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Documentário dá voz aos pais da Praça de Maio

As Mães da Praça de Maio tiveram papel fundamental na busca por justiça pelos crimes cometidos durante a ditadura na Argentina. E ao seu lado sempre estiveram seus maridos que, em um documentário de Joaquín Daglio, puderam finalmente ser ouvidos.

Por Juliana Dal Piva, em Opera Mundi 

pais da praça de maio argentina

Em muitos lares, a ditadura argentina assassinou um filho, mas da casa de Rafael Beláustegui, 83 anos, os militares levaram todos. Filhos, genros, noras e netos. Primeiro foi Martín e sua mulher, María Cristina, em 1976. No ano seguinte, foi a vez da filha Valeria e do filho Rafael José, ambos sequestrados com seus parceiros. Valeria e María Cristina estavam grávidas no momento em que foram presas. Beláustegui nunca mais teve notícias dos parentes, e a esposa não aguentou o desespero provocado pelos desaparecimentos, morrendo em seguida.

Rafael, único sobrevivente da família na tragédia, é firme ao dizer que sua dor não é maior que a de qualquer outro pai que tenha perdido um filho. Ele não quer se sentir diferente, pois sabe que Jaime Steimberg também nunca foi o mesmo depois que o filho Luis desapareceu em 1976. Como os dois, Julio Morresi, Mario Belli e tantos outros pais dos cerca de 30 mil jovens sequestrados pelos militares nunca mais tiveram um dia ou uma noite em paz, sem pensar onde estariam seus filhos e como poderiam salvá-los.

Estas vozes e nomes, no entanto, não eram conhecidas. Foi necessário tempo para que estes homens conseguissem falar. Em Los Padres de la Plaza, primeiro documentário dirigido por Joaquín Daglio, é a primeira vez que a figura paterna se expõe para contar como sobreviveu à perda dos filhos. Nessa entrevista ao Opera Mundi, o argentino conta como foi filmar as histórias. O filme recebeu menção honrosa no Festival de cinema de Mar del Plata em 2009 e ganhou o prêmio do público no Festival Internacional de Direitos Humanos de Barcelona. No Brasil, fez parte do festival É tudo verdade.

Opera Mundi: Como surgiu a ideia do documentário com os pais de desaparecidos da ditadura?
Joaquín Daglio: Em 2006, estava com um grupo de amigos na marcha dos 30 anos do golpe militar e comentei com eles uma impressão que havia notado durante aquela semana e no ato. Nos dias anteriores à marcha, tinha observado na televisão uma retrospectiva de documentários sobre os desaparecidos no regime militar e lá estavam os testemunhos das mães, dos filhos, dos netos, mas curiosamente faltava o depoimento dos pais.

Comentei com meus amigos e fiz a pergunta que motiva o filme: “Como os pais enfrentaram o desaparecimento dos filhos?”, especialmente o porquê de não terem se reunido. Os pais sempre estiveram militando dentro dos organismos de direitos humanos, mas nunca houve uma organização que os reunisse “como os pais”, e naquele momento pareceu importante saber em profundidade os efeitos que tiveram os sequestros sobre os pais. O filme aborda isso, a questão da paternidade e a relação dos pais com os filhos.

Opera Mundi: Como foi o primeiro contato com os pais? Houve algum tipo de seleção?
Joaquín Daglio: Apesar de militar e trabalhar em organismos de direitos humanos há algum tempo, foi a primeira vez que fiz uma investigação sobre o tema. Entre 2006 e 2007, nos juntamos com a maior quantidade de pais possível, sempre com apoio das organizações de direitos humanos, como a Associação das Mães da Praça de Maio – linha fundadora.

Nas primeiras reuniões estavam cerca de 20 pais. Eles receberam bem o projeto, embora surpresos, mas gratamente surpresos. Para esses homens, era importante deixar um legado, contar o que viveram para as próximas gerações.

Desde o começo contamos a eles como era a ideia do documentário de entrecruzar diferentes caminhos, histórias, e todos gostaram da proposta. Porém, no começo era muito difícil para os pais colocarem em palavras tudo o que havia acontecido.

Em 2006, mesmo na terceira ou quarta pré-entrevista, ainda havia pais que não podiam falar dos filhos, pois começavam a chorar. Então, falávamos de outras coisas, esperávamos que se recuperassem, mas era muito complicado para eles, e alguns têm problemas de saúde importantes, muitos infartos, afinal de contas são homens de 80 anos. Por isso, a seleção ocorreu em comum acordo, os que tinham dificuldades para falar acompanharam o projeto, mas não fizeram parte do documentário e, finalmente, os 10 que se pode ver no filme foram os que conseguiram “colocar o corpo” no documentário.

Opera Mundi: Este é um filme de forte emoção, mas sem lágrimas. Como foram as gravações com eles?
Joaquín Daglio: Houve momentos em que tivemos que parar. A ideia justamente era poder mostrá-los colocando a vida deles, na medida do possível, em palavras. Este trabalho tem a ver com a possibilidade do expectador de colocar-se no lugar do outro.

Às vezes, o choro mostra um golpe de efeito muito rápido, mas desvirtua a palavra, o que as pessoas estão dizendo, o conteúdo. Então, os pais se emocionaram várias vezes durante o documentário, mas as cenas com lágrimas foram retiradas porque queríamos evitar todo golpe baixo e, assim, aproximar o expectador das perguntas que nós fazíamos e permitir que, com os depoimentos dos pais, cada um faça a sua reflexão do que se passou com estes homens.

Opera Mundi: E a reação da equipe do documentário frente às histórias?
Joaquín Daglio: Foi um processo de aprendizado constante. Obviamente, estávamos ali para acompanhá-los e, de alguma maneira, contê-los. Não podíamos permitir que nossas emoções nos dominassem e se nos emocionávamos, era para conter aos pais. Foi uma sensação muito forte ver a angústia e o desespero de homens de 80 anos.

Tivemos que ter muito cuidado e delicadeza, e depois dos primeiros encontros, o processo foi fluindo melhor. As primeiras entrevistas em 2007 foram sem câmera, porque já sabemos o quão intimidadora ela é. A gravação ocorreu muito tempo depois, entre o fim de 2007 e março de 2008. Para nós, era muito impactante e tentávamos como grupo estar unidos, porque a nossa fortaleza em cada entrevista era valorizar a coragem destes pais de falar sobre toda a dor desses anos e que só agora iam colocar em palavras.

Opera Mundi: A opção dos pais em falar depois de 30 anos pode significar algum sentimento de culpa por não ter tomado a frente dos protestos como as mães?
Joaquín Daglio: É difícil dizer isso. Nós não buscamos uma resposta sobre isso no filme, porque a análise teria que ser mais ampla para poder dizer isso. Nós convivemos com apenas 20 e, ao todo, são milhares de pais, mas em primeira instância, sim, tem a ver com o fato de os homens dessa geração não terem se organizado e, com isso, não tiveram a possibilidade de compartilhar com outros pares as situações que viveram, desde o ponto de vista da paternidade. Isso fez diferença, pois o caminho deles foi mais individual.

Depois, outra razão seria o papel dele na estrutura familiar não desempenhado, pois o pai não cumpre o mesmo papel que a mãe. O pai é o encarregado de dar resposta como patriarca ao que sucedeu e, nesse caso, não há possibilidade de resposta. Acredito que eles não se sentem culpados ou acusados disso, mas é um dos pontos que os incomoda, e essa é uma diferença com as mães.

Os pais se perguntam se podiam ter feito algo para evitar. Já as mães não se fazem tanto esses questionamentos, mas ao pai, essa angústia da dúvida se soma. Com elas a coisa era visceral: “Perdi meu filho, quero saber onde ele está, me digam onde está meu filho, quero que condenem quem sequestrou e torturou meu filho”.

Opera Mundi: Você comentou que este é um filme da palavra devido à valorização dos depoimentos. Como optaram por esse tipo de construção?
Joaquín Daglio: Como esse é o nosso primeiro longa-metragem, sabíamos que precisávamos aprender quase tudo, então o filme passou por muitas instâncias até se transformar no que se vê hoje e levou um tempo até entender que esse documentário era sobre a “palavra”. Como documentaristas, nós precisávamos encontrar um espaço a partir do qual esses homens pudessem falar e entender isso também demorou, mas sempre soubemos que era preciso ter paciência porque uma hora a ideia iria se desenhar.

Então quando optamos pela construção em cima das entrevistas, sabíamos que era uma aposta grande e que sustentar o documentário somente nos depoimentos poderia sair mal, mas foi assim que entendemos que a história precisava ser contada. E aí, rapidamente compreendemos que eram eles, os pais, que precisavam escolher os lugares onde íamos gravar.

A proposta que fizemos foi que eles optassem por um local relacionado à vida deles e depois um lugar que os filhos gostavam muito. O interessante foi perceber que quando escolhem um lugar dos filhos, esse também é um lugar que os vincula a eles e isso era bastante importante, porque os protagonistas são eles e não nós.

Opera Mundi: Qual foi opinião das Mães de Maio sobre o desempenho dos maridos no filme?
Joaquín Daglio: Elas estavam contentes com o projeto desde o começo. De fato, uma das organizações que mais nos ajudou foi a Associação. Especialmente com o apoio delas é que conseguimos chegar a muitos pais. Quando o documentário ficou pronto e elas viram o resultado, todas ficaram muito felizes, porque foi importantíssimo ver os maridos participar, se emocionar e deixar um legado.

Estavam emocionadas com as confissões e desabafos dos companheiros sobre coisas que eles nunca tinham conversado antes. Penso que, pelas circunstâncias, as mães tomaram a frente da luta e graças a elas todos nós podemos continuar lutando, mas não existe qualquer tipo de rivalidade entre eles, pelo contrário, o amor e a união estão cada vez mais presentes. Com muito orgulho e agradecimento, os pais são os primeiros a valorizá-las por tudo o que fizeram.

Opera Mundi: Dos pais que estão no filme, algum conseguiu presenciar a condenação dos torturadores dos filhos?
Joaquín Daglio: Faz alguns anos que reabriram os processos e alguns pais puderam ver a condenação dos que prenderam e torturaram seus filhos em tribunais argentinos e outros em cortes internacionais. Julio Morresi, único dos 10 pais no filme a recuperar os restos mortais do filho, teve o torturador condenado na Itália. Jaime Steimberg, que morreu antes do fim do documentário, viu a primeira condenação de Reynaldo Bignone, o último presidente argentino do regime militar. Culpado por crimes cometidos antes de assumir a presidência, anos depois ele foi solto.

Fonte: Opera Mundi