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Análise: A Lei da Anistia e os crimes de lesa-humanidade

Passado o primeiro momento do julgamento do STF que não aprovou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) da OAB, solicitando revisão da Lei de Anistia de 28 de agosto de 1979 no que se refere à anistia aos chamados crimes conexos (aqueles praticados por notórios torturadores a perseguidos pelo regime militar), vale a pena algumas considerações sobre a questão em pauta.

Por Ana Guedes*

A anistia conquistada no Brasil em 1979 não pode ser analisada como resultado de um simples acordo das forcas políticas brasileiras como algumas análises se reportam. É importante situar o momento histórico quando se iniciava uma intensa resistência à ditadura militar, particularmente a partir de meados da década de 1970, com o surgimento do Movimento Feminino pela Anistia e os Comitês Brasileiros pela Anistia. Afinal, a sociedade brasileira, de forma organizada, conseguia – após o golpe dentro do golpe com o AI-5 em dezembro de 1969 – renascer das cinzas e iniciar uma ampla articulação que, diante das consequências da repressão desenfreada do governo ditatorial, passou a ocupar espaços significativos no processo de resistência.

A máxima era a bandeira da “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”. Esta palavra de ordem unificou todo o movimento no país inteiro. A partir daí vieram à tona, para o conjunto da nação brasileira e para o mundo inteiro, os presídios onde eram encarcerados os presos políticos, as listas de mortos e desaparecidos, a situação dos exilados, enfim, todos os crimes cometidos pelo regime ditatorial. Foi uma grande queda de braço.

A ditadura, por outro lado, ainda continuava forte – só acabando em 1985 – e a correlação de forças, naquele momento, não permitiu que a conquista da anistia fosse completa. Os presos saíram das prisões, os exilados voltaram, mas os torturadores ficaram impunes, protegidos pela lei e restaram inúmeros desaparecidos e mortos. Isso nos reporta à continuidade da luta e é o que o movimento organizado de direitos humanos faz no Brasil até os dias de hoje. O atual governo incorporou, por seu turno, uma série de medidas que representam também conquistas e avanços para o processo de consolidação democrática. A exemplo da criação da Comissão da Anistia e a Comissão de Mortos e Desaparecidos, esta iniciada no governo anterior ao do presidente Lula.

A luta constante que tem se desenvolvido no Brasil sobre esta temática busca a abertura dos arquivos da ditadura, o esclarecimento dos crimes cometidos, o sepultamento dos desaparecidos e o julgamento dos torturadores. A isso não cabe chamar de revanche. Não se defende torturar torturadores, por exemplo, no estilo “olho por olho, dente por dente”. Mas sim, abertos os arquivos, identificados os criminosos, localizados os restos mortais dos desaparecidos e permitir que a justiça seja feita, legalmente. E foi isso que o STF se negou a fazer, no que se refere à proteção da lei aos chamados crimes conexos.

Questões de mérito e fundamentos jurídicos à parte, é sabido que as razões de fundo não são as alegações contidas no relatório e voto do relator Eros Grau. Ainda existe uma correlação de forças desfavorável sobre esta temática que atinge, em cheio, os interesses do avanço democrático da nação brasileira, além de opiniões equivocadas até mesmo dentro do campo progressista.

Na verdade, no que se refere às conquistas democráticas na sociedade brasileira, muito temos ainda a caminhar. São os resquícios de uma sociedade formada e consolidada a partir de um modo de produção escravista colonial que se desenvolveu com forte presença de oligarquias, trazendo como consequência o traço do autoritarismo, a despeito das grandes lutas travadas pelos oprimidos na formação desta sociedade. A luta de classes no Brasil sempre foi ferrenha e hoje, mais do que nunca, ela se coloca num patamar extremamente acirrado. Encontra-se em jogo um projeto, conquistado a duras penas, que precisa se consolidar e avançar. Para tanto, o investimento na consolidação da democracia é questão vital para o alcance desse objetivo, o que vai representar outro momento na vida nacional. No Brasil, nós temos leis que ainda não conseguem ser cumpridas apesar de existirem oficialmente a exemplo da Lei n.º 9455/97 (Lei de Tortura) e a Lei Maria da Penha. Cotidianamente, pessoas são vítimas de tortura e mulheres são agredidas e, até, assassinadas.

Objetivamente, devem ser agregadas à luta pelo desenvolvimento do país, iniciativas de garantias de avanços democráticos. Setores mais voltados e sensibilizados com a questão dos direitos humanos existentes na estrutura administrativa do governo brasileiro têm se empenhado em ações voltadas ao direito à memória e à verdade, propostas, por exemplo, no terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, que resultou de ampla participação de militantes e de representação governamental nas inúmeras conferências realizadas, no país inteiro, no ano de 2008.

Esse plano contém a essência das bandeiras históricas dos direitos humanos, dos mais variados segmentos da nossa sociedade. A reação de setores retrógrados e de defensores de interesses antipopulares ao PNDH-3 demonstra o quanto é preciso enfrentar preconceitos e resistências. Mais ainda, demonstra o quanto a sociedade civil terá que se articular aos movimentos sociais para fazer valer uma justiça de transição que reconcilie a nação, principalmente perante os crimes cometidos durante o período ditatorial. Em nosso país, além da existência de uma oposição que busca retornar a situações anteriores indesejáveis, ainda convivemos com um governo em disputa, onde posições diferenciadas se abrigam sob o mesmo teto e por isso mesmo, torna-se vulnerável a pressões.

O resgate da memória da nossa história representa o alicerce para a construção de uma sociedade sólida, que trata suas feridas olhando para que no futuro situações de violação de direitos humanos e crimes de lesa-humanidade nunca mais ocorram. É preciso olhar para frente e assegurar este futuro e isso só é possível com conquistas de caráter democrático. Se o processo de desenvolvimento do país não se harmonizar com a garantia dos direitos, corremos o risco de não realizarmos uma transição que venha a consolidar o Brasil como uma grande nação democrática.

É neste quadro que setores mais comprometidos com a temática dos direitos humanos são chamados a levantar esta bandeira, de caráter estratégico, na construção da nova sociedade brasileira.

* Conselheira da Comissão Nacional da Anistia do Ministério da Justiça; membro da Comissão Política do Diretório Estadual do PCdoB na Bahia e do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia