Por dentro da escola de tortura argentina
Ao se observar a fachada do prédio da Esma (Escola de Mecânica da Marinha), na Avenida del Libertador, em Buenos Aires, é difícil imaginar que lá tenha funcionado o principal centro de detenção e tortura da ditadura argentina. Entre 1976 e 1983, mais de cinco mil pessoas foram levadas ao local, de olhos vendados, e algumas centenas sobreviveram para contar suas histórias.
Publicado 24/03/2010 10:35

Em 24 de março de 2004, data do 28º aniversário do golpe militar, o então presidente Nestor Kirchner selou um acordo com a prefeitura de Buenos Aires, que determinou a desocupação de toda a área, que pertencia às forças armadas, para que nunca mais a Argentina sucumbisse à barbárie. No total, mais de 17 mil m² passaram a ser administrados por uma entidade tríplice, constituída pelo governo federal, a prefeitura, e as associações de direitos humanos.
Em 2007 a Esma foi transformada no Museu da Memória. A maioria dos guias é formada por jovens, membros da associação Hijos, constituída por filhos de presos desaparecidos ou cidadãos que se solidarizam e militam pelos direitos humanos.
Logo na entrada principal há um enorme cartaz, decorado com centenas de pequenos retratos de desaparecidos, e um lenço branco, símbolo das mães da Praça de Maio. Já a outra passagem, situada a poucos metros, era onde chegava o Ford Falcon verde do “Grupo 3.3.2”, que sequestrava militantes de esquerda.
O carro estacionava ao lado do Cassino – principal sala de tortura – pela parte de trás, levando os prisioneiros. “Não eram prisioneiros”, corrige o guia, um pouco exaltado. “Um prisioneiro tem direito a julgamento, é identificado, a família pode visitá-lo. Aqui eram pessoas raptadas, sequestradas, escondidas, desaparecidas”, explica ao Opera Mundi.
Pelo porão da Esma era onde transitavam os detentos recém-chegados. Em 1979, a CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) anunciou que iria visitar o local, após receber denúncias de sobreviventes. Os seis meses de demora foram suficientes para que as forças armadas mudassem a disposição dos quartos do Cassino, sugerindo que as acusações eram falsas. A CIDH, que não queria ter problemas com as autoridades argentinas, acreditou.
As câmaras de tortura, porém, estão intactas. “O interrogatório tinha de ser feito rapidamente, para extrair informações que poderiam levar a outros ‘subversivos’, como nos chamavam”, conta ao Opera Mundi Lila Pastoriza, sobrevivente.
A jornalista era responsável em 1977 por uma publicação clandestina dos Montoneros, organização político-militar peronista. Ela foi presa a caminho de uma reunião secreta. Como a maioria dos sobreviventes, Lila lembra de ter batido a cabeça numa viga assim que entrou no porão. Ela cita com raiva o apelido dado ao corredor pelos repressores: “caminho da felicidade”.
O piso das seis minúsculas câmaras de tortura é sujo e as paredes, úmidas. Naquela época, elas ficavam forradas com fios elétricos. Ao lado, era um escritório onde os próprios prisioneiros falsificavam documentos. As forças armadas se apropriavam dos bens deles, como carros, casas e terrenos. Um dos oficiais era o “agente imobiliário”. Num canto vizinho, a pia ocupa o lugar onde ficava o telefone. Os sequestrados eram obrigados a ligar para seus parentes e convencê-los a não denunciar o desaparecimento.
Prédio da tortura
Apenas quinze degraus separam o porão do térreo. Para Lila, parecia mais. “A escadaria era interminável”, lembra. Todos os degraus apresentam rachaduras, pois os presos andavam com correntes e até bolas de ferro de 25 quilos.
Os dormitórios dos cerca de 60 militares que permaneciam na Esma eram no 1º e 2º andar. Muitos dizem que não sabiam do que acontecia no porão. Ao se caminhar pela Esma, percebe-se que seria impossível não escutar nada. Após a tortura as vítimas eram conduzidas ao terceiro andar, onde ficavam algemados e encapuzados. O local ganhou o nome de “capucha”, capuz. Hoje não há vestígios das camas. “Tínhamos de ficar sempre deitados, sem ver ou falar com ninguém. Nosso nome foi substituído por um número, para nos lembrarmos que não éramos mais seres humanos. Os guardas gritavam: ‘Venha cá, pacote!’”.
O banheiro era o único lugar onde podia se conversar. Do local era possível ouvir os gemidos que escapavam de uma sala minúscula, adjacente ao elevador, onde as mulheres grávidas ficavam até dar a luz. Os bebês eram entregues à adoção para famílias de militares ou simpatizantes da ditadura. Calcula-se que cerca de 600 recém-nascidos foram levados da Esma e de outros locais de tortura. A organização Avós da Praça de Maio, que luta para encontrar os netos perdidos, já conseguiu identificar 101 pessoas.
Lila ainda lembra da crueldade de alguns guardas, sobretudo os mais novos. “Alguns nos acordavam com um chute na cabeça, outros deixavam que falássemos com eles. Era fundamental identificar os guardas ‘bons’ e os ‘ruins’, para adaptar o comportamento”, diz.
Alguns detentos jogavam xadrez – com a imaginação – para se ocupar. “Eles memorizavam tudo e sussurravam códigos, como F3 ou H8, conforme o jogo avançava. Eu nunca consegui!”, afirma, sorrindo. Para ela, o ofício do jornalismo a ajudou, pois acabou sendo integrada à “Pecera”, onde os prisioneiros traduziam documentos e elaboravam textos pró-militares. A tarefa de Lila era separar notícias. “Aproveitava para recortar tudo: matérias, poemas, pequenos contos, e os dava aos meus camaradas, para que se distraíssem”, conta.
“Anjo Loiro da Morte”
Lila lembra especialmente da conversa com Léonie Duquet, uma das duas freiras francesas sequestradas pelo capitão Alfredo Astiz, conhecido como o “Anjo Loiro da Morte”. As duas se encontravam na “capuchita”, dormitório reservado para os detentos especiais. A freira interrompeu a agressividade do guarda convocando todos para rezar. “Mas ela ficou somente um dia, a levaram não sei para onde”, lamenta Lila.
Os restos de Léonie foram identificados em agosto 2007, em uma cova comum. Fora vítima dos “traslados”. Segundo Lilá, a transferência era geralmente realizada nas quarta-feiras, aproximadamente às cinco horas da tarde. “Eles começavam a chamar as pessoas pelo número. Formava-se uma fila indiana de detentos, encapuzados e com correntes nos pés, apoiados nos ombros um dos outros. Nunca mais os vimos”, conta a ex-prisioneira, que acreditou, até o último momento, na explicação dada pelos militares: uma simples transferência para outro centro de detenção.
Na realidade eles eram levados à enfermaria do porão, onde recebiam uma injeção para adormecer, antes de ser levados ao aeroporto. As vítimas eram colocadas em aeronaves e helicópteros e jogadas, ainda vivas, no Rio da Prata, ação conhecida como “vôos da morte”. Os cadáveres que apareciam nas praias era enterrados rapidamente pelos militares.
Lilá sobreviveu, sem saber exatamente porque. Quando conseguiu sair, já no exílio, não parou de pedir desculpas aos militantes esquerdistas, que a tratavam como uma “colaboradora” dos repressores, por ter trabalhado na Esma.
Fonte: Opera Mundi
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