José Cícero – Que música nossos filhos sentirão saudade?

Toda a pobreza da pobre música nossa do dia-a-dia…

A música é de fato a mais universal das linguagens. A música impregna a nossa vida de imagens, memórias, lembranças, saudades. Uma colcha de retalhos tecida de várias recordações dos momentos idos. Além de uma sensação das mais românticas emolduradas por poesia, reminiscências e sonoridades a nos embalar a própria alma. Instantes se fizeram eternos nas nossas lembranças por força da música. A música nas suas mais diversas variáveis e manifestações.

Muito do nosso passado carregamos ainda hoje, onde quer que estejamos como uma lembrança congelada para sempre no nosso subconsciente e imaginário. Guardado no âmbar das nossas melhores emoções e outras memórias afetivas. Como diria Érico Veríssimo: “o tempo como um vento passou tão depressa… Será que venta na eternidade?”.

Se há vento sequer passageiro na eternidade, não sabemos ao certo, entretanto, os momento eternos nos são garantidos pela música marcante de toda uma época áurea (anos dourados ou de chumbo?) em que todos os ventos e tempestades ventaram sim, a favor da nossa juventude que ansiava mudar o mundo.

Por isso hoje podemos falar ainda de felicidade e das fantasias possíveis que ousamos um dia experimentar. Seja por capricho ou por pretexto. O importante é que as vivemos como a mais absoluta das intensidades. Como se o amanhã não nos fosse chegar nunca. Mas, um dia sem que percebessemos, ele chegou; quem sabe no mesmo vento que nos falou Veríssimo. E pela janela da vida bateu no nosso rosto não mais atormentado pela espinhas. Mas, agora pelas rugas. Como um mapa mundi que o tempo se encarregou de desenhar na nossa face. Um claro sinal de que não éramos mais os mesmos.

A música nos dava esta sensação gostosa e ilusória da eterna juventude e liberdade. A música não nos deixava envelhecer por dentro como sofrem hoje os hodiernos, vazios de cultura, auto-estima e cidadania. Naqueles anos nosso espírito era imaculado… Diria que as belas canções que nos embalavam eram o nosso escudo contra as maledicências da vida e da história.

A música hoje, de algum modo quase inexplicável é ainda uma ponte que nos liga aos inesquecíveis momentos da nossa mocidade. Quem acaso não sente sequer uma pontinha de saudade daquele passado, certamente não gozou sua juventude como devia. Não foi feliz. Não é feliz nem nunca será. Porque, desgraçadamente faltou-lhe até hoje, como ontem, a sensibilidade necessária para puder ter esperança e assim continuar acreditando na felicidade construída, segundo a nossa vontade e nossa capacidade de sonhar, amar, ousar, meter a cara… Cair e, em seguida levantar… Seguir os “rumos da venta”, sem lenço e sem documento. Porque “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Faltou-lhe, portanto, uma memória musical…

A música é por tudo isso, o que podemos denominar de instante eterno da nossa existência. Algo que, grosso modo, não deixou que nossa vida passasse em brancas nuvens. Porque vivemos tudo ao extremo das nossas emoções e sentimentos. Malgrado as dificuldades, tudo era mais gostoso e qualitativo: o rádio AM, os alto-falantes das difusoras, dos parques de diversão e dos circos. A radiola do velho bar da esquina, da casa do ricaço, da tertúlia, da tela pálida e suja do cinema, do cabaré no escuro proibido da periferia. Do clube aos domingos, do velho rádio de pilha e válvula. Das serenatas das antigas madrugadas. Das lojas de discos tocando os sucessos mais recentes. Do vinil brilhando em folha esperando o passeio da agulha. Da vitrola do doutor exposta no canto da sala como um troféu. Um objeto de poder e de auto-afirmação.

Tudo isso dava um romantismo incomensurável a nossa boa música, desde a velha guarda, à bossa nova, jovem guarda, carimbó, brega, ao forró de raiz, do Rock, do hit parade internacional à musical 'casteliana'. Enfim, à música como expressão artística de toda uma geração e manifestação sonora de Deus tentando agradar o espírito dos homens e mulheres (pobres mortais). A música que enchia a vida social de sensibilidade e até de esperança fazendo-se democrática, romântica, lúdica e espirituosa. A música enchia nossa vida de fantasia e assim, o fardo das nossas agruras não se faziam tão pesados.

Tudo como de resto era sensacional, posto que tocava fundo a alma, mexia com o sentimento mais profundo da nossa gente, provando que antes éramos muito mais humanos do que somos hoje. As canções do passado tinham o poder de encher nossos olhos de brilho, fogo e lágrimas. Assim como nossos corações afoitos de entusiasmos e paixões desmedidas.

Os discos de vinil eram por seu turno, um presente dos mais apreciáveis pelas pessoas porque tinham o mesmo valor de um elogio, uma declaração de amor e de afeto. Um espaço nobre para a mensagem escrita à mão como dedicatória aos apaixonados ou admiradores…

Mas o que será dos nossos filhos e de toda esta geração do agora e do porvir, quando no presente e tanto quanto no futuro não terão sequer a oportunidade de poder experimentar o doce prazer de sentir saudade. Dado que hoje, com raríssima exceção, a música no sentido amplo da palavra não existe. Que crueldade estão fazendo com nossa juventude, filhos e netos! Que motivos e que atributos musical-psicológicos, emocionais terão talvez nossos filhos e a juventude em geral para eternizar na mente e corações os seus raros momentos de alegria e felicidade plena. Seus amores extremos, paixões alucinantes, desvarios utópicos, sofreguidão da ousadia, liberdade boêmica e quem sabe, o que ainda resta do antigo romantismo?

Em que lugar ficará salvo do capitalismo e da ignorância sem-vergonha a nossa verdadeira e nobre identidade cultura? Sim, porque hoje (com raras exceções) não temos mais música. Temos ruídos, barulhos, som estridente, plena inexistência poética. Mentira, palavrão, agouro, estelionato, crime de lesa-pátria… Mau gosto somado à esperteza dos malandros lucrando com a ignorância dos passivos; analfabetos musical-funcionais ante o cinismo de todo o resto que os representam na corte dos atuais poderes apodrecidos. Uma afronta à inteligência dos que não se entregam a eles, isto é, dos que ainda cultivam o bom-gosto cultural em relação ao que o Brasil possui de melhor e que atualmente não encontram espaço sequer na mídia marrom.

Nossa música do passado: uma saudade eterna que nos soa quase como uma inscrição tristonha e medonha na lápide das nossas lembranças. Como se escritas fossem inda agora pelas nossas próprias mãos.

A propósito, que mal lhe pergunte: Que música você ouviu hoje?

José Cícero Professor e escritor Secretário de Cultura e Esporte Aurora-CE.

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