponta-esquerda! Pra você sentir o nível de desorganização.

Mas na ponta-esquerda não tinha o Edu, do Santos?

Tinha o Edu e o Paraná (do São Paulo). Mas o (técnico Vicente) Feola foi lá, no dia do jogo (de estréia no Mundial, diante da Bulgária), uma hora antes e diz o time, já no vestiário. E coloca na ponta-esquerda Jairzinho. 

E você foi, lógico! 

Claro! Jogar uma Copa do Mundo não importa. Aí joguei as três partidas. As duas primeiras (contra Bulgária & 2 a 0; e Hungria – 1 a 3) como ponta-esquerda e a terceira (Portugal 3 a 1) na direita, no lugar do Garrincha.

E com relação à Copa do Mundo de 1970. Existia alguma possibilidade daquele time do Brasil não ter sido campeão no México?

Tinha sim! Nos já começamos perdendo o primeiro jogo contra a Tchecoslováquia (venceram de virada por 4 a 1); teve um jogo complicado que foi contra a Inglaterra (vitória por 1 a 0), que todo mundo diz que foi o jogo da Copa, a decisão antecipada. Contra o próprio Uruguai também (3 a 1 na semifinal), o Peru (4 a 1) tinha uma seleção fantástica…

É porque, devido à qualidade bem acima da média dessa seleção, existe uma espécie de romantização da equipe. Mas os adversários eram realmente complicados…

Eram todos de nível. A Tchecoslováquia era bicampeã da Europa (na verdade, Jairzinho se equivoca aqui. Os tchecos venceriam a Eurocopa de 76. Talvez tenha se confundido com a Hungria, bicampeã olímpica em 64 e 68), a Inglaterra era campeã do Mundo, a Romênia era vice-campeã da Europa (era a Iugoslávia, na verdade). A seleção de 70 do Peru foi a melhor deles, treinada pelo nosso Valdir Pereira, o Didi. Aí vinha a tradição do futebol uruguaio, mas que eu qualifiquei como a pior seleção que enfrentamos. Aquele gol deles contra a gente foi acidente, o Cubilla chutou a bola e ela foi mastigando e entrou (na vitória brasileira por 3 a 1 na semifinal).

O fato de a Itália ter passado por uma semifinal extremamente desgastante (ao vencer a Alemanha por 4 a 3 na prorrogação) facilitou quanto a vida de vocês na decisão da Copa? 

Rapaz, ajudou muito, muito mesmo. Além da qualidade, a seleção de 70 foi considerada a mais bem preparada (fisicamente) de toda a competição. O Brito e eu fomos eleitos os dois com melhor preparo físico. Então, a Alemanha só nos ajudou ali. 

E quanto a marcar gols em todos os jogos. Em algum momento isso virou uma obsessão para você, como foi tratar com a pressão de entrar para a história também dessa maneira? 

Não existia pressão ou obsessão. Eu sentia era muito apoio dos meus amigos, das pessoas que mandavam telegrama pra mim. Eu me preparava pro Brasil ganhar e eu me preparava pra aproveitar as oportunidades, que eram muito raras. E aconteceu. Eu aproveitei duas (chances) no primeiro jogo logo. No segundo jogo, contra a Inglaterra eu tive duas chances mais claras, mas não tão licitas como foi a do gol. E nos outros jogos tudo foi acontecendo pela minha movimentação, porque entre os atacantes eu era o que tinha mais liberdade ofensiva, pela minha grande forma.

E passando em revista toda a sua carreira, qual foi o grande momento dela, foi mesmo no México?

Sem dúvida. Ali o mundo todo conheceu o Jairzinho, todo mundo faz referência ao Jairzinho com a Copa de 1970. Copa do Mundo é primeiro plano e todo mundo quer ser campeão. O objetivo de todo jogador é participar de uma Copa do Mundo. Ele tem vários objetivos, entrar no clube, subir pro profissional, ser campeão. Mas sempre objetivando ir pra seleção brasileira principal e ser campeão do mundo. 

Você já revelou anteriormente considerar Garrincha e Pelé os melhores do mundo nas posições de cada um. Como você, que atuou ao lado dos dois, pode explicar o que cada um deles possuía de mágico.

A velocidade de raciocínio. Eles pensavam muito rápido e possuíam um repertório de improvisação fantástico. O que eu vi eles fazerem foi coisa de louco.

E quem foi o melhor entre os dois? 

Essa eu não respondo. Só mantenho que cada um foi o melhor em sua função (risos). 

Você já declarou que, assim como em 1958 foi a Copa do Pelé e 1962 foi a do Garrincha, a Copa do Mundo de 1970 foi a Copa do Jair. Você se considera fundamental em que ponto pra conquista do tri?

Eu digo que a Copa do Mundo de 58 foi a do Pelé porque o Pelé explodiu em 58, fazendo aqueles gols maravilhosos. Em 62 o Pelé machucou e o Garrincha assumiu a responsabilidade total. O Garrincha fez gol de perna esquerda, que ele não fazia, fez gol de cabeça, de falta. O jogador se inspira e assume a condição de líder. Foi o que aconteceu comigo em 70. Eu me inspirei. Tava realmente focado.

Você é classificado como um dos descobridores, entre aspas, do Ronaldo Fenômeno. Como foi a circunstância em que você o conheceu, já dava pra perceber que ele era diferenciado? 

Eu treinava o São Cristóvão, nós até subimos (para a Primeira Divisão fluminense) nesse ano, e teve um dia em que choveu muito e o treino foi cancelado. Eu perguntei pro pessoal que outro esporte estava havendo naquele momento e me disseram que tinha jogo de futsal no ginásio. Eu fui lá e vi aquele menino já pronto, com toda aquela habilidade, visão de jogo, rapidez. Era um jogo contra uma equipe que eu nem lembro qual era. Daí falei pro pessoal que quando tivesse outro jogo em casa me chamassem que eu queria ver. Eu nem disse que tava interessado nele. Daí, coisa de um mês depois, teve outro jogo e ele jogou ainda mais. Eu perguntei se ele jogava campo e ele disse que sim e ele ficou treinando no São Cristóvão e depois foi pro Cruzeiro.

E como foi essa negociação?
Jairzinho – Eu não negociei. Eu apenas descobri o Ronaldo, quem negociou foram duas pessoas que faziam parte. A parte administrativa não era comigo, a minha parte era técnica. 

Você não chegou a empresariar o Ronaldo?
Jairzinho – Não, não, nunca! Quem empresariou ele foram duas pessoas que eu não gosto nem de falar o nome deles (Alexandre Martins e Reinaldo Pitta).

E hoje em dia você empresaria jogadores? 

Não, eu só atuo como treinador. Agora, se alguém me pede uma indicação eu indico. 

Como treinador, você sente a dificuldade de se praticar um futebol mais ofensivo?

Muito, principalmente porque não aparecem mais pontas, nem pela esquerda nem pela direita. Você tá no clube e só aparecem meias e atacantes. 

Então é um problema de formação? 

Sim, justamente. Mas também é um problema de promoção, de comunicação, de marketing. Você tá enxergando, o que você tá vendo te estimula. E hoje não existe essa promoção do bom ponta, os garotos de dez anos pra cima, ficam receosos de dizer que jogam na ponta, por mais que eles joguem nas pontas.

Também não falta mais ousadia dos treinadores? A questão de se valorizar muito um futebol de resultados, até para não perder o emprego, não acaba sendo como um tiro no pé na qualidade? 

Eu digo mesmo. Se eu tiver ponta, eu boto ponta pra jogar. Agora, realmente, hoje, se ousa muito pouco. Fazer o quê? 

E para encerrar, se você atuasse hoje em dia, que papel teria o jogador Jairzinho? 

Olha, se eu tivesse jogando hoje (pausa), só digo uma coisa. O Jairzinho estaria na classe AAA do futebol. (risos)

PERFIL

Jair Ventura Filho nasceu em Duque de Caxias, no subúrbio do Rio de Janeiro (RJ), em 12 de dezembro de 1944. Começou nas divisões de base do Botafogo, em 1960, e se profissionalizou pelo clube em 1965. Venceu inúmeros títulos com a camisa do Alvinegro, seu clube do coração, e com a do Cruzeiro. Mas ficou para sempre lembrado como o Furacão da Copa de 1970, marcando sete gols em seis jogos da campanha do tricampeonato da seleção brasileira. Foi o responsável por descobrir Ronaldo Fenômeno e hoje atua como técnico de futebol – está sem clube.

Muito se fala que Jairzinho foi o único jogador a marcar gols em todos os jogos de uma Copa do Mundo, com os sete gols em seis partidas da Copa do México. Não é verdade. Além dele, Gighia, do Uruguai, em 1950, e Just Fontaine, das França, em 1958, também alcançaram o feito, porém, em menos jogos.

Jairzinho disse não ter ligação com o futebol cearense. “Nunca recebi nem proposta. Só joguei contra os times daqui“. O confronto mais emblemático foi a decisão da Taça Brasil de 1968, vencida pelo Botafogo contra o Fortaleza.

Jairzinho é o 5º maior artilheiro da história do Botafogo. Marcou 189 gols em 404 partidas pelo clube. Venceu o Carioca em a Taça Guanabara (1967/68); dois torneios Rio-São Paulo (1964 e 1966); e a Tça Brasil (1968). Defendeu ainda Cruzeiro, por quem foi campeão da Libertadores (1976); Olympique de Marselha (França), Portuguesa de Acarígua (Venezuela), Noroeste, Fast Clube e Jorge Wilsterman (Bolívia)

Fonte: O POVO