Zeca Afonso: a cara da utopia

Neste dia 25 de abril, em que se comemora o 36º aniversário da Revolução dos Cravos, evento que mudou a história de Portugal e influenciou o fim das ditaduras nos países latinos, prestamos homenagem a Zeca Afonso, que foi um notável compositor de música de intervenção, durante um dos mais conturbados períodos da história recente portuguesa. Como compositor, soube conciliar de forma notável a música popular e os temas tradicionais com a palavra libertária. * por Enilton Grill

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Zeca Afonso tinha a cara da utopia. Era um homem de coragem. Mas também terno, frágil, de uma infinita tristeza. Falava da esperança, lutava pela liberdade e cantava tudo isto, falando em lealdade, em amizade e em amor. Sempre.

Acreditava na solidariedade, no sonho e na poesia, como armas de paz. Porque Zeca Afonso era sobretudo isso: um homem de paz.

Com poesia se insurgia contra a violência, contra a prepotência, contra as desigualdades e a hipocrisia. Encarou o fascismo, em Portugal, com uma firmeza e uma rebeldia muito própria, muito pessoal.

Zeca Afonso deixou atrás de si uma obra importante na música portuguesa e na canção de intervenção. Mas nunca admitiu rótulo algum: ‘Semeio palavras na música’, dizia ele.

Era um homem de palavra e das palavras livres. Acreditava na solidariedade e na fraternidade. De seu credo é que nascem palavras e versos como: "em cada esquina um amigo e em cada rosto igualdade".

"Grândola Vila Morena", composição sua, foi a senha para que o Movimento das Forças Armadas de Portugal avançasse para a Revolução dos Cravos na madrugada de 25 de Abril de 1974.

Uma revolução que ficou marcada pela vitória das flores sobre os tanques. Dos cravos sobre os fuzis. Daí o nome de Revolução dos Cravos. Uma luta em que não foi dado um único tiro. Uma luta de onde da boca dos canos dos fuzis em vez de serem disparadas balas brotavam cravos.

Que diabos de revolução era aquela? Não se ouviam canhonadas nem gritos de dor. O povo, endoidecido pela súbita lufada de liberdade, subia nos tanques e se abraçava nos soldados. Mulheres, crianças, velhos, todo mundo saiu de casa para celebrar aquele acontecimento extraordinário. A Lisboa dos tristes fados, naquele dia tornou-se a cidade da alegria.

O Estado Novo, regime dos mais retrógrados da Europa ruíra com uma facilidade impressionante. Esfumou-se em apenas 17 horas pela firme decisão de um punhado de oficiais decididos a implantar uma democracia em Portugal.

Marcelo Caetano era derrubado do cargo e “convidado” a se exilar no Brasil, que vivia os anos de chumbo.

Chico Buarque compunha “Tanto Mar”. Era uma senha a indicar o tanto de léguas de mar a nos separar. Por aqui, ainda ditadura militar. Por lá, muita festa, pá.

Meia-noite e vinte minutos de 25 de abril de 1974. Neste horário era dada a senha para o início do fim. A Rádio Renascença executa “Grândola, Vila Morena” de Zeca Afonso, uma música proibida pela ditadura.

Na virada da noite pro dia o fascismo se rendia e era implantada a democracia. E tudo isso acontecia com poesia. Poesia com cara de utopia.

“Admito que a revolução seja uma utopia, mas no meu dia a dia procuro comportar-me como se ela fosse tangível."
Zeca Afonso, Aveiro – Portugal – 2 de Agosto de 1929/23 de fevereiro de 1987

* Enilton Grill, Historiador, Pesquisador e Crítico Musical