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Numa praça de SP, desfila a cultura de um país vizinho

Saindo da estação do metrô Armênia, na capital paulista, já é possível notar os primeiros rostos de traços indígenas. Dalí a algumas quadras eles serão maioria absoluta. É domingo na Praça Kantuta, um pedaço da Bolívia dentro da maior cidade do Brasil.

Por Vitor Taveira, em Carta Capital

Desde 2003 esse lugar é um espaço de encontro e recordações de uma das maiores colônias estrangeiras da grande metrópole da América do Sul. Estima-se que cerca de 100 mil bolivianos vivam na região da Grande São Paulo, a maioria deles em situação ilegal.

As barracas começam a ser montadas a partir das 9h da manhã, mas o movimento é mais intenso depois das 3h da tarde: “muitos trabalham de segunda a sábado e aproveitam as manhãs de domingo para descansar e arrumar as coisas”, afirma o professor Juan Carlos Giménez.

Uma simples caminhada nos leva a esquecer que estamos no Brasil: fisionomias indígenas, música boliviana e latina, espanhol falado em todo canto, artesanato, produtos nativos e comidas de nome ininteligíveis aos brasileiros: silpancho, pique a lo macho, salchipapas, fricasé, salteña e até a sopa de maní (amendoim). Incrementam a lista de produtos andinos o chá de coca, o refrigerante Inca Kola, grãos como a quínua e até um pequeno chicote usado para “educar as crianças“.

Um dos organizadores da feira é Carlos Soto, que mora há 40 anos no Brasil. Inicialmente trabalhou na construção civil e hoje se sustenta vendendo salteñas, uma espécie de pastel recheado com molho picante. Conhecido como Don Carlos, ele informa que atualmente há 65 barracas típicas todo domingo, embora esse número já tenha sido maior no passado. E não são apenas os produtos e vendedores que fazem da Kantuta uma feira diferenciada, como afirma Don Carlos.

Geralmente há atrações culturais como música típicas, grupos de dança e festas tradicionais. “Nossa preocupação como feirantes seria apenas de vender nossos produtos. Mas como somos uma feira só de estrangeiros aqui no Brasil, queremos divulgar um pouco da nossa cultura. Todo boliviano, assim como todo povo que está vivendo fora de seu país, adora mostrar sua cultura.”

Entre as programações especiais estão o carnaval, folclórico, Dia das Mães, Dia das Crianças, e feriados nacionais bolivianos. O organizador estima que em dias de festa o número de visitantes pode chegar a 3 mil num mesmo domingo, com alta rotatividade. Para os bolivanos a Feira da Kantuta serve como um ponto de encontro e reunião. “Aqui é o Ibirapuera dos bolivianos”, brinca Don Carlos. Para os brasileiros que visitam é quase como entrar em um outro mundo sem sair do próprio país.

Mas enquanto a animação da praça rola solta com música, dança, comida, conversas e compras, um impactante silêncio em meio a sussuros prevalece em uma das ruas que dá acesso ao local. Ali há diversos agentes que recrutam trabalhadores. A boliviana Jobana Moya militante dos direitos dos imigrantes, afirma que a maioria dos bolivianos vêm da região do Altiplano para trabalhar nas oficinas de costura paulistas, seduzidos pelos salários que às vezes não passam de 200 reais – o que para os padrões bolivianos é bastante dinheiro.

É recorrente que haja denúncias de situação de trabalho análogo a escravidão nessas oficinas. Os casos de exploração e ameaças, além de serem gravíssimos do ponto de vista humano, contribuem para uma estigmatização dos imigrantes. “Os bolivianos, cada vez menos, querem dar entrevistas, porque os jornalistas só querem falar de trabalho escravo e se esquecem do lado humano das pessoas, de que somos uma comunidade que tem uma cultura diferente e vem tentando se integrar.”

De personalidade geralmente mais tímida e fechada, os bolivianos costumam gostar muito da receptividade dos brasileiros. Porém, a integração entre as culturas é dificultada, entre outros fatores, pelo fato de que a maioria dos imigrantes pretende estar no Brasil apenas por um tempo para ganhar dinheiro e voltar. É o caso de Carmen Ramírez, que chegou há seis meses e pretende ficar por dois anos. Ela deixou filhos e o marido na cidade de El Alto, mas trouxe consigo seus costumes e segue vestindo saia, chapéu e roupa típica das mulheres indígenas.

Alguns se mostram bem integrados e admirados com a cultura brasileira, como é o caso de Román Quéchua, que trabalha como artista e xamã e se dedica a difundir a cultura e espiritualidade andina no Brasil. Ele diz que faz um trabalho “de formiguinha” contra os estereótipos criados pela mídia como o de que a Bolívia é apenas um país que produz coca e cocaína ou que suas plantas usada em rituais religiosos como a ayahuasca são drogas.

Também destaca que, apesar dessas plantas serem usadas em algumas seitas como o Santo Daime e a União do Vegetal, na espiritualidade andina elas são usadas na busca do seu conhecimento interior e individual, sem qualquer tipo de doutrina.

Ademais de ajudar a matar as saudades da cultura e dos produtos típicos de seu país, a Feira da Kantuta serve como espaço de encontros e mobilizações. Desde o clima de paquera entre os jovens até manifestações políticas relacionados com temas como a participação dos estrangeiros nas eleições presidenciais da Bolívia, ali é onde circula primeiramente a informação da comunidade boliviana de São Paulo. E é também onde todo domingo desfila gratuita e genuinamente a cultura de um país vizinho, que boa parte dos brasileiros desconhece.

Para evitar que a xenofobia que toma conta dos países economicamente mais ricos atinja o Brasil é preciso conhecer a cultura do outro, para assim entendê-la e respeitá-la. Não soa ilógico num mundo em que os produtos e informações percorrem longas distâncias em questões de segundos que um cidadão seja impedido de circular livremente?

Fonte: Carta Capital