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O ano em que nasceu Saramago

Em visita à mostra "José Saramago: a Consistência dos Sonhos", há dois anos, o Nobel da língua portuguesa revia o seu percurso e recordava o poema de Ricardo Reis. "Eu vivo guiado por estes versos: ‘para sê grande, sê inteiro, põe tudo o que és no mínimo que fazes'".

Por Isadora Ataíde

Um homem "íntegro, inteiro" é como Zeferino Coelho, editor de uma vida, saudou Saramago minutos depois de anunciada a morte do escritor. Pilar del Rio, esposa e "casa" de José,
sublinhou-me em entrevista de há um ano, a simbiose entre o homem e o escritor. "Há uma grande naturalidade, ele é igual a sua obra, sem distração alguma. Ele não cria ficções, entretenimento, ele escreve sobre o seu mundo".

"O Nobel José Saramago morreu hoje, em sua casa, em Lanzarote", anunciava a rádio. Fui transportada para um trecho de "As Pequenas Memórias", em que Saramago recorda o avô a abraçar as árvores do Alentejo em ritual de despedida. E o escritor, como o escritor despede-se dos leitores, das palavras? Saltou-me a recordação de Saramago à secretária, ao terminar "A viagem de um Elefante", na casa do Arco Cego, em Lisboa, onde o saudei pela última vez.

Nos encontramos três vezes. Eu sempre assaltada por uma timidez desproporcional, sem saber onde guardar as mãos ou colocar o olhar até firmá-lo nos olhos do mestre e repetir-lhe: "O senhor ofereceu-nos o melhor da literatura, muito obrigada. Admiro, respeito e partilho as suas idéias sobre o mundo".

Ele também era fiel na resposta, num tom baixo e pausado, em sorriso suave: "É com gosto que ouço as suas palavras, é bom sabê-lo, muito obrigado". E dedicava-me um livro, "Para a Isadora, com a minha simpatia".

A ficção de Saramago, que coincide com o seu mundo, é a do homem moderno dos anos 20 do século passado. Nascido em 16 de Novembro de 1922, Saramago atravessou o século sem pestanejar em suas crenças, a defender num contínuo os valores essenciais da liberdade e da
igualdade.

Zeferino Coelho, em entrevista em 2009, ressaltou a militância do escritor. "Quando acontece uma tragédia em qualquer parte do mundo, natural ou política, ela comove profundamente o
Saramago e a Pilar, mexe com eles. Há um lado na visão de mundo dele que é excêntrica, cética. Mas ao mesmo tempo há um lado de intervenção, de se estar ativo, de denunciar as misérias do mundo".

O nosso primeiro encontro foi nas estantes de ferro da Biblioteca Municipal de Florianópolis, corria o ano de 1994, tinha eu 15 anos. Foi um amor à primeira letra, que me impediu de devolver o "Memorial de Convento" às estantes. Depois eu perdi-me no Atlântico, a bordo da "Jangada de Pedra", numa península que se fazia de metáfora para a deriva dos continentes e da espécie. E na surpresa de cada novo romance, no virar inquieto das páginas, eu perguntava-me: onde nascem as idéias de Saramago?

Se estou na redação do Diário de Notícias – no meio daquela balbúrdia que é o fazer jornalístico – apanho-me a olhar para a sala da direção e a convencer-me de que ali, no Verão Quente de
1975, Saramago imaginava suas histórias. João Céu e Silva, jornalista e escritor, afirma que Saramago tem um percurso literário que se

gue uma lógica interna. "Ele escreve duas páginas por dia e estão escritas para sempre. Ele tem uma cabeça muito organizada, ele está horas a pensar-se e quando senta para escrever aquilo já está definido", contou-me há um ano.

O tempo de José é o do homem contemporâneo que relê a trajetória de Caim para reescrever o princípio do mundo. Trata-se do autor da Idade Média que em Baltasar e Blimunda retrata o amor intemporal, o sonho de Ícaro e a perseguição às mulheres.

Saramago é do século XX, das epidemias que nos cegam e insensibilizam. José é do século XXI, onde há homens duplicados, eleitores rebeldes que votam em branco e revisores que editam a História. Se calhar, foi a ausência do fator tempo ou o não-lugar, ou mesmo as traduções que lhe roubaram a língua. Pode ser o transcender das referências e do cânone, inclusive com a determinação da morte dos pontos e parágrafos. Saramago já não é mais homem e os seus escritos não são obra. O Zé, aquele de Aziganha, é universal e definitivo nas suas palavras.

O crítico Harold Bloom pondera que a leitura nos leva ao "sublime", e, que para além do amor, "é a única transcendência secular que nos é possível". Ocorre-me que os escritores não se despedem, porque não partem. A escrita de Saramago, o próprio a fazer letra dos seus pensamentos, continuará a nos provocar o sublime. Quiçá para muitos será este o ano em que nasceu José Saramago.

"A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ele que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte. ninguém morreu" (José Saramago, em As intermitências da morte).

*Isadora Ataíde é jornalista em Lisboa