Futebol e Alegria

Futebol é jogo e, como todo jogo que se preze, é diversão. A própria origem do termo na língua dos mesmos ingleses que inventaram o esporte é o verbo play, que serve para movimentar tudo o que seja lúdico: jogar, brincar, passar o tempo, peça teatral, enfim, uma grande e larga metáfora para o prazer.

Por Julinho Bittencourt

O xis da questão é que os próprios inventores nunca conseguiram fazer o negócio de forma divertida e prazerosa. Não só os Bretões, como também quase todos os seus vizinhos do norte. Não há por ali realmente quem faça a bola correr redonda para, pelo menos, merecer o nome de brincadeira. Com exceção talvez dos holandeses e dos africanos que se fazem passar por franceses, todos eles jogam e sempre jogaram com a mesma leveza e objetividade com que seus antepassados vikings manejavam martelos e clavas.

E foi com essa leveza que, através de séculos de pilhagens, escravizaram e exportaram para o novo mundo povos d’áfrica. Ao chegarem por estas terras, estes povos se miscigenaram com indígenas locais e também com alguns de seus antepassados mais jeitosos. Com esta nova gente que emerge, feita de várias outras e, como todos, um tanto de si mesmas, finalmente, descobriram o jeito, a ginga e o manejo da felicidade. Souberam cantar, dançar e batucar. Souberam cozinhar e amar. Souberam, enfim, entre outras coisas, jogar o fino da bola e surgiu então o futebol-arte.

Um espetáculo assim de encher os olhos, perceberam logo os Bretões e seus vizinhos, haveria de vender a cântaros. Os então descendentes diretos daqueles das clavas e martelos organizaram a zorra, inventaram campeonatos e grandes redes de televisão e, desde então, fazem fortunas com o vasto mercado que o tal esporte passou a proporcionar.

Posto isso, construíram então nos seus domínios o mais amplo e lucrativo entreposto de craques. Quase da mesma maneira com que seus tetravôs vendiam africanos para o novo mundo, passaram a importar aqueles craques miscigenados que haviam surgido nas suas colônias.

O grande problema, e com isso ninguém jamais poderia contar, foi que muitos desses talentosos artigos de exportação começaram a se comportar exatamente como os seus donos e patrões. Começaram a se nacionalizar ao estrangeiro. Incorporaram as regras e meandros dos que tais. Talento sim, mas para vencer, que é o que importa. E vencer é vencer, como nas batalhas de outrora. Brincadeira, com tantos euros em jogo, fica para depois. E então, o jogo, mais uma vez, deixou de ser jogo.

O fim do sonho

O fim da bola redonda teve data marcada: cinco de julho de 1982, no estádio Sarriá, em Barcelona. Naquela tarde, o futebol arte de Telê Santana, Sócrates, Zico e Falcão foi executado pela nada mais do que mediana seleção da Itália. Com uma aplicada e insistente marcação homem a homem, a esquálida esquadra azurra acabou com um dos times mais lindos que se tem notícia na história do futebol. Noventa minutos e três gols do oportunista Paolo Rossi depois e pronto, favas contadas. Aquilo serviria de exemplo para todo o não futebol que se ouviria e assistiria pelas próximas décadas. O melhor ataque era a defesa, dizia-se. Entramos na infindável era Dunga, onde as peças chave de qualquer time que se preze são os volantes, que passaram a se reproduzir feito coelhos.

O triunfo do futebol Robocop teria impacto também aqui no Brasil, maior das colônias e principal responsável pela reinvenção do esporte enquanto arte e prazer. Com uma aplicação de dar inveja à marcha do Terceiro Reich na noite dos cristais, venceríamos, em 1994, a mesma Itália que nos massacrara em 1982 e que, em 1970, havia sido vítima do maravilhoso futebol de Pelé, Tostão e Cia LTDA. Só que desta vez na disputa de pênaltis, com um espetacular chute pelos ares do atacante Roberto Baggio. O lance mais envolvente de então foi um erro alheio. Nada mais melancólico.

Beleza para consumo interno

No entanto, ainda se joga futebol por essas plagas. Aquele mesmo de outros tempos, com dribles largos e jogadas geniais. Talvez para atrair turistas, talvez pela preservação da espécie, vai saber. Mas, notem bem, nunca é oficial. São apenas alguns meninos aqui e acolá que fogem ao controle dos grandes dirigentes e suas táticas mirabolantes.

Só para lembrar, nos últimos dez anos tivemos o Santos, de Robinho e Diego, campeão brasileiro de 2002 e 2004; o Cruzeiro, do técnico Vanderlei Luxemburgo, campeão brasileiro de 2003, com um futebol fino e ofensivo; o Internacional, de Fernandão e Cia, campeão do mundo de 2006 e o Santos novamente, campeão paulista, agora em 2010, entre outros bons exemplos.

Posto isso, qualquer um pode garantir que ainda se joga, e bem, o futebol por aqui. Isto é líquido e certo. Vai começar a Copa da África e estamos feitos, correto? Mais ou menos e mais para menos. A seleção que vai disputar o mundial não joga futebol brasileiro. Joga sem prazer e, salvo raras exceções, sem o leão no peito.

Talvez por isso nos cause estranheza encontrar tamanha beleza e raça num time como o do Santo André, vice-campeão paulista deste ano e um tédio irrevogável e sem fim no toque de bola da nossa seleção canarinho. O fato é que ela, a seleção, não somos nós, ou pelo menos, não nos reconhecemos nela. Parece que foi contaminada pela melancolia dos velhos vikings, obrigados a importar talento e exportar ordem, a comprar leveza e vender eficiência. Parece que nossos craques esqueceram o que vendiam e se afeiçoaram por demais ao que lhes era ordenado. Com isto, o “play” passa a ser o “do it”. O jogo, o lúdico vira o “vença”. O mesmo craque menino que nos gramados modestos do seu clube pedala, dribla e arrebenta, com a camisa da seleção amarela, toca de lado, recua amuado.

Acabamos de assistir o Santos, de Neymar e mais uma dúzia de outros meninos abusados, nos recuperar o prazer, o jogo, a brincadeira. Eles nos deram de volta, feito um passe de mágica, a felicidade que eram as tardes de domingo dos nossos avôs. Por isso e pela tamanha beleza, todo o país pede pela convocação deste ou daquele jogador. Chegou-se ao cúmulo do corredor paulista de Stock Car, Giuliano Losacco mandar escrever no seu carro “Dunga, chama o Neymar!”.

O provável fim desta história todos sabem. O Neymar pode até ir. Podemos até vencer a Copa. Ou perder. Não faz diferença que a bolinha será a mesma, medrosa e acanhada. Nesses vastos tempos, nossos dirigentes provavelmente aprenderam coisas que talvez precisássemos mesmo saber. Mas, os trinta dinheiros que ficaram como contrapartida, como troco ao cramulhão na encruzilhada nos custou a alma. E só um novo pacto de dimensões históricas nos restabelecerá a mesma.