Eduardo Galeano movimenta a Copa do Mundo

"Tanto o argentino Diego Maradona como a seleção do Uruguai ou seus candidatos ao título fizeram parte desta extensa entrevista com o escritor uruguaio, confesso amante do futebol, que reconheceu, durante a Copa do Mundo mudar-se para o 'Planeta Bola, que é igualmente redondo, mas um pouco menor'."

Do Página 12, reproduzido no blog polivoCidade.

A partir desta sexta-feira e até a finalização do Mundial da África do Sul 2010, como vem ocorrendo desde há muito tempo e a cada exatos quatro anos, Eduardo Galeano exibirá um cartaz na porta de sua casa: “Fechado. Apenas Futebol”.

O gesto, mais divertido e diplomático que o “não perturbe” dos hotéis (e o qual poderia acompanhar com um “estou trabalhando para vocês”, como se verá), de qualquer jeito não parece necessário: “Durante todos os Mundiais saio do Planeta Terra diretamente. Mudo-me para o Planeta Bola, que é igualmente redondo, mas um pouco menor. Dedico-me a ver todas as partidas, ou pelo menos tentar, porque sempre me acontece de perder alguma. Mas o que quero dizer é que me sento com uma cervejinha bem gelada diante da TV e me escondo em uma bola. E dali não saio até que o Mundial tenha terminado. Assim, simples”.

Contudo, o Mundial não começou. E o escritor uruguaio, antes de se perder no labirinto das tabelas e horários, essas coordenadas particulares do Planeta Bola onde a cena se passa além, falou de tudo. Falou de Lionel Messi: “É o melhor do mundo porque continua jogando como uma criança num bairro”. Falou de Diego Maradona: “Tem sido injustamente atacado, e ainda que uma coisa é ser jogador e outra técnico, tem-se que lhe dar tempo e espaço”. Em suma, falou de tudo.

Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Segue tendo com o futebol a mesma relação de sempre?

Absolutamente sim. Não poderia estar afastado do futebol. Sou futebol-dependente. E isto vem da minha infância mais remota, porque meu pai me levava ao estádio quando eu ainda era um bebê. E depois, claro, joguei futebol toda a minha vida.

Jogava bem?

Não. Mal, muito mal. Era meia-direito, o que hoje seria um volante ofensivo, mas sempre fui atrapalhado, um perna de pau. Até que ao final, me resignei, aceitei meu destino e terminei tentando escrever para ver se podia fazer com as mãos o que com os pés não pude fazer nunca.

Mas essas tentativas foram apenas eventuais, até a aparição de Futebol ao Sol e à Sombra.

É verdade. Até esse livro eu havia escrito muito pouco de futebol, porém depois levei o tema mais a sério. Por fim, fiz o que queria: jogar futebol com as palavras e à minha maneira. A este livro vou atualizando depois de cada Mundial, e isso também tem a ver com aquele “Fechado. Apenas futebol”.

O exercício de unir literatura e futebol, por certo, parece cada vez mais aceito, ou pelo menos mais praticado.

Celebro que haja gente que escreve muito bem e que não oculte sua paixão futebolística. Quando tinha 20 anos, dirigi no Uruguai um diário independente de esquerda. Chamava-se Epoca e tinha boa ressonância, com 35 mil exemplares. Éramos todos muito jovens e capazes dessa loucura, uma experiência maravilhosa que nada cobrava e da qual todos os militantes, uns 5 mil, eram acionistas. Assim recordo muito bem o que eram as assembléias, com 200 ou 300 pessoas até às sete da manhã, nas quais eu tinha que dar a cara a tapa para defender as páginas dedicadas ao futebol. Era a luta mais feroz de todas, porque para os militantes de esquerda aquilo era dilapidar cinco ou seis páginas de um porta-voz da classe trabalhadora, de um diário antioligárquico, para consagrar ao futebol, o “ópio do povo”. Somente agora a esquerda está se curando desta enfermidade em que acusa o futebol de fazer das pessoas não-pensantes. Agora os intelectuais não têm vergonha.

E o que espera deste Mundial, como torcedor e como intelectual?

Que me ofereçam uma festa para os olhos. Este prodígio de formosura que o futebol é. Obviamente que quero que ganhe Uruguai, e se não for o Uruguai que seja a Argentina ou Brasil, os países que sinto mais próximos. Mas antes de mais nada, sou fanático do bom futebol.

E além destas cores…

Além destas cores. Quando criança, era torcedor raivoso do Nacional. Ia ao talud (a popular), atrás do gol, é decerto a tribuna mais pobre e mais violenta, porque naquele tempo eu também me envolvia como qualquer filho de vizinho. Era bastante brigão. Tinha 11, 12, 13 anos. Porém com o passar do tempo fui descobrindo que a minha é o futebol, sobretudo quando alguém me oferece essa festa, a do futebol bem jogado. Quando este milagre ocorre, agradeço sem me importar com a equipe ou seleção. E mais além: inclusive em partidas do Nacional, confesso que muitas vezes quero, secretamente, que ganhe o menos poderoso, o menor. Como me disse uma vez um amigo espanhol: “estás condenado, porque vai ser sempre do lado do touro”. Nunca do toureiro. Por isso me fez feliz o título do Argentinos Juniors, a possibilidade de que se rompa o monopólio, além de ter amigos que são seus torcedores.

Continua indo aos estádios?

Sim, continuo indo. É curioso, até masoquista, eu diria, porque o futebol raras vezes me devolve no estádio algo que se pareça com a expectativa que eu levo. Espero ver um espetáculo belo, e muito raramente isso ocorre.

E a que atribui a insistência?

Primeiro, à diferença que existe, por exemplo, entre o cinema e o teatro. Uma coisa é ver a partida no estádio, onde se escuta a respiração dos protagonistas, e outra é vê-la pela televisão. Mas também creio que tenha algo a ver com algum resíduo de minha formação católica.

Como é isso?

Tive uma infância muito católica. Acreditava em Deus e acreditava que ele cria em mim. Agora não creio mais no céu, nem na dor, nem nesse elogio da dor que a Igreja católica colocou-me dentro, mas ainda deve haver ficado algum efeito residual daquela aprendizagem: que todo o que sofras na terra será recompensado no céu. Deve ser isso que me leva ao campo! Mas também me leva o espetáculo do público, o fervor, essas ondas de entusiasmo que se sente quando as pessoas estão ao seu lado e que não o sente quando vê pela televisão ou te contam. E as atitudes das pessoas! Recordo que havia um jogador do Nacional, Escalada, que de 90 vezes que chutava à meta, apenas uma era gol. Nas outras, gritavam: “Com a ferradura não! Com a ferradura não!”. Isso também é parte da festa do futebol e é algo que eu, que sempre fui um ouvinte, desfruto de maneira especial.

Daquela infância católica e futebolística, o que recorda com carinho particular?

A parede do meu quarto, onde havia um crucifixo rodeado de figurinhas. Ali estavam Rinaldo Martino, aquele do San Lorenzo, e tantos outros que jogaram no Nacional. Toda a parede era pregada de figurinhas ao redor do crucifixo. E abaixo, como se para que não os visse muito porque eram “inimigos” do Peñarol, também havia pregado a (Juan) Schiafinno ou a (Julio) Abbadie. Gostei tanto de vê-los jogar! Abbadie era capaz de fazer com que a bola fosse girando pela linha lateral e com puro fingimento, sem tocá-la, ia iludindo seus rivais. Gostaria de escrever como Abbadie jogava. Gosto deste futebol, das pontas, o do wing, que em inglês significa asa. Abbadie era um homem com asas.

Como Garrincha.

Exato. Tive a sorte de vê-lo jogar duas vezes no Rio. Era como ver Chaplin no gramado. Garrincha desfrutava tanto que terminava uma jogada e se sentava em cima da bola, depois de deixar todos os rivais pelo caminho, provocando, como se dissesse “vejam se me tomam-na”. Depois alguns queriam degolá-los porque às vezes sequer fazia o gol.

Messi tem esse perfil de jogador “ponteiro”

Eu creio que Messi é o melhor do mundo porque não perdeu a alegria de jogar pelo simples jeito de jogar. Nesse sentido, não se profissionalizou. Estão os que escrevem por prazer e estão os que escrevem para cumprir o contrato ou ganhar dinheiro. Messi joga como uma criança no seu bairro, não pelo dinheiro. Como avança, como dribla, essa picardia que é tão linda de ver nos jogadores. Quando o futebol profissional me desengana muito, vou pelas ruelas de Montevidéu para ver as crianças jogando nos campinhos.

E a Maradona? Como o vê em sua função de diretor técnico?

Creio que tem sido injustamente atacado. Uma coisa é ser jogador e outra diretor técnico, mas se tem que dar espaço e tempo a ele, ver o que acontece. O que ocorre é que Maradona tem que carregar uma cruz muito pesada nas costas: chamar-se Maradona. É muito difícil ser deus neste mundo, e muito difícil comprovar que aos deuses não se permite aposentar-se, que devem seguir sendo deuses a todo custo. E Maradona é um caso único, o desportista mais famoso do mundo, apesar de há anos ter parado de jogar, essa necessidade de protagonismo derivada da popularidade mundial que tem.

Em seu último livro, Espelhos, fala de Diego como um “deus sujo”.

Mas não no sentido do insulto. Quero dizer que ele é o mais humano dos deuses, porque é como qualquer um de nós. Arrogante, mulherengo, débil… Todos somos assim! Somos feito de barro humano, assim tem gente que se reconhece nele exatamente por isso. Não é um deus que desde o céu nos mostra sua pureza e nos castiga. Então, o que menos se parece com um deus é a entidade pagão que é Maradona. Isso explica o seu prestígio. Nos reconhecemos nele por suas virtudes, mas também por seus defeitos.

Você o considera capaz de levar a Argentina até o título da Copa do Mundo da África?

A Argentina é uma das minhas favoritas a ganhar a copa pela riqueza de seu plantel, e com isto não estou descobrindo a pólvora. Mas falar de Maradona nesses termos me parece uma desproporção, porque hoje se dão aos técnicos uma importância que para mim não têm e termina prejudicando-os: à sério, fazem deles quase únicos responsáveis por uma derrota. É outra das deformações do futebol: se dá ao técnico uma aura científica, como se fossem colegas de Einstein. Antes não se sabia nem quem eram os treinadores. O melhor que conheci foi um senhor que se chamava Cóppola, que dirigia a equipe de um povoado muito pequeno no Uruguai, Nico Pérez. Era cabeleireiro, um dia teve uma ideia e colocou um cartaz no seu trabalho: “Fechado por excesso de capital”. O fato é que toda a tática e a estratégia de Cóppola se reduzia ao seguinte: acompanhava os seus jogadores ao gramado, lhes batiam nas costas à medida que iam saindo e dizia, simples: “Meninos, boa sorte!”

Para além do estritamente desportivo, poderia prejudicar o caminho da Argentina no Mundial essa presença tão midiatizada de alguns torcedores argentinos (Barras Bravas) na África do Sul?

Seria uma pena, tendo a Argentina tantos jogadores de qualidade, que se atrapalhasse em campo por uma situação assim. Em princípio, o fato de que viajaram junto com o plantel me gerou preocupação. Mas espero que não ocorra nenhum desastre, que não manchem o que eu creio que será brilhante, que não haja episódios de violência por estes fanáticos que não amam o futebol do mesmo modo que os bêbados não amam o vinho. Entre muitas outras coisas, Da Vinci escreveu um livro no qual recolheu fábulas da região da Toscana, na Itália, e ali falava disso: da ofensa a uma garrafa de vinho pela má maneira com que a bebia o bêbado. Sempre pensei ser uma fábula muito justa e é a mesma relação entre o futebol e os fanáticos da violência, esse despertar que fazem do que de pior há na alma humana.

E o Uruguai? Como o vê?

Creio que melhorou muito em relação a tempos tão passados. O que ocorre é que Uruguai segue sendo um país exportador de “pé-de-obra”. Vendemos mão-de-obra e, no caso dos futebolistas, pé-de-obra. Existem mais de duzentos jogadores uruguaios no exterior. Ter essa quantidade fora, em um país cuja população caberia em Avellaneda, mostra que estamos muito desfalcados. O período de esplendor de nossos futebolistas nós vemos pela TV. De todas as maneiras, em função dessa qualidade de jogadores, porque por alguma coisa são convocados das ligas mais importantes do mundo, eu tenho a impressão de que o Uruguai vai jogar lindo, jogue bem. Ainda que já não sejamos o que éramos.

Em que sentido?

Há uma parte da história que parece inexplicável: como um país de poucos habitantes e pequenino pôde ganhar a medalha de ouro no futebol dos Jogos Olímpicos de 1924 e 1928, o Mundial do Uruguai de 1939 e pôde vencer no Maracanã, no Mundial do Brasil de 1950, contra todos os prognósticos. Porém isso tem explicação: o papel fecundo que teve o Estado Uruguaio na aurora do século 20. O Uruguai esteve na vanguarda do mundo na educação livre, laica, gratuita e obrigatória, com um papel criativo, e ali estava integrada a educação física. Surgiam campos de esportes em todo o país. Sem falar em outras coisas: as oito horas de trabalho antes que nos EUA, o voto feminino antes que na França, a lei do divórcio 60 anos antes que na Espanha… Coisas assim. Isso explica como um país minúsculo pôde chegar tão alto. Mas o Estado perdeu essa energia de mudança, foi desinflando, e essa falta de continuidade na vocação criadora do poder público se refletiu no futebol. Por isso digo que já não somos o que éramos.

O futebolista tampouco é o que era.

Isso é verdade. As pessoas depositam sobre eles uma carga enorme. Isso engorda o ego dos que recebem o elogio multitudinário, mas às vezes representa uma carga muito pesada. Há uma coisa muito perversa aí.

Qual, exatamente?

Fabricar ídolos para depois descartá-los. É uma faca de dois gumes, definitivamente. As pessoas se reconhecem na alegria de um jogador, quando ganha ou joga bem. Mas também os fazem responsáveis do infortúnio coletivo quando perde. Porque aí a alma de muita gente se desinfla.