Sem categoria

Março de 1958: a certidão de nascimento do revisionismo

Esta semana o Partido Comunista do Brasil chega aos 88 anos de existência contínua. Para marcar esta data, comemorada no próximo dia 25, o Partido Vivo vai publicar artigos sobre alguns pontos marcantes desta trajetória. No primeiro deles, José Carlos Ruy relembra o surgimento da Declaração de Março de 1958, um marco fundamental do debate partidário desde meados da década de 1950.

Por José Carlos Ruy*

5º Congresso do PCdoB, 1960 - Arquivo: Iconographia

O documento conhecido como Declaração de Março de 1958, aprovado pelo Comitê Central do Partido Comunista do Brasil em 22 de março de 1958, foi o marco de um retrocesso decisivo na política revolucionária brasileira e já houve mesmo quem o classificasse como uma espécie de certidão de nascimento do revisionismo no Brasil.

Aquele documento foi aprovado num contexto de grandes mudanças no mundo e no Brasil. O movimento comunista internacional havia sofrido um forte impacto com a revelação do chamado “informe secreto" de Nikita Kruschev ao 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (1956), com graves acusações contra Stálin (falecido em 1953) e seus métodos de direção. Em consequência, muitos comunistas se afastaram do sonho por um mundo justo, além do capitalismo e passaram a enfatizar as virtudes do sistema republicano parlamentar da maioria dos países ocidentais, afastando-se da via revolucionária.

A política aprovada pelo 20º Congresso do PCUS e preconizada pela URSS favorecia a coexistência pacífica com o imperialismo e a via eleitoral para o socialismo, condenando todas as demais formas de luta e condenando particularmente os levantes insurrecionais.

Crescimento acelerado

Aquela foi uma época também de mudanças aceleradas no Brasil. A economia havia entrado, após a 2ª Grande Guerra, num rumo de forte desenvolvimento capitalista crescendo então a ritmos "chineses" durante mais de uma década; em 1950, por exemplo, chegou a 6,8% de crescimento do PIB; em 1955 foi 8,8%, em 1958 foi 10,8%, mantendo esses níveis até 1963, quando caiu para 0,6%. Retomou em 1964 (3,4%), oscilou em torno disso até 1968 quando alcançou 9,8%, abrindo novo ciclo que durou até a crise na década de 1980.

Este crescimento se refletiu na profunda mudança vivida pela população, e o número de moradores nas cidades passou a prevalecer. Em 1940, apenas 30% dos brasileiros moravam em cidades; em 1950 passou para 36%, em 1960 para 45% e em 1970 para 56% – isto é, na década de 1960 o Brasil se tornou um país mais urbano do que rural.

Em termos de valor da produção, a indústria já havia ultrapassado a agropecuária alguns anos antes, e se consolidou como o principal setor da economia. Em 1947 o valor da produção industrial foi 20% maior do que o da produção agropecuária; manteve-se em patamar semelhante em 1955 (10%) mas estourou em 1960, quando foi 80% maior.

Essa mudança significou uma profunda transformação entre os trabalhadores. Em 1940, 67% dedicavam-se à agropecuária; caiu para 61% em 1950, 55% em 1960 e 45% em 1970, quando o conjunto dos trabalhadores urbanos se tornou maioria. Na indústria o crescimento do contingente de trabalhadores foi particularmente acelerado. Em 1939 havia apenas 698 mil pessoas ligadas à produção industrial. Passou para 1,128 milhões em 1949, para 1,426 milhões em 1959 e para 2,226 milhões em 1970. Isto é, em 30 anos (de 1939 a 1970) o número de trabalhadores ligados à produção dobrou.

Estas transformações alteraram em profundidade a estrutura de classes; o proletariado industrial cresceu e ganhou importância relativa em relação aos trabalhadores rurais que, até a 2ª Grande Guerra, constituíam a maioria. Ao mesmo tempo, cresceu a burguesia industrial, que ganhou um protagonismo político que concorria com os latifundiários e os grandes financistas e, ao mesmo tempo, a manifestar alguns arroubos nacionalistas. Com a crescente complexidade da economia, crescia também uma classe média de funcionários públicos, administradores de empresas, trabalhadores em escritórios e bancos, professores, pequenos e médios industriais e comerciantes, que adquiriam também um peso crescente nas disputas políticas.

Outro aspecto que precisa ser lembrado é a intensa e crescente luta social naqueles anos. O número de greves de trabalhadores urbanos multiplicou-se por sete entre 1950 e 1960, havendo alguns movimentos de grande envergadura, como as greves de 1953 em São Paulo e de 1957. A luta dos trabalhadores rurais também crescia e as famosas Ligas Camponesas começavam a aparecer, além de outras lutas como os movimentos de Porecatu, no Paraná, de Formoso e Trombas, em Goiás, o levante camponês do Sudoeste do Paraná, as manifestações "arranca capim" (contra a transformação de fazendas em pastos) no interior de São Paulo e Triângulo Mineiro. Foi o tempo também dos protestos da "Panela Vazia" (1953), da luta contra o envio de tropas para apoiar os EUA na Guerra da Coréia, e também da grande campanha "O Petróleo é nosso", em apoio à Petrobrás e ao monopólio estatal do petróleo.

O intenso movimento de transformação se traduziu, na política, pela rejeição popular aos velhos oligarcas que haviam dominado no passado agro-exportador que o país começava a superar e no apoio crescente a políticos comprometidos com a via do desenvolvimento econômico. Foi sob este signo que Getúlio Vargas foi eleito presidente da República em 1950 e Juscelino Kubitschek em 1955. Os setores mais conservadores e pró-americanos da classe dominante reagiam fortemente contra essas mudanças na estrutura do poder, onde a burguesia industrial conquistava espaços e o protagonismo operário se desenvolvia. Aquela oligarquia (cujos descendentes políticos constituem hoje a nata do neoliberalismo) rejeitava qualquer democratização política, econômica e social, e seu cavalo de batalha era o anticomunismo, rótulo aplicado a toda medida democratizante e desenvolvimentista que contrariasse seus interesses. Um exemplo é o comentário do jornal O Estado de S. Paulo contra a eleição de Juscelino Kubitschek (publicado em 11/10/1955). O apoio decisivo do Partido Comunista do Brasil representou, calcula-se, o aporte de uns 300 mil votos para ele – igual à diferença com o segundo colocado (Juarez Tavora, da UDN, o partido da oligarquia financeira), e que garantiu a vitória de Juscelino. Se o Partido Comunista do Brasil fosse legal e tivesse disputado com candidato próprio, escreveu o diário paulista, Juscelino teria ficado com o mesmo percentual de votos de Juarez Tavora. "Um raciocínio lógico, direto, simples nos leva, pois, a essa indiscutível conclusão: se Jango e Juscelino chegaram ao poder com menos de um terço do eleitorado que votou no dia 3, poderemos afirmar que os futuros presidente e vice-presidente do Brasil devem a sua vitória ao Partido Comunista".

O debate na direção do Partido

O reflexo destas mudanças na vida interna do Partido se traduziu na forte luta interna iniciada após o 20º Congresso do PCUS para mudar a linha política comunista. O foco inicial foi o que então se chamava de "mandonismo", expresso no culto à personalidade (no mundo, voltado a Stálin; no Brasil, a Prestes) e numa estrutura de direção fortemente hierarquizada que prejudicava a democracia interna.

O debate dos métodos de direção envolvia também o conteúdo da política partidária, marcada desde os anos anteriores por uma concepção de confronto, esquerdista, que colocou os comunistas à margem da política institucional e que levou à pregação do voto nulo na eleição presidencial de 1950, que elegeu Getúlio Vargas para seu segundo mandato.

O levante popular que se seguiu ao suicídio de Vargas em 1954 (no desenlace de uma grave crise política acirrada pela oposição de direita e pró-americana) provocou um verdadeiro choque político nos dirigentes partidários levando ao reconhecimento da necessidade de participação no leito principal da luta política no país e de busca de influência eleitoral. A eleição de Juscelino Kubitschek com apoio do Partido, em 1955, a suspensão da perseguição ao Partido e da ordem de prisão contra seus dirigentes (entre os quais Luiz Carlos Prestes) fortaleceram aquela convicção.

Qual o desenvolvimento econômico de que o país precisa?

Outro tema quente no debate foi a questão da natureza do desenvolvimento econômico. Desde 1948, quando o Partido pregava a via insurrecional para a formação de um governo democrático de libertação nacional, esta questão foi deixada em segundo plano. Na segunda metade da década de 1950 o desenvolvimento capitalista passou a ser reconhecido como uma realidade histórica efetiva, e duas correntes se formaram em sua avaliação pelos comunistas. Uma delas, dominante, encarava esse desenvolvimento de forma positiva, cabendo aos comunistas apoiá-lo. A outra corrente, minoritária, enfatizava a análise do caráter de classe do desenvolvimento e o encarava como etapa histórica necessária rumo ao socialismo.

As duas correntes tiravam consequências políticas de suas formas de encarar aquele processo. O primeiro grupo absolutizava o desenvolvimento capitalista, considerando-o progressista, sem questionar a direção política da "burguesia nacional", como chamavam então a burguesia brasileira. O grupo minoritário, articulado em torno de João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, entre outros, encarava aquele desenvolvimento de forma mais matizada. Insistia na luta de classes, ressaltava os interesses do proletariado, apontava a direção da "burguesia nacional" como nociva a esses interesses, e denunciava a desnacionalização decorrente da subordinação ao capital estrangeiro que desfigurava o caráter autônomo do desenvolvimento nacional.

Prestes, diz o historiador Jacob Gorender, que foi um ativo participante daquele debate, se convenceu da necessidade de mudar a linha política do Partido e de que, para isso, era preciso mudar também a direção, afastando dela os dirigentes contrários a seu ponto de vista. Isso era necessário, diz Gorender, para dar a Prestes uma maioria tranquila na direção. O problema, escreveu, não era o chamado método autoritário de direção, nem o “stalinismo”, mas a oposição contra a nova orientação defendida por Prestes e seu grupo. “Era impossível tal mudança com Arruda, Amazonas e Grabois na Comissão Executiva”, conclui o historiador.

Para mudar a linha política o Comitê Central elegeu uma comissão encarregada de redigir um documento a ser aprovado pelo plenário daquele órgão dirigente. Entretanto, Prestes nomeou – sem comunicar nem mesmo a Comissão Executiva – um grupo de trabalho ligado diretamente a ele para elaborar uma minuta do documento. Gorender lembra que, para isso, Giocondo Dias, que era um dos homens de confiança de Prestes, "recorreu a nós, ao Mário [Alves] e a mim, para redigir o documento justificador das alterações na direção". Esse documento, que acabou deixando de lado o trabalho da Comissão indicada pelo Comitê Central, foi a Declaração de Março de 1958.

Ele foi recebido com muitas críticas. Sua aprovação pelo Comitê Central não foi tranquila e, pela primeira vez desde a década de 1930 a unanimidade foi quebrada numa votação tão crucial como aquela – o documento foi aprovado sem os votos de Amazonas e Grabois.

A reboque da burguesia

O próprio Gorender – um dos autores da Declaração de Março – reconheceu, quase trinta anos depois, que a aliança com a burguesia passou a ser “a pedra de toque da orientação tática". A Declaração representou uma guinada à direita na linha política do Partido, acusada de desarmar politicamente o povo ao pregar o processo de democratização como “uma tendência permanente” e considerar a burguesia como “uma força revolucionária”. Foi a oficialização, como linha política partidária, do chamado “caminho pacífico da revolução brasileira” através da conquista gradual de reformas políticas, econômicas e sociais.

A aprovação da Declaração de Março expôs publicamente a existência de duas linhas e duas concepções na própria direção do Partido, como Maurício Grabois registrou no célebre artigo publicado em 1960, Duas concepções, duas orientações políticas, de 196. Nele, acusou a Declaração de Março de levar em conta “quase que exclusivamente os interesses da burguesia”, fortalecendo suas posições políticas e superestimando “a magnitude e a profundidade da contradição entre a burguesia e o imperialismo”.

No início da década de 1980, Prestes reconheceu indiretamente a procedência dessa crítica ao admitir que a linha política defendida por ele naquela época era “bastante direitista. Era o caminho pacífico”. “E caímos na passividade” e as “ilusões sobre o capitalismo” refletiam “nossa incompreensão total da realidade brasileira. Na ânsia de criticar os erros de esquerda, caímos em posições liberais e direitistas”. Ou: "naquela época, nossa posição era realmente direitista. Nós saímos de uma posição esquerdista para cair no desenvolvimentismo do ISEB”, disse.

Nestes mais de cinqüenta anos desde sua aprovação a Declaração de Março de 1958 já foi motivo de muito debate entre os comunistas. Ela representou, de um lado, o aprofundamento de uma luta interna cujo desenlace foi, em 1962, a reorganização do Partido Comunista do Brasil. E esteve no centro de muita discussão sobre a tática, nos anos seguintes. Foi um debate, entretanto, que deixou de lado o ponto que talvez tenha sido o fundamental na análise daquele documento desde o momento de sua elaboração: o rumo do desenvolvimento do país, a aliança de classes que ele requer, o papel do proletariado e da burguesia. O debate focou questões como o “mandonismo” ou o “stalinismo”, quando uma diferença fundamental entre as duas correntes formadas no interior do Partido ligava-se justamente a este ponto: enquanto o grupo alinhado à Declaração de Março colocava o proletariado e seu Partido a reboque da burguesia e seus interesses, seus opositores nunca abriram mão do papel central e dirigente do proletariado e dos trabalhadores.

*jornalista e editor do jornal Classe Operária